Os jovens, as redes sociais de internet e a educação[1]
Entrevista - Paulo Carrano
Professor Associado I da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF). Membro permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFF. Bolsista Produtividade do Cnpq – nível 2. Coordenador do Grupo de Pesquisa e Extensão Universitária Observatório Jovem do Rio de Janeiro/UFF – http://www.uff.br/observatoriojovem
Ao longo da sua trajetória você deu especial atenção à relação dos jovens com a cidade. Já é possível perceber alguma alteração dessa relação a partir da popularização das redes sociais de internet?
Paulo Carrano – A relação do jovem com a cidade surgiu para mim com a percepção de que a educação não se esgota na escola. Essa é uma afirmação aparentemente banal, mas se olharmos para o campo pedagógico é a escola que possui a centralidade das representações e sobre o fazer educativo. E isso é compreensível, especialmente, em um país como o Brasil que possui uma grande dívida social acumulada frente à escolarização de qualidade de sua população. Educação passa a ser quase sinônimo de educação escolar. Eu fico lembrando Fernando de Azevedo, no livro Cultura Brasileira, quando ele diz que educação é sistema escolar e cultura é tudo aquilo que não é sistema escolar e produz significados. Então na minha tese de doutorado, reconhecendo a importância de cada vez mais investir na educação, qualificar a própria escola, fui perceber também que havia tantos outros espaços e tempo educativos que poderiam ser potencializados. Entendo a educação não com um acento adjetivado e positivo, a educação pode mesmo ser algo negativo. A história humana está cheia de exemplos de como é possível ensinar coisas muito perversas para as outras pessoas, então, a educação é também um campo de disputa de valores e de sentidos, e na cidade esses espaços e tempos de educação, mais ou menos institucionalizados, estão o tempo todo sendo disputados. Há uma classificação na área pedagógica, que não me agrada porque não define todo o processo, mas que tenta esquematizar os tempos e espaços da educação. A educação formal seria a escola, a educação não formal seria a daqueles espaços educativos com alguma intencionalidade para educar, um curso livre ou um curso de línguas, e a educação informal seriam aqueles espaços onde a educação acontece sem que ninguém espere que ela aconteça, uma festa, a sociabilidade da praça. Essa divisão é um pouco esquemática, porque nos espaços da educação formal, como a escola, há muita informalidade, por exemplo. O recreio é o espaço do lúdico, o não formalizado, e há educação, há relação de gênero, aprendizagens. E os espaços-tempos da denominada educação não formal ou informal também se relacionam com a história das aprendizagens formais escolares. Por isso que eu não gosto muito desses esquemas, mas entendo que essas categorias do educacional ajudam a perceber que existem espaços-tempos educativos para além da escola. A minha trajetória de pesquisador é marcada por essa busca de enxergar os múltiplos tempos e espaços do educativo, especialmente, na cidade. A minha tese de doutorado foi sobre a sociabilidade em grupos de jovens na cidade Angra dos Reis. Interessou-me saber como eles e elas, se associando em torno dos seus interesses lúdicos, de arte, esporte e cultura, vão criando também processos de interação, aprendizagem social, enfim, processos culturais e educativos. Penso a internet e as redes sociais, não como um mundo a parte, mas como projeção desses mundos vivenciais da juventude e também um campo próprio de sociabilidade não dependente de encontros presenciais. Tenho afirmado que as redes de internet, no lugar de substituir a vida pública, a vida do encontro da cidade, pode mesmo potencializar os encontros. É claro que se você não apostar de fato em espaços públicos presenciais, ela pode ser um sucedâneo, mas aí não depende da internet. Isso não é responsabilidade das redes sócio-técnicas, mas consequência de uma sociedade que não está investindo em espaços públicos, ou por falta de segurança, ou por falta de políticas públicas ou por consolidação de um tipo de sociabilidade apartada, no sentido de apartamento, de viver à parte, mas aí, reafirmo, isso não é responsabilidade da internet. Muitos jovens que usam a internet como espaço de sociabilidade a usam também como plataforma de encontros presenciais. Isso acontece já há algum tempo com os antigos encontros do mirc e agora acontece com os encontros das fanpages, encontro dos jovens que são seguidores do youtube, do twitter etc.
