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Tentando entender a violência gratuita

Jornal O Estado de São Paulo - Domingo, 1 julho de 2007/Metrópole

Crimes não têm relação simples de causa e efeito, diz psicanalista

No curto período de uma semana, o País viu um garçom ser assassinado em São Paulo por um grupo de oito amigos dispostos a brigar por qualquer motivo, uma empregada doméstica ser atacada no Rio por cinco jovens que imaginavam bater em uma prostituta, uma professora de Suzano apanhar de um estudante que se sentiu rejeitado, um aposentado morrer na Bahia após ser espancado por um homem que furou a fila de um banco. Quatro crimes, uma pergunta: por quê?

Os casos chamam a atenção tanto pela repercussão e indignação que criaram quanto pela falta de explicações. Os criminosos, na maioria jovens, poderiam estar em qualquer outra seção dos jornais. Não nas páginas policiais. Perguntas sobre o motivo desses crimes não faltam. Drogas? Falta de controle? Desleixo da família? Escola ausente? O que fazer diante de tanta violência gratuita?

“Precisamos de uma causa, de uma resposta ao porquê da violência. Só assim a gente consegue diminuir a nossa angústia social”, diz o psicanalista Jorge Forbes, membro da Escola Européia de Psicanálise. “O problema é que, nesses roteiros, a explicação foge ao que a gente está acostumado até hoje. A relação causa e efeito, simples e rápida, não existe mais.” Apesar disso, segundo especialistas ouvidos pelo Estado, a sociedade ainda exige soluções rápidas, palpáveis. A seguir, alguns argumentos para iniciar um debate que hoje não existe:

A violência, a corrupção, a impunidade levam à sensação do vale-tudo.

“Permitimos que entrem no Morro do Alemão e matem 19 sem saber quem eram essas vítimas. Como passar ética às novas gerações?”, indaga a socióloga Miriam Abramovay, membro do Conselho Nacional da Juventude. “É uma sociedade que dá muitos maus exemplos.” O mundo contemporâneo é violento e não permite o tempo da elaboração, acrescenta a psicanalista Cleusa Pavan, do Instituto Sedes Sapientiae. “Muitos não conseguem escapar ao imperativo do sucesso, do faça-se não importa como, do consumismo generalizado”, diz ela. A amarração social ocorre pela violência nas suas várias formas e atinge a todos. Nessa lógica e com uma sociedade onde violência, corrupção e impunidade são moeda corrente, ocorre a institucionalização da violação dos direitos humanos. “O outro se torna objeto, não é preciso interagir com ele.”

Consumir álcool e drogas justifica os atos brutais, como afirmou o pai de um dos agressores da empregada doméstica.

Não há comprovação científica que relacione consumo de álcool, cigarro ou drogas ilícitas com atos violentos. Nenhum deles é uma fábrica artificial da violência, assegura Dartiu Xavier da Silveira, professor do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo. Ele lembra que é na juventude que muitas pessoas têm seus primeiros contatos com o álcool e as drogas e a maioria não sai por aí batendo nos outros ou matando.

Quando se vêem com o problema do alcoolismo ou dependência, os pais inicialmente negam que haja um problema dentro de casa. Depois ou agem complacentemente ou passam a controlar demais a vida do jovem. E muitos atribuem ao uso de psicotrópicos a alteração do comportamento dos filhos, mas a relação é a inversa. “Os que se tornam dependentes é porque têm problemas familiares”, afirma Silveira. O que não se pode confundir é consumo com tráfico de drogas, este marcado por ações criminosas e violentas.

A sociedade está mais violenta do que no passado.

O único consenso é que as pessoas estão mais individualistas e consumistas. “O que se vê são pessoas destituídas de espírito público”, diz o antropólogo da Universidade Federal do Rio Gilberto Velho, que há 30 anos trabalha com adolescentes. “Não há mais barreira moral, e sim desprezo, competição e indiferença um pelo outro. Não há espaço para um diálogo mais amplo entre as pessoas.”

