O Estado de S. Paulo (SP) – 25/06
Rose Nogueira: presidente do Conselho Estadual dos Direitos da Pessoa Humana Mediadora do debate entre estudantes e reitoria da USP diz que nenhum dos dois lados conduziu bem as negociações
Partiu dos alunos e não do governador José Serra ou da reitora Suely Vilela a iniciativa de abrir o diálogo para negociar o fim da ocupação da reitoria da USP. E por inexperiência deles é que a ocupação se arrastou por 50 dias, ao não saberem sair no momento certo e como vitoriosos
Quem faz essa análise é a jornalista Rose Nogueira, presidente do Conselho Estadual dos Direitos da Pessoa Humana. Presa e torturada na ditadura militar, por dar abrigo a Carlos Marighella e a frei Betto, Rose começou no dia 21 de maio a mediar o conflito a pedido dos alunos, a quem chama de “meninos”.
Paciente e bem-humorada, a jornalista chegou a se irritar com a série de idas e vindas até se chegar a um consenso entre os estudantes e vê positivamente os resultados da crise que ela ajudou a debelar.
“Estamos conhecendo uma juventude combativa e isso muda um país. Se tivessem saído no momento certo, iriam abalar as estruturas. Não abalam porque são meninos”, afirma.
Seu primeiro contato com os universitários foi quando acompanhou o encontro deles com o senador Eduardo Suplicy (PT-SP). Depois, por intermédio do advogado Idibal Pivetta, que fora chamado pelos universitários, foi convencida a atuar como mediadora.
A seguir trechos da entrevista ao Estado:
Como começou a negociação pelo fim da crise da USP?
Uns três ou quatro alunos sentaram comigo e disseram que queriam negociar com o governador e com a reitora. Com o governo discutiriam a questão dos decretos e se chegassem a um bom termo sairiam da reitoria. Não houve iniciativa do governo. Aí o José Serra mudou os decretos e os alunos não honraram o acordo. Na hora que um governador faz outro decreto dando aquilo que você está pedindo, é porque você tem força. Aí começaram a discutir picuinha com a reitora. Diziam que queriam mais.
Eles erraram?
A ocupação deveria ter acabado um dia depois que o Serra assinou o decreto declaratório. Se queriam ter vitória política, perderam a oportunidade.Quem teve a idéia do decreto declaratório?Foi o professor Fábio Konder Comparato que sugeriu, mas não com esse nome. Bastaria colocar uma linha a mais - “isso não vale para as universidades estaduais” - e assinar um decreto. Antes de publicar, o (secretário de Justiça, Luiz Antonio) Marrey, que sabe negociar e entende de política, me ligou e disse: ‘Avise aos meninos que o Serra vai assinar um decreto declaratório.’ Em primeiro lugar a maioria dos estudantes não acreditou ou não prestou atenção. Eles tinham essa coisa.
E por que a ocupação prosseguiu?
Eu disse a eles: isso aqui quer dizer ‘revogou’. Um aluno disse para nós que claro que esse povo sabe que o decreto já foi revogado, mas vai fazer de conta que não sabe. Eles tinham várias posições e vinham nos contar. Havia aqueles que queriam sair, mas diziam que não ganhavam (nas assembléias). Na segunda reunião com o Marrey, me deixaram quase louca. Me procuraram e disseram que faziam questão da presença da reitora. Chegamos lá, eles a viram e disseram que queriam negociar em separado, que com ela eram coisas da universidade. Fiquei muito brava. Para que eles queriam a reitora lá então?
Nas negociações, faltou pulso firme da reitora?
Ela não esperava. Eles me disseram que não foi só uma vez que tentaram marcar uma reunião e quando ela marcou não apareceu. Aí resolveram: vamos ocupar a reitoria. Numa das reuniões, ela me falou que não tinha mais o que falar, estava concordando com tudo. Estava muito brava, com toda razão, porque só soube dos condicionantes (para a desocupação) pelo blog deles.
Não havia líderes?
Eles tinham muita divergência. Me pareceu que, fora o pessoal de sindicato, que é mais politizado, os alunos estavam sem muita noção. Mas cresceram muito, de repente começaram a pensar no País, na sociedade, na universidade.
Dizem que a reitora não foi boa negociadora.
Não. Os meninos também não foram. Ela foi dura e eles, também.
Qual foi a razão da explosão?
Foi porque eles tentaram entregar as reivindicações para a reitora e ela não apareceu. Mas claro que havia coisa de partidos, em todo lugar tem.
Tudo era novo para os alunos?
