Em um país desigual como este, uma instituição como a escola, que só é considerada legítima quando distribui de maneira desigual o capital simbólico que detém, não expande o acesso e o tempo de permanência aos pobres – e em especial aos jovens pobres – sem se modificar profundamente
por Mônica Peregino
Presenciamos, desde a década passada, a expansão da escolarização para grande parte dos jovens brasileiros. Esta expansão, relativa aos níveis fundamental e (principalmente) médio dos sistemas públicos de ensino, vem atingindo, basicamente, os jovens das camadas populares. Segundo Fanfani (2000), o que temos assistido, no processo de expansão das escolas, refere-se, na América Latina, à massificação dos sistemas de ensino. Ele mostra ainda que há algo em comum nas “formas” de expansão das escolas nestes países:
“Em muitos casos, este crescimento quantitativo não é acompanhado por um aumento proporcional em recursos públicos investidos no setor. Muitas vezes ‘teve-se que fazer mais com menos’. É muito provável que a massificação tenha sido acompanhada de uma diminuição do gasto per capita, esticando ao máximo o rendimento de certas dimensões básicas da oferta, tais como recursos humanos, infra-estrutura física, equipamento didático, etc..”
Em nosso caso, a “equação impossível”, “expansão milagrosa”, que faz “mais com menos”, inicia-se durante os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso (1994/2002). Mas a forma com que esta política de expansão se realiza não é exatamente nova. Ela guarda elementos de continuidade para com as políticas de expansão da escola aos pobres, ainda no início da década de 1970. Mais especificamente, ela dá continuidade à tendência apontada ao final da ditadura militar, de realizar, na expansão da escola pública aos grupos antes dela excluídos, a modificação do perfil institucional da escola, especialmente daquela de nível fundamental: com a fragilização da dimensão propriamente “escolar” da escola (Algebaile, 2004).
Aligeiramento dos conteúdos escolares, da formação de educadores, da estrutura física institucional e, finalmente, do investimento per capita, são os elementos centrais da “equação” que, a partir da segunda metade da década de 1990, passam a dar sustentação à expansão do ensino fundamental no Brasil.
Nesse âmbito, inicia-se um processo, objetivando, como o indicado nas cartilhas dos órgãos internacionais, a “racionalização” e a “correção” do setor escolar, adequar a estrutura já disponível a um atendimento mais eficaz, buscando para isso tanto a diminuição dos índices de retenção (repetência), quanto a ampliação geral da escolarização da população. O programa de “aceleração da aprendizagem” é a pedra de toque deste projeto que “produz” vagas pela aceleração de processos sem, contudo, criar infra-estrutura.
Isto não é surpreendente. Em um país desigual como este, uma instituição como a escola, que só é considerada legítima quando distribui de maneira desigual o capital simbólico que detém, não expande o acesso e o tempo de permanência aos pobres – e em especial aos jovens pobres – sem se modificar profundamente. Os exames nacionais de avaliação de aprendizagens no ensino fundamental vêm mostrando que uma das dimensões escolares “sacrificada” no processo de sua expansão tem sido a da transmissão de conhecimentos.
Desta forma, a expansão das vagas pela “aceleração” dos processos de aprendizagem e do tempo de habitação da escola pelo jovem antes excluído desta, não vem, aparentemente, agregando valor aos processos de escolarização, criando, dentro das instituições, uma espécie de “habitação” escolar sem escolarização.
Pesquisa realizada em 2004/2005, no município do Rio de Janeiro tinha como objetivo compreender como, dentro da instituição escolar, estavam sendo experimentados os processos acima descritos. Esse estudo, que ao longo de quatro décadas percorre as desigualdades que marcam as trajetórias dos alunos do segundo segmento do ensino fundamental, realizando, ao final, um “mergulho” no ano de 2005, consegue apontar algumas tendências. As desigualdades que marcam este tipo de expansão nos processos de escolarização pública e os impactos deixados por essas modificações nas instituições escolares, serão as balizas que conduzirão nossas reflexões daqui para frente. Vamos às nossas conclusões.
Em primeiro lugar, as desigualdades estabelecem trajetórias no interior das instituições. Essas trajetórias percorrem não só turmas como também turnos. Trajetórias desiguais são a expressão de pressões, também desiguais, feitas sobre os grupos sociais que habitam a escola, sendo os grupos socialmente mais vulneráveis, aqueles mais atingidos pelos processos de seleção escolar.
Além da pressão seletiva sobre os mais vulneráveis, o estudo constatou uma tendência à separação dos desiguais (sociais) que desde a década de 1970 opera numa composição variável, que hora separa os desiguais em turnos diferentes, hora cria circuitos de turmas distintas, hora se realiza através da composição entre ambas as estratégias, mas que se reafirma num princípio: pobres e ricos, na escola brasileira, são praticamente “imiscíveis”.