Continuando o tema do engajamento e dos encontros presencias, na época das grandes manifestações que aconteceram no ano de 2011 como a primavera árabe, os movimentos de ocupações das ruas ao redor do mundo, as redes sociais foram exaltadas como principal ferramenta que possibilitou a mobilização de tantas pessoas, especialmente dos jovens. Você acredita que esse novo contexto pode estar favorecendo estas formas de engajamento?
Paulo Carrano – Pode, e como ferramenta. Mas o que é preciso frisar antes de tudo é que o que nós chamamos de redes sociais, são na verdade redes sociotécnicas, elas não funcionam sozinhas, elas precisam de redes sociais humanas em interação. O uso das redes sociais na Primavera Árabe, por exemplo, foi, em grande medida, extensão de antigas sociabilidades que aconteciam em casas de chá, em universidades, em madraças, espaços presenciais e que foram potencializadas com as redes sociais. Então, mesmo quando houve por parte do governo ditatorial do Egito o bloqueio do espaço virtual, antes de os Estados Unidos distribuírem equipamentos de satélite para que a rede pudesse voltar a funcionar, naquele momento de interrupção da comunicação pelo celular e internet, as pessoas continuaram se encontrando, as manifestações nas praças continuaram acontecendo, isso porque eles estavam utilizando um capital de rede social, pré-técnica, pré-rede sociotécnica. Então, há muita mistificação neste debate sobre as redes sociais serem criadoras da ação coletiva, elas não criam a ação coletiva, na medida em que as pessoas se reúnem elas podem ser uma ferramenta poderosa. O professor Milton Santos costumava dizer que pela primeira vez na história da humanidade vivemos no mesmo meio técnico-científico-informacional, onde um jovem no Japão tem potencialmente o mesmo acesso que o jovem da Índia e da África. Potencialmente, ainda que a desigualdade não permita que todos tenham o mesmo acesso, isso é inédito no mundo, mas não é isso que cria a mobilização. Agora, por outro lado, na medida em que as pessoas estão dispostas ao encontro, estão com uma pauta de ação em comum, as redes são instrumentos poderosos.
Voltando a falar da relação entre a cidade, os espaços de socialização e a educação: há tempos se aponta que a diversificação dos espaços de socialização juvenil tem gerado uma crise nas instituições que cumpriam esse papel tradicionalmente, como a família e a escola. Você acredita que o acesso dos jovens às redes sociais aprofunda essa crise?
Paulo Carrano – É, pode aprofundar, mas aí não vem nenhum tipo de sinal catastrofista. Crise, no ideograma chinês, costuma-se dizer, significa impasse e alternativa. Na verdade, o que está em jogo, voltando ao debate entre o que é técnico e o que é social, é que nós vivemos um processo de aprofundamento daquilo que se inaugurou com a modernidade que é a emergência do indivíduo, ou seja, nós estamos aprofundando algo que começou há pelo menos 500 anos que é a abertura para maior emergência do campo do individual. Processos de individuação são também processos de destradicionalização, dinâmicas societárias onde o peso das âncoras do passado, das tradições, das instituições, vão se tornando menos incidentes, menos atuantes e as pessoas vão ganhando mais campo de possibilidades para escolher, isso em todas as áreas. Então, se você pensar, por exemplo, as relações de gênero, hoje é inadmissível uma filha se casar com alguém porque o pai determinou, há cem anos atrás isso era quase uma obrigação. O recente remake da novela Gabriela mostrou o papel da mulher subordinada em sociedades tradicionais. Em alguns lugares do mundo não ocidentalizados, como o Afeganistão, a situação ainda é persistente e as meninas ainda são oferecidas como dotes entre famílias. Vive-se, hoje, intensamente a emergência do indivíduo e o campo da perda progressiva do poder das instituições. Alguns autores como François Dubet, dirão que as instituições encontram dificuldades na afirmação de seus programas institucionais frente ao campo maior de autonomia dos indivíduos. A família, a escola, a igreja e todas aquelas organizações sociais mais ou menos formalizadas que estipulam regras de comportamento tem dificuldades de impor