Uns falavam em ‘instituinte’ (sic). Não tinham noção do que era um estatuto. Depois, exigiram que o resultado do Congresso fosse o novo Estatuto da USP. Ora, o resultado de um congresso não é um estatuto. Ou seja, não sabiam nem o que era congresso, nem estatuto. Até para negociar eles eram inexperientes...Percebi uma mudança enorme do primeiro para o segundo encontro com o Marrey. Na primeira reunião, um aluno chegou a falar para ele: eu quero falar com o Serra, não com você, quero falar com o governo. Aí o Marrey falou: ‘sou o representante do governador e do governo’. Perguntaram quem é que ia representar o governo. Eu disse que era o secretário de Justiça. Aí falaram: mas ele é da Justiça, como se fosse do Judiciário. Aí, falei: ‘Ah, menino, não enche o saco.’Daí os 50 dias...Foi uma loucura, fiquei doente. Dizia a eles: ou a comissão de negociação tem poder ou não tem. Ela vai lá, negocia e o máximo que pode trazer é uma proposta para a assembléia. ‘Vocês não sabem fazer’, disse para eles. Se ela (reitora) aceitou tudo isso, vão votar o quê? ‘Ah, não queremos que ela aceite’? Foi inexperiência total. No máximo era para levar a resposta para a assembléia. Se a outra parte aceitou tudo, vocês vão submeter a nova assembléia?
Como negociadora, o que sairá de positivo nesse episódio?
Estamos conhecendo uma juventude combativa e isso muda um país. Se tivessem saído no momento certo, iriam abalar as estruturas. Não abalam porque são meninos. Não acredito em novas ocupações, porque sabem que vai ser essa coisa sem saída. Agora perdeu o elemento surpresa, que foi fundamental.
Leia a íntegra da entrevista com Rose Nogueira
Partiu dos alunos e não do governador José Serra ou da reitora Suely Vilela a iniciativa de abrir o diálogo para negociar o fim da ocupação da Reitoria da USP. E por inexperiência deles é que a ocupação se arrastou por 50 dias, ao não saberem sair no momento certo e como vitoriosos. Quem faz essa análise é a jornalista Rose Nogueira, presidente do Conselho Estadual de Dos Direitos da Pessoa Humana. Presa e torturada na ditadura militar, por dar abrigo a Carlos Marighella e a frei Betto, Rose começou no dia 21 do mês passado a mediar o conflito a pedido dos alunos, a quem os chama de "meninos". Passou a admirá-los. Encontrou na Reitoria um movimento estudantil desorganizado, porém de perfil totalmente diferente do que já se viu no passado. Hoje são jovens filhos de trabalhadores, que precisam de ônibus e alimentação, moradia, salas de aulas com condições mínimas e professores para ensinar. E cobram por isso.
Paciente e bem-humorada, a jornalista chegou a se irritar com a série de idas e vindas necessárias para se chegar a um consenso entre os estudantes e vê positivamente os resultados da crise que ela ajudou a debelar. "Estamos conhecendo uma juventude combativa e isso muda um país. Se tivessem saído no momento certo, iriam abalar as estruturas. Não abalam porque são meninos", afirma.
Seu primeiro contato com os universitários foi quando acompanhou o encontro deles com o senador Eduardo Suplicy (PT-SP). Depois, por intermédio do advogado Idibal Pivetta, que fora chamado pelos universitários, foi convencida a atuar como mediadora do conflito. A seguir trechos da entrevista ao Estado:
Como começou a negociação pelo fim da crise da USP? Uns três ou quatro alunos sentaram comigo e disseram que queriam negociar com o governador e a reitora. Com o governo discutiriam a questão dos decretos e se chegasse a um bom termo sairiam da Reitoria. Não houve nenhuma iniciativa do governo. Aí o José Serra mudou os decretos e os alunos não honraram o acordo não saindo. Na hora que um governador faz outro decreto dando aquilo que está pedindo, é porque você tem força. Aí começaram a discutir picuinha com a reitora. Diziam que queriam mais.
Eles erraram?
A ocupação deveria ter acabado um dia depois que o Serra assinou o decreto declaratório. Se queriam ter vitória política, perderam a oportunidade. Eles teriam tido um avanço político, assumiriam a liderança do movimento estudantil. Não conseguiram compreender o significado de um governador voltar atrás. Tanto que quando os professores voltaram da greve, uma semana ou mais depois assinatura do declaratório, falaram como se tivessem sido vitória deles e não dos alunos. Não é. Toda negociação com o governo partiu dos alunos. Eu vi no jornal: ´Serra põe Marrey para negociar com estudantes´. Pô, quem escolheu o Marrey fui eu, porque o conheço, porque é mais fácil falar com ele.
Quem teve a idéia do decreto declaratório?
