Correio Braziliense (DF) – 01/10
Sem estímulo para estudar e com pouca perspectiva de qualificação, alunos abandonam a sala de aula para trabalhar e driblar as necessidades
Paloma Oliveto e Mariana Flores
Da equipe do Correio
Luiz Ribeiro
Do Estado de Minas
Ronaldo Oliveira/CB
Maciel de Lima largou a escola para ajudar os pais: ganha R$ 12 por dia e quer colher cana em São Paulo
Na casa de taipa, há três cômodos, por onde dois patos passeiam à vontade. Não tem luz elétrica, água encanada nem esgotamento sanitário. O banheiro fica do lado de fora, no terreno que abriga todos os bens da família de Maciel Gomes de Lima, 17 anos, morador de Pedra Branca, a 268km de Fortaleza: três porcos, duas galinhas e um jumento. Há também a bicicleta, guardada dentro de casa. Custou R$ 100 e foi comprada com o dinheiro que o rapaz conseguiu juntar trabalhando na roça dos outros por oito horas seguidas, sem almoço, a R$ 12 por dia.
Maciel, que abandonou o colégio no ano passado — estava na 5ª série do ensino fundamental, sem saber ler — não vê a hora de completar 18 anos, no começo do ano que vem. Aí poderá realizar seu grande projeto de vida: cortar cana no interior de São Paulo.
Em busca de uma vida melhor, adolescentes e jovens trocam a escola pelo trabalho antes mesmo de concluir o ciclo fundamental. Alguns param nos primeiros anos, semi-analfabetos. A má qualidade do ensino os desestimula. A falta de perspectivas também. Outro que parou com os estudos neste ano — também freqüentava a 5ª série — foi Alessandro Francisco de Souza, 16 anos. O garoto, morador de João das Missões, no norte de Minas Gerais, deixou a escola para procurar um serviço, ainda não encontrado. “Saí por necessidade”, conta.
A varredeira Teresa Francisco de Souza, mãe de Alessandro, não se opôs ao fato de o filho ter abandonado os cadernos, diante da necessidade financeira. Mas diz que sabe o valor da educação na vida de uma pessoa. “Eu, por exemplo, se tivesse estudado, não estaria varrendo rua. Eu não quero isso para meus filhos.”
Teresa alega que com os R$ 380 que recebe não dá para pagar as despesas da casa. Ela relata que já recebeu R$ 45 do Bolsa Família, mas teve o benefício cortado há dois anos. Apesar da carência, mostra-se resignada. “Talvez, cortaram porque tinha gente precisando mais do que eu.”
Coordenador geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, o sociólogo Daniel Cara destaca a importância de investimento em políticas integradas, que garantam um ensino de qualidade e, ao mesmo tempo, preparem o jovem para o mercado de trabalho. “A educação é o primeiro passo, mas também é preciso abrir perspectivas de desenvolvimento”, diz.
No início do mês passado, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva lançou o novo ProJovem, programa unificado que visa à ampliação do atendimento a jovens fora da escola e sem formação profissional. Entre os cursos oferecidos, estão os de ladrilho, cozinheiro, almoxarife, pintor, eletricista e instalador de linhas e aparelhos de telecomunicações. Na ocasião, o secretário nacional de juventude, Beto Cury, afirmou que o programa vai “aumentar a qualidade daquilo que temos oferecido aos jovens brasileiros”. Para o professor e assessor especial da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) Célio da Cunha, ao dar oportunidade aos jovens de concluir o ensino fundamental, o programa já é um primeiro passo. Mas ele destaca a necessidade de políticas permanentes, que garantam bons resultados para corrigir as distorções conseqüentes da má qualidade da educação.
Autor do livro Bolsa Escola, educação para enfrentar a pobreza, o secretário nacional do programa Bolsa Escola em 2003, Marcelo Aguiar, vê o ProJovem com desconfiança. “Esse tipo de iniciativa certifica os jovens para o subemprego. O futuro desses jovens tem de passar, necessariamente, pela melhoria da escola”, alega.