Se o início da expansão da escola aos jovens pobres se dá a partir dos anos setenta, a década de 1980 traz uma “novidade” em termos de população escolar, que será determinante para a elaboração e a execução das políticas públicas no ensino fundamental. É que nesta década se aprofunda e se generaliza um processo de circunscrição da escola pública fundamental aos pobres, com a saída em massa das classes médias do interior da instituição.
A década de 1990, em especial sua segunda metade, busca caminhos de atenuação da seleção, particularmente de seus efeitos, por meio de processos que, se não evitam a produção de exclusões por parte da escola, mantêm por tempo mais longo os “excluídos” no interior da instituição.
Esses “caminhos” se estendem até os nossos dias.
Portanto, a desigualdade se multiplica: primeiro, pelo aumento das distâncias entre os sistemas de ensino, estabelecendo circuitos específicos para as classes sociais. Em segundo lugar, pela diversificação e complexificação das desigualdades, dentro dos sistemas públicos de ensino, estabelecendo desigualdades entre regiões, instituições e, por fim, dentro da mesma escola; desigualdades entre turnos e turmas, apontando algumas vezes para a existência, num mesmo espaço, de mais de um perfil institucional.
Como essas desigualdades se manifestam dentro da escola pública fundamental HOJE? Ao nosso ver, uma das formas mais importantes dessa manifestação refere-se à existência, na mesma instituição, de “modos” diversos de escolarização. Nossa pesquisa agrupou as modalidades em dois tipos característicos.
O Modo Pleno de escolarização que agrupa aqueles alunos que acumulam: média de anos de escolarização compatível com o número de séries cursadas; fluxo contínuo pelas séries; não freqüência importante aos projetos compensatórios de alfabetização ou de aceleração da aprendizagem; número residual de repetências e abandonos escolares durante um curso ginasial feito em trajetória contínua.
Ao contrário do conjunto acima descrito, o Modo Precário de escolarização acumula alunos: com média de anos de escolarização muito acima do número de séries cursadas, descontinuidade e fragmentação como marcas de um curso primário entrecortado por repetências, rupturas, ingresso em projetos inorgânicos entre si e em suas relações com a tradição das séries, configurando trajetórias que se destacam pela multiplicidade das formas e pela concatenação inusitada de seriação, ingresso em projetos e repetências. Trajetórias essas que encontram continuidade num curso ginasial feito de repetências múltiplas, coroadas por abandonos.
Processos de escolarização desta forma realizados implicam: trajetórias diferentes e desiguais no interior de uma mesma instituição; possibilidades desiguais de apropriação dos conhecimentos que a escola devia, por princípio, disseminar, de acordo com o modo de escolarização ao qual se é submetido. Se nas turmas de trajetória plena o fluxo contínuo pelas séries permite a acumulação paulatina de conjuntos de conhecimentos, nos modos de escolarização precária as repetências e abandonos entrecortados pelo ingresso em projetos diferentes e às vezes incomunicáveis de aceleração da aprendizagem, criam uma situação em que o acúmulo de conhecimentos torna-se impossível, mesmo numa situação de multiplicação do tempo de habitação da escola.
As turmas e o turno mais atingidos pelos indicadores que, reunidos, produzem os modos mais precários de escolarização são também as turmas que se esvaziam. Ao contrário, aqueles lugares (turmas e turnos) menos atingidos pelos critérios de “seleção” da escola (as turmas mais “seletas”), mantêm um desconcertante índice de agregação. E esta agregação não está só referida à agregação das pessoas em torno das turmas e turnos, mas elas agregam um “valor” à escolarização, completamente ausente nas turmas de escolarização de “modo precário”.
Foi com o intuito de entendermos melhor esse fenômeno que, no decorrer da investigação, formulamos um “índice”, cujo objetivo era o de descortinarmos as relações entre o “valor” do lugar ocupado (encarnado na turma) e o tempo de ocupação do mesmo. A esse “índice” demos o nome de “enraizamento”. Ele foi configurado com base no traçado das trajetórias escolares, tomando o ano de 2005 como referência. Ele expressa, por um lado, o número de vezes que cada um dos alunos do ginásio freqüentou o mesmo “tipo de turma”. Por outro lado, expressa a extensão (e como veremos também, a intensidade) da permanência do aluno na escola. Expressa, portanto, a capacidade de fixação (incorporação) dos alunos aos turnos e turmas da escola, permitindo-nos verificar até que ponto a expansão do acesso e do tempo de escolarização dos jovens pobres vem se traduzindo em efetiva incorporação destes por parte da instituição.