seus modelos. Isso pode criar desorientação entre as gerações mais jovens que precisam conviver com um mundo inflacionado de oportunidades de escolhas, ainda que muitas delas não sejam realmente possíveis de se realizar plenamente frente aos condicionantes sociais. As pessoas estão com um campo de possibilidade de escolha tão grande que a falta de ancoragem e a falta de parâmetros institucionais estabilizados podem desorientá-las. Os jovens substituem ou complementam as orientações que vêm de famílias ou instituições clássicas como a escola ou a igreja, com as orientações que chegam dos seus grupos de pares e também fortemente pelo fluxo de informações das redes sociais e os diferentes mercados culturais. Isso é positivo por um lado, porque criou um leque maior de escolhas, mas é preocupante por outro com sujeitos que ainda estão construindo o campo da própria experiência. É neste ponto que entra o papel mediador dos educadores quer sejam professores de escola quer sejam pais, outros adultos ou mesmo também jovens em relações de aprendizagem ou de amizade. É preciso instaurar processos múltiplos de socialização de experiências e saberes para que as escolhas, nesse campo societário de maior abertura para a eleição, possam ser feitas com maior liberdade. Esse deveria ser o objetivo de toda educação: fortalecer o campo de subjetivação para que o sujeito possa fazer boas escolhas. As redes sociais podem propiciar mais elementos para a montagem do rol de escolhas, mas também podem ser fontes de angústia do ter de escolher num universo infinito de possibilidades e no quadro da referida perda das referências estáveis fornecidas pelas instituições. Tudo está em movimento e por isso é importante fortalecer os eixos de equilibração dos sujeitos.
Você costuma alertar que no meio de tanta informação é importante que os jovens aprendam a criar filtros. Você tem alguma sugestão de como isso poderia acontecer na prática no cotidiano escolar?
Paulo Carrano – Eu costumo dar o exemplo de Lévi-Strauss, na diferença que estabeleceu entre o cru e o cozido como um demarcador dos estágios civilizatórios. Lévi-Strauss afirmou que o que diferenciaria uma sociedade primitiva de uma civilização seria a arte de cozinhar, a diferença entre o cru e o cozido, ou seja, as próprias sociedades se organizam quando elas passam a cozinhar os alimentos e isso seria um estágio civilizatório superior. Etnocentrismos à parte, esta figura culinária nos permitiria dizer que os jovens estão, especialmente eles, imersos em um mundo de muita informação, cruas, que precisam ser processadas. Informações importantes, essenciais; informações negligenciáveis, secundárias, acessórias; informações eticamente válidas e informações eticamente indesejáveis para uma sociedade democrática, ou seja, isso tudo está na internet e eles têm que fazer escolhas. E como fazer essas escolhas sozinhos? Esta parece ser a grande arte da educação, hoje. Ou seja, o engenho e a arte de estar junto dos jovens e das crianças para que eles e elas façam escolhas mediadas. Então, na verdade, essa ideia de filtro é a ideia de que as pessoas possam ser auxiliadas a fazer boas escolhas sem abrir mão da autonomia neste campo da valoração. Eu também posso fazer escolhas pelos outros e entregar cardápios prontos, não é essa a questão, uma lista de coisas a escolher. Mas, insistindo na metáfora do cru e do cozido, é preciso cozinhar processos informativos e transformá-los em conhecimento, sabendo que o conhecimento é um produto histórico e social. Muitas vezes, na internet, as informações chegam desistoricizadas e é preciso historicizar esta informação. Estamos diante de um desafio para o estabelecimento de pautas de atuação dos educadores que podem ter um relevante papel de mediação nesse processo de transformação de informação midiatizada em conhecimento socialmente válido.
Em uma palestra você citou a metáfora do conhecimento em árvore que teria dado origem à organização curricular tradicional e alertou que estaria havendo um grande mudança na forma como esses conhecimentos são hierarquizados no contexto da internet e das redes que a internet proporciona. Você poderia falar um pouco mais dessas mudanças?
