A reportagem mostra a opinião de Ana Karina Brenner, do Observatório Jovem, do juiz da 37ª Vara Criminal do RJ Geraldo Prado, e de Raquel Willadino, do Observatório de Favelas sobre a diminuição da responsabilidade penal no Brasil
Foto: Ratão Diniz - Imagens do Povo - Escola de Fotógrafos Populares do Observatório de Favelas do Rio de Janeiro
Proposta que reduz a idade penal de 18 para 16 anos entra em pauta toda vez que um jovem pobre comete um ato infracional contra alguém da classe média
No boletim eletrônico do Observatório de Favelas do dia 9 de agosto foi lançada a enquête “você é a favor ou contra a redução da maioridade penal no Brasil?”. O resultado foi equilibrado - cerca de 53% se posicionaram contra e 47% a favor – mostrando que o abismo social e a sensação de insegurança que toma conta das grandes cidades acabam provocando o enrijecimento da opinião pública em relação às políticas de segurança.
A discussão sobre a redução da maioridade veio à tona recentemente com o assassinato do guitarrista da banda Detonautas, no último dia 4 de junho. Rodrigo Netto foi morto em uma tentativa de assalto no Rocha, zona norte do Rio. Um dos suspeitos do crime tem 16 anos e está detido no Instituto Padre Severino. Na ocasião o jovem negou à juíza Adriana Angeli, da 2º Vara da Infância e da Juventude, que disparou contra o músico. Entretanto, em entrevista ao jornal O Globo, em 21 de junho, confessou que matou Rodrigo contando com riqueza de detalhes como aconteceu o crime. A contradição que cercou a confissão do jovem suspeito acabou favorecendo o debate. Para a psicóloga e mestre em educação, Ana Karina Brenner, do Observatório Jovem da UFF, trata-se de uma luta de classes. “Toda vez que um adolescente pobre comete um crime contra alguém da classe média se discute a redução da maioridade penal”, ressalta. O mesmo aconteceu em 2003, quando a estudante Gabriela Prado Maia foi morta durante um assalto na estação de metrô São Francisco Xavier, na Tijuca. Os criminosos não eram menores de idade, mas reincidentes do sistema penal.
O ECA
Impossível discutir redução da maioridade sem nos remetermos ao ECA. Criado em 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente institui a responsabilidade penal a partir dos 18 anos. Ana Karina afirma que este marco foi estipulado por critérios políticos que se articulam a um processo de maturação neurológica e psicológica que depende muito do ambiente social onde se vive. “Antes disso, os adolescentes têm dificuldade de entender a irreversibilidade dos seus atos”, analisa. Entretanto, a psicóloga pontua que podemos explicar o comportamento dos adolescentes, mas não justificá-los. “Se ele comete um ato infracional deve responder por isso. E a resposta do próprio Estatuto é punitivo associado ao estabelecimento de um processo sócio-educativo”, esclarece. Segundo ela, as medidas contidas no ECA são a Prestação de Serviços à Comunidade, Liberdade Assistida, Semi-Liberdade, Internação Provisória e Internação. “O adolescente perde o seu direito de ir e vir”, acrescenta.
Antes do Estatuto, havia um código de menores onde estava definido que crianças abandonadas ou que cometiam atos infratores teriam que ter suas vidas transformadas pelo Estado. Todas eram recolhidas para uma mesma instituição, as Febem’s. O ECA surgiu para romper com isso, estipulando que toda criança e adolescente são iguais, independente da classe social. A proposta, porém, ainda não está bem compreendida pela sociedade, tampouco sendo aplicada como deveria. O que se vê nas atuais unidades de internação é que as medidas sócio-educativas voltadas para os adolescentes infratores não estão sendo implementadas de acordo com o Estatuto. “Não podemos dizer que o Estatuto falhou na possibilidade de reduzir o índice de adolescentes infratores porque ainda não foi aplicado de acordo”, afirma Ana. “Por enquanto a sociedade é que fracassou na aplicação dos mecanismos estabelecidos”, finaliza.
A Constituição
Entre os projetos que tramitam no Congresso Nacional está a proposta de emenda da constituição (PEC 26) de autoria do Senador Íris Rezende (PMDB/GO) que “altera o artigo 228 da Constituição Federal, para reduzir a idade prevista para a imputabilidade penal, nas condições que estabelece”. Contrário à redução, o juiz da 37ª Vara Criminal, Geraldo Prado, chama a atenção para os direitos fundamentais da criança e do adolescente. “Toda criança e todo adolescente tem os mesmos direitos fundamentais que os adultos e, além desses, outros especiais”, considera. Entre os direitos especiais garantidos na constituição para os adolescentes e as crianças, está o de não serem responsabilizados criminalmente antes dos 18 anos. “Independentemente do grau de conscientização ou maturidade de um adolescente, nós constituintes entendemos que a punição criminal é um castigo enorme para alguém nessa faixa etária, por mais grave que seja o ato que venha a praticar”, justifica. O magistrado ainda reforça que trata-se de uma cláusula pétrea, ou seja, regra que não admite retrocesso.
Do ponto de vista da luta de classes, Prado vai mais além. Para ele, o debate da redução da maioridade é um retorno disfarçado do autoritarismo que insiste em criminalizar adolescentes, especialmente os que moram nas favelas e periferias. “É todo um projeto de criminalização contra um grupo de pessoas que são ‘indesejáveis’ na sociedade”, discute. “Há mais negros dentro das cadeias do que nas universidades”, exemplifica.
Os direitos humanos
O debate da responsabilidade penal esbarra também na questão do sistema prisional. Pesquisas do censo penitenciário revelam que as unidades de internação têm índices de reincidência menores do que as prisões. Os dados não são precisos, mas em 1995/96, a Febem registrou cerca de 65% de reincidentes enquanto que nas penitenciárias o índice foi de 80%. Já em 2003, o índice caiu para 30%, chegando a 12% nas unidades mais próximas do perfil do ECA. Os números comprovam que o caminho é investir no sistema sócio-educativo, ao invés de superlotar as penitenciárias brasileiras.
A doutora em psicologia social e coordenadora do Núcleo de Direitos Humanos do Observatório de Favelas, Raquel Willadino, aponta a ausência de reflexão sobre o sistema penitenciário neste debate. “Não podemos jogar os adolescentes dentro de um sistema que intensifica os problemas que o levaram para lá”, posiciona-se. Ela prevê que ao reduzirmos a idade penal, estaremos inserindo cada vez mais crianças nas atividades ilícitas. “Reduzir não trará nenhum benefício, a não ser um retrocesso no campo dos direitos”, enfatiza. “Temos que reorganizar o sistema em função do adolescente enquanto sujeito de direito”, sugere.
De acordo com Raquel, o movimento de direitos humanos se posiciona contra a redução da maioridade penal no Brasil. “Existe uma Frente Parlamentar que prioriza a discussão sobre criança e adolescente intervindo no Congresso Nacional em favor do ECA”, informa.
*Karine Mueller é jornalista do Observatório de Favelas do Rio de Janeiro.
Sobre o assunto
Assista aos filmes:
Justiça, de Maria Augusta Ramos, Brasil (2004), documentário.
Ônibus 174, de José Padilha, Brasil (2002), documentário.
Os incompreendidos, de François Truffaut, França (1959).
Pixote – a lei do mais fraco, de Hector Babenco, Brasil (1981).
Como nascem os anjos, de Murillo Sales, Brasil (1996).
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