Na segunda reportagem da série sobre evasão escolar em cidades com alto índice de dependência do Bolsa Família, o Correio relata a experiência de estudantes que abandonaram o ensino por não conseguirem conciliar estudos e emprego. Não trabalham porque querem. Eles precisam. Sem qualificação e com poucos anos de educação formal, dificilmente conseguirão sair do ciclo da pobreza. Quando tiverem filhos, é provável que virem os novos beneficiários do programa.
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O pedreiro e o servente
Ronaldo Oliveira/CB
Os esparadrapos nos dedos evitam que as pedras cortem a pele. O dia será longo para João Batista Teodósio da Silva, 17 anos. Ele conseguiu um serviço para ajudar no orçamento doméstico. Quanto mais metros de calçamento, mais dinheiro receberá. Fazendo 40m, ganhará R$ 70 naquele dia. Desde as 4h, está nas ruas de Tamboril do Piauí, a 444km de Teresina. O colégio ficou para trás. No ano passado, quando cursava a 6ª série do ensino fundamental, João Batista entrou para as estatísticas de evasão escolar do município. “Era coisa demais pra fazer. Não dava tempo de fazer os deveres, não”, justifica. Às vezes, o jovem pensa em mudar para São Paulo, procurar emprego de pedreiro ou coisa parecida. “Aqui a gente não consegue nada.” Em três dias, estará desempregado novamente. O serviço extra tem data para acabar. E a volta à escola está cada vez mais distante.
Mesmo os que superam as adversidades e lutam para trabalhar e estudar ao mesmo tempo têm dificuldades para transformar o diploma em um futuro promissor. Everaldo Teodósio da Silva, 24 anos, irmão de João Batista, é um deles. Terminou o ensino médio mas não consegue passar no vestibular. “Infelizmente, o ensino não é de qualidade, não.” O sonho é ser professor. Até agora, o único emprego que alcançou na escola de Tamboril do Piauí foi o de servente. Ganha R$ 380 por mês. São R$ 100 a mais que o irmão recebeu em quatro dias, calçando as pedras na rua da cidade.
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Em Tamboril do Piauí há 14 escolas públicas de ensino básico. Nenhuma tem biblioteca, laboratório de informática e
de ciências ou acesso à internet. Apenas um colégio tem microcomputador
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Meninos de engenho
Ronaldo Oliveira/CB
Escondido entre canaviais, no meio do caminho entre os municípios alagoanos de União de Palmares e São José da Laje, existe um barranco. Lá embaixo, moram Ivanilda e Ivanildo, irmãos que, além do nome, têm em comum o fato de serem analfabetos funcionais. Ela tem 15 anos. Ele, 12. Nenhum dos dois estuda. Largaram a escola por motivos diferentes. Ela porque acha que não vale a pena. Ele porque precisou trabalhar. Ivanilda estava na 5ª série. Lê pouco e, das operações matemáticas, só sabe somar. De manhã, ajudava a mãe, a viúva Marluce da Conceição, 47 anos, a cuidar da roça. Plantava milho e mandioca. À tarde, ia para o colégio. “Ficava exausta”, conta. Para piorar, a escola só tinha quadro-negro e carteira. Nada de computador, biblioteca, televisão. Quadra de esporte, Ivanilda não sabe o que é.
Ivanildo conta que o colégio era ruim. O garoto, que também estava na 5ª série, lê sílaba por sílaba e não entende o que está escrito no papel. Só reproduz o som. Mesmo assim, queria estudar. “Desisti porque precisei”, conta. Com a pensão de R$ 380 mais R$ 45 do Bolsa Família, Marluce começou a construir uma casa nova. Sem dinheiro para contratar operários, sobrou para Ivanildo. “Carrego tijolo o dia inteiro”, diz o menino. Os momentos de folga são dedicados aos canaviais de Alagoas: ele e a irmã ganham R$ 6 por dia para cortar cana. A mãe reconhece que precisa da ajuda, mas gostaria de ver os filhos estudados. “Eu mesma sou uma burra. Meu caderno e caneta foram a enxada”, afirma.