Paulo Carrano – Ainda em relação à questão anterior, para complementar, eu me recordei da fala do Umberto Eco a respeito da sua exposição realizada no Louvre, em 2009, Vertige de la Liste. O literato Umberto Eco foi convidado para realizar uma exposição e perguntou: “Bom, sobre o que?” e disseram “Você é o Umberto Eco, sobre o que você quiser”. E ele falou: “Então, vou organizar uma exposição sobre aquilo que eu acho significativo hoje do ponto de vista da cultura” que é a capacidade que cada um de nós temos de organizar boas listas. Essa capacidade de organizar boas listas é a dimensão do que poderíamos chamar de nosso nível cultural. Os dez melhores livros, os dez melhores filmes, as dez melhores coisas para se fazer em Paris ou em qualquer outra cidade e isso depende de filtros, de capacidade de selecionar informações e transformá-las em conhecimento. E isso não se faz sozinho. O exemplo que ele dava era da lista do Google: o Google faz uma lista que não é uma lista qualificada em si, é uma lista que tem uma série de critérios, inclusive critérios de mercado, de visitação, critérios que não passam por um filtro de qualidade cultural, por exemplo, e a pessoas têm que ser capazes de definir, da lista do Google, qual é o conhecimento mais qualificado ou eticamente adequado. E o exemplo que ele dá é que em uma pesquisa que ele fez com a palavra Martin Luther King, no topo da lista apareceu um site racista. Então, um jovem que não conheça a história da luta dos negros americanos e do protagonismo de Martin Luther King, é capaz de achar que o Martin Luther King é um racista, isso é muito comum em trabalhos escolares, “control+c/control+v”. Então, a capacidade de organizar boas listas é também a capacidade de selecionar o que é significativo do que não é significativo, essa é uma questão fundamental. Do ponto de vista da metáfora do conhecimento em árvore, essa é uma discussão que acompanha a própria sociedade moderna, ou seja, o conhecimento se organiza de modo hierarquizado na sociedade moderna. As ciências duras são as mais relevantes nos currículos escolares, a física, a química, a matemática; há uma árvore do saber que situa em seu centro as ciências ligadas à natureza e à racionalidade e os ramos mais frágeis vão articulando aquilo que seria mais próximo ao corpóreo, ao sensível, então, é uma dicotomia, um dualismo que a modernidade instaura entre corpo e mente, entre razão e sensibilidade, a natureza e a cultura. E essa hierarquia da árvore do saber se manifesta nos currículos escolares. Há pesquisas que mostram que existe um crescente de valoração que vai das ciências duras, físico-químicas e matemáticas, até as artes e as expressividades. Essa é a chamada árvore do saber, a sociedade hoje não rompeu totalmente com essa hierarquia, mas ela começa, com essa profusão de relacionamentos, a instaurar a possibilidade de que as redes sociotécnicas promovem de descentramento dos lugares de produção do saber e de desorganizar essa lógica. Ou seja, de possibilitar que o conhecimento possa a ser também algo acessado e produzido em rede e não apenas em árvore. A ideia de que eu preciso aprender isso para depois aprender aquilo, que é muito característica dessa fase da organização do conhecimento, não encontra correspondência em uma forma de conhecimento em rede. Eu posso aprender isso deixando uma lacuna, porque isso que eu aprendi faz sentido para essa tarefa, esse objetivo que eu tenho. Diferentemente, numa lógica de organização em árvore, eu preciso cumprir etapas. Eu costumo dizer que eu sou de uma escola dos manuais, que eu preciso ler o manual para aprender a usar os equipamentos, já os meus bolsistas, os jovens contemporâneos, os jovens de hoje, não leem manual, eles vão descobrindo a lógica dos equipamentos usando aquilo que é necessário. A escola tem dificuldade de trabalhar com essa lógica da rede porque ela organizou seus tempos e espaços dentro da concepção de árvore. É isso que faz a ideia da hierarquia que coloca o professor no topo da árvore e o aluno na parte baixa aguardando que o “fruto do saber” despenque. O divórcio entre o saber e o fazer, que a escola ainda elogia hoje, encontra mais dificuldade de se processar e acontecer em uma lógica de conhecimento em rede. A lógica do conhecimento em rede provoca a aprender coisas que tenham utilidade e que possam fazer sentido do ponto de vista da aprendizagem. Não se sustenta muito em uma lógica de conhecimento em rede aquilo que não faz sentido, não necessariamente aquilo que tenha utilidade, pois não se trata de elogiar o pragmatismo, mas aquilo que não faz sentido em uma lógica de conhecimento em rede não se galvaniza, não se agrega, e então é deixado de lado. A escola se organiza curricularmente a partir de uma lista hierarquizada em árvore. Os currículos aprisionam conteúdos e objetivos que precisam ser testados artificialmente, provados, ou mesmo ser utilizados, quem sabe, em um dia longínquo da universidade, esta que ainda é para poucos. A escola que conhecemos insiste em ensinar de forma hierárquica e muitas vezes abstrata e isso é a porta aberta para o esquecimento, porque é a falta de sentido que faz a não retenção do saber.
