Acervo
Vídeos
Galeria
Projetos


Velhas teses, novas estratégias

Com a ajuda da ciência derretem-se as negritudes biológicas para decretar não a morte da raça sociológica e sim das políticas de eliminação das desigualdades sociais fundadas na rejeição à raça ou à cor dos indivíduos. Quando combatemos o conceito de raça de costas para a história de desigualdade que ela produziu e permanece reproduzindo, estamos no mesmo paradigma imposto pelo racismo

Como o Brasil é uma persistente promessa postergada de futuro, preferimos ir de volta ao passado, pois as novas interpretações da vida e do mundo são o retorno a velhas teses que forjaram os mitos que somos, outra vez, convidados a cultuar em detrimento da realidade social. A novidade do momento é que raça não existe.

A constatação óbvia é repetida em certos veículos de comunicação como se a genética brasileira tivesse realizado um feito semelhante ao da descoberta da pólvora. Quando foi que raça existiu, a não ser como instrumento de exploração dos povos não-brancos que teve no racismo científico sua legitimação como doutrina teórica? Seria bizarro, não fossem as repercussões desse falso debate.

Com a ajuda da ciência derretem-se as negritudes biológicas para decretar não a morte da raça sociológica e sim das políticas de eliminação das desigualdades sociais fundadas na rejeição à raça ou à cor dos indivíduos. É o resultado político que parece ser buscado com a investigação da ascendência genética dos negros. Veja-se o caso dos gêmeos Alex e Alan, submetidos a perversa, e constrangedora exposição, sendo usados por meio da generalização de seu caso particular e peculiar para atacar a política exitosa da UnB de inclusão da diversidade racial.

Quando combatemos o conceito de raça de costas para a história de desigualdade que ela produziu e permanece reproduzindo, estamos no mesmo paradigma imposto pelo racismo, na medida em que a negação da realidade social das raças hoje coopera para a permanência das desigualdades que ela engendra como construto social e cultural.

É por isso que, fora dos laboratórios dos cientistas, a vida segue como ela é. Uma mulher negra aprovada em primeiro lugar para trabalhar como atendente comercial no último concurso dos Correios, na região do ABC paulista, recebeu da gerente da agência em que fazia treinamento alguns conselhos. Disse a chefe que os Correios pedem que os funcionários do atendimento apresentem boa aparência para "transmitir segurança aos clientes", quando vão postar suas cartas e encomendas.

O foco em questão era o cabelo de Mara, com dreads, chegando a gerente a propor fossem cortados; que se Mara fosse carteira ou operadora de triagem, não teria problemas com a aparência. E ainda fez uma série de perguntas do tipo "por que você usa o cabelo assim?" "Como lava?", afirmando em seguida: "Eu também tenho um pé na senzala".

Se fosse uma negra famosa, Mara teria sido convidada a submeter-se a um teste de DNA que provavelmente comprovaria que ela tem em torno de 40,8% de ascendência européia, assim como Daiane dos Santos. O problema está em conseguir convencer o empregador dessa branquitude presente e latente em seu DNA que não foi capaz de escorrer seus cabelos.

Talvez uma contribuição concreta que geneticistas poderiam dar nesses casos fosse seus institutos ofertarem um certificado de ascendência européia a todos os que parecem negros mas, segundo a genética, não são. Poderia ser uma espécie de crachá no qual viriam descritas as porções, sobretudo a européia, de cada um de nós, a ser apresentado junto com os demais documentos exigidos nos processos de seleção das empresas ou nas revistas policias e demais situações sociais em que, por engano, sejamos tratados como negros.

Isso talvez tivesse evitado, por exemplo, a humilhação sofrida por Daiane dos Santos com a piada divulgada por certa atriz, na qual ela era chamada de macaca, ou as vezes em que o cantor Djavan foi parado pela polícia em São Paulo com seus 30,1% de europeidade no DNA.

Conhecido geógrafo, aguerrido combatente contra as cotas raciais e o Estatuto da Igualdade Racial, em entrevista a um jornal de São Paulo, disse: "É importante que o Brasil mostre para o mundo que é um país de miscigenação -- um país que não é uma democracia racial, mas quer ser". O Fashion Rio acaba de dar ao mundo um exemplo dessa democracia racial "que se quer". O inglês Michael Roberts, que estava fotografando o Fashion Rio para a revista Vanity Fair, considerou "uma vergonha" não encontrar negras desfilando. "Estou surpreso (...) Negros são fantásticos, assim como índios e orientais. O Brasil deveria aproveitar sua diversidade."

Segundo a imprensa, Felipe Velloso, responsável pela escolha de modelos, explicou que "adoraria ter negras na passarela, mas há poucas na profissão. Veja a TV: você não vê negros em comerciais de pasta de dente" . Como se vê, como raça não existe, os negros desapareceram da paisagem (ou melhor, das passarelas) e, de roldão, foram consigo orientais e índios. Deu branco!

Sueli Carneiro é Doutora em filosofia da educação pela USP, é diretora do Instituto da Mulher
Negra(Geledés)

Originalmente publicado no jornal Correio Braziliense em 13/6/2007