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Em São José da Laje (AL), existem 29 escolas públicas de ensino básico. Não há ensino médio. De todos os estabelecimentos, dois têm biblioteca, laboratório de informática e quadra de esportes. Em nenhum há acesso à internet. Em União dos Palmares (AL), das 68 escolas públicas de ensino básico, três têm biblioteca e quadra de esportes, quatro contam com laboratório de informática, e cinco possuem microcomputadores, sem internet
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A escolha de Moisés: estudar ou viver
Luiz Ribeiro/EM
“Preciso trabalhar para viver. Não tenho outro jeito.” É a explicação do adolescente Moisés Pereira Seixas, de 16 anos, morador de São João das Missões, no norte de Minas Gerais, que parou de estudar no início deste ano, na 5ª série. Moisés foi encontrado pela reportagem “fazendo bico” num depósito de material de construção. Ele não demonstrou nenhum arrependimento por ter interrompido a vida de estudante e disse que ganha cerca de R$ 280 por mês. O aposentado Carlos Seixas, 76 anos, pai de Moisés, afirma que deu muitos conselhos para o filho. “Pelejo com ele todo dia. Mas ele não ouve a gente”, diz.
Em Rancharia, distrito de São João das Missões, debaixo do sol forte, Jean Dias de Oliveira, de 16 anos, ajuda o tio, o pedreiro Francisco, a fazer a massa. Jean conta que estava matriculado na 6ª série e parou de estudar neste ano. “Parei porque não estava gostando mais. Não sou de estudar não”, diz.
O pai de Jean, o lavrador José Aparecido de Oliveira, nega que o filho tenha abandonado a escola. José Aparecido tem três filhos menores e demonstra preocupação em garantir que “todos eles estão estudando”. Logo, embora ele não tenha dito, dá para perceber o motivo de sua preocupação: o medo de perder o Bolsa Família. O lavrador está desempregado há um ano e oito meses e a salvação em sua casa vem sendo o benefício do governo federal.
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Em São João das Missões (MG), existem oito escolas públicas de ensino básico. Apenas três têm biblioteca, uma tem laboratório de informática e três têm microcomputadores.
Em nenhuma há acesso à internet
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O garoto que queria jogar bola
A rotina do adolescente Raimundo de Sousa Costa começa cedo. Morador de Buriti de Tocantins, localizada a mais de 600km da capital, Palmas, ele acorda às 5h para pegar o coco de babaçu, que cai das palmeiras da região. Montado em um jumento, faz, diariamente, três viagens entre a plantação e o vilarejo em que mora. Por dia, ganha R$ 6 com a venda da castanha, retirada do fruto. O dinheiro vai todo para as mãos do pai, que sustenta outros cinco filhos, além de Raimundo.
O pai recebe o Bolsa Família, mas Raimundo não sabe dizer o valor, assim como não sabe contar quantos irmãos ainda estudam. Com o cansaço provocado pela temperatura elevada, acima de 30° C na maioria dos dias, às vezes não consegue ir para a aula. Com 17 anos e cursando a 6ª série, Raimundo não se lembra nem mesmo quais anos da escola repetiu. Apesar do atraso, ele ainda não desistiu. “Quero ir para frente e estudar até quando der certo.” Raimundo só não sabe dizer aonde quer chegar. “Sonho? Tenho não. Queria ser jogador de futebol, porque acho que assim eu poderia ganhar dinheiro, mas desisti”, resigna-se o menino, que elegeu a geografia como a matéria preferida, apesar de nunca ter saído de sua cidade natal, que possui menos de 8 mil moradores. A vida profissional teve início aos 12 anos, quando começou a trabalhar em uma carvoaria. Mas ele continua sem saber o que é uma carteira de trabalho.
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Em Buriti do Tocantins (TO), há 16 escolas públicas de ensino básico. Não há ensino médio. Três colégios têm biblioteca, TV e vídeo, cinco possuem microcomputadores. Em nenhum há laboratório de informática, ciências, nem acesso à internet