As redes sociais atuais, especialmente o facebook e o twitter dissolveram as fronteiras que ainda havia na internet entre as ferramentas de comunicação interpessoal, como o email e o chat, e os espaços de acesso à informação, como portais de notícias e blogs, favorecendo a repercussão quase imediata das notícias. Quais poderiam ser as consequências desse imediatismo para os jovens que se formam neste contexto?
Paulo Carrano – Primeiro vamos pelo lado positivo. Há um processo de massificação que o século XX viu crescer com as mídias, as chamadas mídias clássicas, mas que em certo momento não foram clássicas, eram até mesmo revolucionárias. O rádio e a televisão foram processos de massificação, ou seja, polos emissores de conhecimento, de informações e de verdade unidirecional. Ainda que saibamos que nenhuma recepção midiática é passiva, há mediação mesmo na recepção televisiva, o poder de formulação do telespectador ou do rádio ouvinte, encontra-se diminuído frente ao polo original da emissão da informação. O que a internet trouxe como possibilidade, especialmente essa internet, que chamam de 2.0, compartilhada, interativa, onde cada um pode ser o emissor de informação, foi desmassificar esse processo. Hoje, qualquer um pode da sua casa, do seu computador, do seu celular, emitir opinião, emitir uma verdade e atingir um grande número de pessoas no bairro, no país ou mesmo em diferentes lugares do mundo. Então, as verdades se pluralizaram, já não vêm apenas de um único centro. Isso não quer dizer, vale a pena frisar, que haja total horizontalidade. Os poderes de enunciação nas redes são assimétricos. Há ainda polos emissores de verdades informacionais que são hegemônicos. As grandes redes de televisão, nós temos no Brasil a hegemonia de uma rede de televisão que exibe em cerca de 99% dos municípios. Duas grandes redes de televisão hegemonizam a transmissão de informação nesse país, mas há uma contrafação disso na possibilidade de cada um ser fonte de informação, ser um terminal significativo de mensagens. Com o compartilhamento, com a amplificação exponencial da capacidade das redes sociais, isso pode ser até uma contracultura, mas ao mesmo tempo o fato de cada um, em potência, poder ser um emissor não significa que todos serão emissores com a mesma qualidade. Aqui estamos diante de um desafio educativo. O jornalismo, por exemplo, ao longo da sua história, construiu valores de apuração de fatos, de separar fato de inverdade, de respeitar fontes, checar informações, enfim, todo um jogo de conhecimento, de construção do saber e de ética que não se aprende só porque se tem um terminal de computador disponível para emitir notícias. Essa que é a grande questão, para mim. Eu vejo que muitas das informações que circulam pela internet não são checadas, não são historicizadas, muitas montagens de vídeo são a-históricas. Se quero fazer uma crítica, por exemplo, ao poder, eu pego um ditador da década de 30 e coloco um presidente da redemocratização do Brasil no mesmo vídeo, dizendo: “isso tudo representa o poder”. Ou seja, isto é uma informação pobre, desistoricizada, mas eu tenho o direito de emitir até uma informação errada, a grande questão é qual é a capacidade do leitor de filtrar essa informação. E, mais uma vez, estamos diante do tema do filtro e da mediação. A grande questão não é que existam pessoas produzindo informações equivocadas, isso pode ser visto pelo seu lado positivo, ou seja, mais pessoas podem até falar coisas erradas ou inverdades, o grande problema é se o outro lado não responde adequadamente com pessoas capazes de filtrar e separar e fazer as boas listas das quais falávamos antes. É preciso, ainda no campo das informações jornalísticas, estabelecer distinções entre aquilo que é uma informação jornalística qualificada, uma inverdade intencional ou uma inverdade cometida por má formação.