Para o psiquiatra forense Guido Palomba, a falta de respeito ao próximo se revela nos menores atos do dia-a-dia. “De ultrapassar o farol vermelho a gritar com o outro motorista, ou mesmo chegar ao ponto de agredir alguém, é tudo uma questão de não respeitar o próximo”, afirma. “Isso cria uma cultura de indiferença, que no final das contas gera alguma forma de violência. E ninguém está sabendo lidar com isso.”

Pouquíssimos pais estão sabendo como educar os filhos de hoje.

Para o psicanalista Jorge Forbes, há um grande conflito de geração - os mais velhos simplesmente desconhecem os jovens de hoje, superinformados desde pequenos pela televisão e pela internet. “Os pais estão desarmados, porque os filhos parecem saber muito mais do que eles”, diz. “Os jovens tem informação de sobra. Mas não têm formação. Isso não quer dizer que seja ruim ou bom, é só diferente. Os adultos que não estão sabendo lidar com essa nova realidade. Eles precisam descobrir logo o que é música eletrônica, Second Life... Só assim para retomar o diálogo e diminuir a distância.”

Nas últimas décadas, é cada vez maior a tentativa de associar a juventude à violência, sobretudo em grupos fechados.

O jovem é e sempre foi gregário. Precisa conviver em turma. Por desconhecer a vida externa dos filhos e temendo que se tornem violentos, os pais acabam censurando, impondo controles. Em vez de diálogo, há proibição. “Os pais devem tentar entender o que é o grupo do filho, a sua simbologia. Todos os grupos estão na internet, é possível compreender seus sentidos”, sugere o educador Paulo Carrano, coordenador do Observatório Jovem, da Universidade Federal Fluminense. Daí, com informação, é hora de procurar uma linguagem comum. Abrir o diálogo e não recriminar um comportamento. “A sociedade se dá pela multiplicidade das tribos”, diz Jorge Forbes. “Evidente que os grupos têm influência no jovem. Mas os pais não querem se perguntar por que seus filhos resolveram entrar numa determinada tribo.”

Muitas famílias exigem que a escola sirva para educar seus filhos.

“A escola é um lugar fechado, que não aceita a participação dos pais, da sociedade nem dos alunos”, diz a socióloga Miriam Abramovay. “O jovem não vê a escola como o espaço dele. Por isso, há a pichação, a depredação, o roubo de computadores, a agressão.” Com isso, a juventude perde mais um espaço para o diálogo. “Frouxo ou rígido, esse modelo de escola não funciona nos dias de hoje”, diz o antropólogo Gilberto Velho. “É preciso não só transmitir informação, mas também passar valores. Só não dá para esperar que os educadores façam o trabalho sozinhos.”

Jovens pobres e ricos agem violentamente pelos mesmos motivos.

A juventude tem um leque de opções enorme e pela liberdade que conquistaram são responsáveis pelas escolhas. No passado, os pais participavam desse processo. Hoje, o jovem está só na hora de decidir pelo emprego, pela escola, pelo lazer, pelas amizades. Tem de caminhar numa estrada com várias bifurcações. Agressão gratuita, sim, pode ser um dos caminhos.

“Ricos passam a vida inteira num condomínio fechado e, no momento em que saem, estranham o diferente, são incapazes de reconhecer as diferenças”, diz o educador Paulo Carrano. No caso dos pobres, eles também vivem enclausurados, mas nos seus bairros sem serviços e onde as escolhas são limitadas. “Muitos crimes dos pobres são voltados pela sedução do consumo.” As ações violentas praticadas por jovens, independentemente da classe social, não têm uma explicação simples, como muitas vezes clama a sociedade, desesperada para ignorar o problema. “Esses atos são também apelos, um jovem gritando ‘Alguém cuide de mim, pelo amor de Deus’”, alerta a psicanalista Cleusa Pavan.