Foi o professor Fabio Konder Comparato, que sugeriu, mas não com esse nome. Bastaria colocar uma linha a mais, "isso não vale para as universidades estaduais", e assinar um decreto. Antes de publicar, o doutor (e secretário de Justiça, Luiz Antonio) Marrey, que sabe negociar e entende de política, me ligou e disse: ´Avise aos meninos que o Serra vai assinar um decreto declaratório.´ Em primeiro lugar a maioria dos estudantes não acreditou ou não prestou atenção. Eles tinham essa coisa.
E por que a ocupação prosseguiu? Eu disse a eles: isso aqui quer dizer "revogou". Um aluno disse para nós que claro que esse povo sabe que o decreto já foi revogado, mas vai fazer de conta que não sabe. Eles tinham várias posições e vinham nos contar. Havia aqueles que queriam sair, mas diziam que não ganhavam (nas assembléias). Eles queriam tudo... Na segunda reunião com o Marrey, me deixaram quase louca. Me procuraram e disseram que faziam questão da presença da reitora. Chegamos lá, eles a viram e disseram que queriam negociar em separado, que com ela eram coisas da universidade. Fiquei muito brava. Para que eles queriam a reitora lá então?
Nas negociações, faltou pulso firme da reitora?
Ela não esperava. Eles me disseram que não foi só uma vez que tentaram marcar uma reunião e quando ela marcou não apareceu. Aí resolveram: vamos ocupar a reitoria. Entraram e agora? Numa das reuniões, ela me falou que não tinha mais o que falar, estava concordando com tudo. A reitora estava muito brava, com toda razão, porque os condicionantes (para a desocupação) ela só tomou contato pelo blog deles.
Foi pega de surpresa, então?
O decreto (estadual) é deste ano, mas quem é que disse que essa situação da USP não vem de mais tempo. E ninguém percebeu isso, a reitoria, os professores. Agora foram obrigados a perceber. A juventude é igual a filho, ele tem que falar que cresceu, fazer as coisas, porque você não percebe. Mas notei uma coisa muito interessante na reitora que foi o carinho com os alunos. E também pela USP. Ao mesmo tempo que dizia que tinham de sair de lá, era muito maternal. E foi também super severa, no começo. É como a mãe que não sabe que o filho cresceu, de repente leva um susto.
Como definiria os estudantes da ocupação?
Os que estavam lá não eram os alunos clássicos que têm seus carrinhos. São filhos de trabalhadores. Tinha os da USP Leste. A questão das cotas também mudou. Havia muitos mulatos, negros, coisa que nunca tinha visto na USP. Em 1968 era repórter e cobria o movimento estudantil. Anos depois entrevistei um antropólogo e ele falou que aquele negócio de 68 na USP ninguém percebeu o outro lado. Era a primeira geração de filhos de imigrantes. Até então os alunos vinham de famílias quatrocentonas. Aconteceu a mesma coisa agora: filhos de negros e de trabalhadores, com outra história e outra memória histórica. Estar na USP e transformar e conquistar a sociedade tem um significado muito maior.
E por que não havia líderes?
Não havia lideranças, eles tinham muita divergência. Me pareceu que, fora o pessoal de sindicato que é mais politizado, os alunos estavam sem muita noção. Mas cresceram muito, de repente começaram a pensar no País, na sociedade, na universidade. De início, tinham uma percepção menor do movimento.
É um novo movimento estudantil?
Me chamou muita atenção que não havia lá dentro namorico. A juventude hoje tem muito mais liberdade, não precisa de namorar escondido. É uma nova geração. A anterior não precisava conquistar nada, é o cara de classe média alta, que estudou no Colégio Bandeirantes, Santa Cruz. Estes, não. Tinham libido solta para a política, para conquistar um espaço, pela moradia, pela falta de professores, contra a goteira no teto da História, pelo ônibus noturno, o café da manhã e as refeições no fim de semana. O aluno não tem como comer num restaurante fora no fim de semana e muito menos sem ônibus. Por quê? Porque senão só pode estudar na USP quem tem carro. Eles tiveram essa amplidão.
E exigiram isso da reitora?
Os apartamentos, segundo eles, estão apinhados de gente. Há quanto tempo não se constrói moradia? Não é legal alguém questionando isso? Em vez de questionar estacionamento, estão cobrando ônibus. Alguma vez alguém questionava isso? Não. O cara dava um jeito de carona, o pai se matava e dava um Fusquinha. Esses caras não têm como ir de carro num restaurante de Pinheiros. Necessitam do café da manhã, do almoço do bandeijão. Eles têm muita razão.
Mas houve muita dificuldade para negociar?
Dizem que a reitora não foi boa negociadora. Não. Os meninos também não foram. Ela foi dura e eles, também. O movimento estudantil teve um hiato muito grande. No mínimo 25 anos sem ter esse tipo de "problema", discussão. Foi a primeira juventude crítica. Pobre do país que não tem uma juventude crítica. Repare naqueles estudantes que corriam fazendo exercícios e passavam ao lado da reitoria, bem pertinho, sem ter nada a ver com isso.