Com isso pudemos perceber que os conjuntos que apresentam os maiores índices de enraizamento são formados: pelas “melhores” turmas da escola, de acordo com os critérios de julgamento escolar – na escola que estudamos, tais conjuntos perfaziam em média 28% do total dos alunos, todos concentrados em um dos turnos da escola. Que esse grupo continha os alunos moradores das favelas mais próximas da escola, em especial, daquelas mais bem providas de equipamentos de consumo coletivo, e aquelas de mais antiga organização comunitária, assim como uma pequena porção de alunos moradores “do asfalto” nas localidades mais próximas da escola. São ainda aqueles submetidos ao “modo pleno” de escolarização, configurando os conjuntos que respondem “positivamente” aos mecanismos de seleção escolar, mostrando-se, no conjunto das turmas que constitui o turno mais enraizado, aquele mais afinado e permeável aos mecanismos de medição e de classificação utilizados pela instituição. São, por fim, o grupo submetido à maior “estabilidade” institucional: são os mais “documentados”; atendidos por conjuntos mais ou menos fixos de professores em cada uma das séries por que passam, sendo estes profissionais, de maneira geral, ao mesmo tempo antigos e valorizados na instituição.
Por outro lado, os conjuntos que apresentam os piores índices de enraizamento são formados pelas “piores” turmas, acumuladas no turno oposto àquele mais enraizado (perfazendo, o total dos mais “desenraizados”, 35% do total de alunos do segundo segmento da escola). Quanto à moradia, os desenraizados eram originários, em sua grande maioria de uma das favelas da região, e numa miríade de pequenas favelas, mais distantes do núcleo onde fica situada a escola, a maioria delas de ocupação recente, contando com precários serviços de infra-estrutura urbana. Os desenraizados do “asfalto” habitam uma variedade de localidades em geral distantes do bairro onde fica a escola. Eles configuram ainda os conjuntos de alunos mais velhos, em geral pertencentes a faixas etárias muito superiores àquelas correspondentes às séries que cursam.
Os menores índices de enraizamento são encontrados ainda entre os conjuntos de repetentes, multirrepetentes, os que freqüentaram por mais de uma vez os inúmeros, e por vezes desconexos, projetos de aceleração e progressão de aprendizagem, com histórias pregressas de abandono escolar. São aqueles, portanto, submetidos ao “modo precário” de escolarização. Nos grupos de menor enraizamento, a ação da seleção escolar apresenta padrões inusitados ainda que dramáticos. Os desenraizados são também precariamente “documentados” em suas trajetórias marcadas pela descontinuidade em relação às séries cursadas, às escolas freqüentadas e aos turnos habitados, apresentando “buracos” mais ou menos extensos em suas histórias escolares. Por fim, eles configuram os conjuntos atendidos pelos professores recém chegados à instituição e também por aqueles em regime de trabalho precário (em suma, os professores desenraizados).
Este estudo nos permitiu perceber que a consolidação das táticas escolares de seleção sem exclusão vem criando, dentro da escola, modos desiguais de escolarização, cuja marca distintiva é a variação, às vezes chocante, do grau de precariedade que os diferentes modos expressam e incorporam. Por outro lado, as trajetórias marcadas por fragmentações e descontinuidades (em contraponto àquelas onde o fluxo contínuo por séries sem interrupções era a tônica) implicaram possibilidades desiguais de enraizamento e, por conseguinte, de experimentação e apropriação das leis, regras e códigos institucionais, mostrando que as trajetórias desiguais demarcam a diferença entre “habitar” a escola e “escolarizar-se”.
Assim, a forma particular com que a expansão da escola se deu fez com que a instituição passasse a tomar um aspecto “misto”, operando em seu interior com “zonas” de “baixa institucionalidade”, nas quais as “leis escolares” (sejam as da seleção, sejam as do controle) não são capazes de regular a instituição.
Instalando, assim, na escola, uma “nova” forma de desigualdade, que ao buscar inserir os extremos, as margens, as misérias, acaba criando no, interior dos espaços institucionais, zonas variáveis e múltiplas de despossessão, marcadas por mecanismos que não apenas colocam a institucionalidade em crise, mas também interrogam sua legitimidade e colocam em xeque seus próprios critérios de regulação.
Referências Bibliográficas
Algebaile, Eveline Bertino (2004). Escola Pública e Pobreza: expansão da escola dos pobres no Brasil. Tese de Doutorado, Niterói, UFF.
Fanfani, Emilio Tenti (2000). Culturas jovens e cultura escolar. Documento apresentado no seminário “Escola jovem: um novo olhar sobre o ensino médio”. Ministério da Educação e cultura, Secretaria de Educação Média e Tecnológica, Coordenação Geral de Ensino Médio. Brasília, 7 a 9 de Junho.
Peregrino, Mônica (2006). Desigualdade numa escola em mudança: trajetórias e embates na escolarização pública de jovens pobres. Tese de Doutorado, Niterói, UFF.
Publicado originalmente em http://www.controlesocial.org.br/boletim/ebul22/
Publicado originalmente em Março/Abril de 2007 - nº 22 - Boletim Ebulição - Ação Educativa