E existiu, de fato, a participação de partidos politicos?
Eles não suportavam partidos. Claro que a gente sabia que nas assembléias esta ou aquela posição ganhava e era uma posição partidária. Perguntei umas 20 vezes, dizia que quem pensa assim é partido. Eles respondiam: não queremos o papo de partido. Qual foi a razão da explosão? Foi porque eles tentaram entregar as reivindicações para a reitora e ela não apareceu. Mas claro que havia coisa de partidos, em todo lugar tem. Essa ocupação ensinou a eles muita coisa na área de política. Na Secretaria de Justiça, eu falei para os alunos, na frente do secretário (Marrey): ´Ó, daqui a 15 anos vocês vão estar neste nosso lugar, nesta mesa. Vocês é quem vão ser o secretário, o promotor ou o defensor público, o militante de direitos humanos. Vocês vão dirigir a sociedade.´
Tudo era novo para os alunos?
Uns falavam em "instituinte" (sic). Não tinham noção do que era um estatuto. Num dia perguntei o que era "instituinte". Será que a gente é burra e não sabe, será que estamos mal informados. Ah, estatuinte. Aí brinquei que devia ser uma coisa de morder o outro, instinto. Instituir o instinto (risos). Teve até isso. Depois, exigiram que o resultado do Congresso fosse o novo Estatuto da USP. Ora, o resultado de um congresso não é um estatuto. Ou seja, não sabiam nem o que era congresso, nem estatuto.
Até para negociar eram inexperientes...
Percebi uma mudança enorme do primeiro para o segundo encontro com o Marrey. Na primeira reunião, um aluno chegou a falar para ele: eu quero falar com o Serra, não com você, quero falar com o governo. Aí o Marrey falou: sou o representante do governador e do governo. Perguntaram quem é que ia representar o governo. Eu disse que era o secretário de Justiça. Aí falaram: mas ele é da Justiça, como se fosse do Judiciário. Aí, falei: ´Ah, menino, não enche o saco.´
Daí os 50 dias...
Foi uma loucura, fiquei doente. Dizia a eles: ou a comissão de negociação tem poder ou não tem. Ela vai lá, negocia e o máximo que pode trazer é uma proposta para a assembléia. Vocês não sabem fazer, disse para eles. Se ela (reitora) aceitou tudo isso, vão votar o quê? Ah, não queremos que ela aceite? Foi inexperiência total. No máximo era para levar a resposta para a assembléia. Se a outra parte aceitou tudo, vocês vão submeter à nova assembléia? Vocês são loucos, perguntava.
A inexperiência e o desgaste foram de todos?
Houve inexperiência de ter que, de repente, viver uma situação como essa. Não acho que a reitora negociou mal, nem o governo Serra. Ninguém esperava por isso. A universidade estava anestesiada, como tem sido os últimos 20 anos na universidade? Em brancas nuvens. A sociedade não toma conhecimento, a juventude não é crítica. O governo achou que podia passar por cima. Quer dizer, talvez já estivessem acostumados, porque diziam que no tempo do Geraldo Alckmin e do Claudio Lembo já era assim. Só que o Serra é especial. Ele tem um passado histórico muito importante para os alunos. Eles gostam do Serra. Ainda brinquei, Vocês votaram nele? Ninguém respondeu. Eles sabem que o Serra tem um passado e ia honrá-lo. Esperavam uma atitude de honra, que foi o que aconteceu, com paciência total, de pai e de mãe.
E se evitou a invasão da Tropa de Choque?
Seria um horror. Eles teriam necessariamente de ser criminalizados. Lá em Araraquara (invasão da reitora da Unesp desocupada pela Polícia), o caso foi para o fórum, virou inquérito. Lá foi flagrante, o delegado tinha de cumprir uma ordem do juiz. Isso foi evitado na USP.
Como negociadora, o que sairá de positivo nesse episódio?
A gente só vai ver isso a médio prazo. Em primeiro lugar estamos conhecendo uma juventude combativa e isso muda um país. Se tivessem saído no momento certo, iriam abalar as estruturas. Não abalam porque são meninos. Não acredito em novas ocupações, porque sabem que vai ser essa coisa sem saída. Agora perdeu o elemento surpresa, que foi fundamental. Acho que vai se abrir um debate democrático na USP. Não é panela de pressão. Eles foram chamados de baderneiros, porque está na moda criminalizar os movimentos sociais. Aquelas pessoas todas são muito boas. Eles querem um mundo melhor. E são a elite pensante, daqui a pouco vão mandar. Isso é muito sério. A ditadura não sabia, ela achava que era dona da vida e da morte. A democracia sabe, e o Serra sabe.