Em uma palestra para coordenadores do ensino médio você defendeu que a escola deveria ser o espaço de instauração do tempo lento em meio a um contexto em que os jovens têm acesso a informações diversas e em uma velocidade que desafia a capacidade humana de compreensão. O que seria exatamente esse tempo lento?
Paulo Carrano – Essa expressão tempo lento, eu estou pegando de empréstimo do professor e geógrafo Milton Santos. Ele situa o tempo no contexto das redes sociotécnicas e das redes de poder e capital em uma sociedade que produz desigualdades, que produz assimetrias que é a sociedade capitalista. O professor Milton Santos diz que uma das características da sociedade capitalista é sua velocidade, sua voracidade em destruir tempos e espaços, promover destruições criativas em torno da valorização do lucro. Ele chama atenção de que frente a esta velocidade capitalista que busca sempre a valorização do lucro, há o tempo lento dos homens simples, o tempo daqueles que cultivam modos de vida em torno da solidariedades, em torno dos espaços desmercantilizados, e de relações de ajuda mútua, as comunidades populares, as comunidades que têm uma relação não-predatória com a natureza, os modos de vida que respeitam os tempos cíclicos da natureza e os tempos humanos da transformação. Ele chama atenção de que nem tudo deve ser velocidade e eu acho essa metáfora importante para a educação escolar. A narrativa da tecnologia e dos potenciais da internet e mais especificamente das redes sociais, parece, por vezes, ser um elogio acrítico apenas à velocidade, ao fluxo veloz e irrefletido da informação. A velocidade das aprendizagens pode ser também a velocidade do descarte e há que se colocar resistência a esse processo. Não apenas do ponto de vista de cessar ou de fazer diminuir esse fluxo de valorização da informação, mas também de criar e instaurar tempos de reflexão, porque essa velocidade não permite que se instaurem processos de reflexividade. Nessa arte de resolver a vida, como diria a professora Ana Clara Torres Ribeiro, também na escola, a escola pode ser uma câmara de sociabilidade para aprendizagens mais lentas. Isso pode ser feito até mesmo utilizando a internet. A própria escola pode usar a internet, por exemplo, para cuidar mais das informações, para, no lugar de apenas acumular conteúdos, trabalhar com menos informações para produzir conhecimentos significativos. Eu penso que, por vezes, a escola pode ser um contraponto a essa velocidade e isso significa que nem todos os espaços precisam estar online. É preciso instalar espaços off-line, espaços copresenciais, de escuta, de toque, espaços de experimentação corpórea. Esse tempo lento é impossível de a internet prover, pois é o tempo do encontro do que incorpóreo. Por exemplo, uma defesa radical da internet como sucedâneo da escola, seria também uma defesa das homeschools, a capacidade de que eu pudesse aprender apenas virtualmente, de maneira remota, prescindindo do contato de meu corpo com outros corpos que a escola traz. Estamos, então, diante de uma questão crucial para a formação humana. Olhando apenas para minha capacidade de acumular informações posso dizer: “eu posso acumular mais informações dessa maneira, sozinho em casa ou com um tutor à distância do que presencialmente”, mas se olharmos para o processo educativo de uma maneira mais integral, poderemos concluir que não podemos abrir mão da copresença como condição de uma educação em bases democráticas. É preciso também relativizar, junto com a narrativa da velocidade, o peso da inovação nos espaços e tempos educativos. A inovação não é algo bom em si mesmo. Há uma dialética entre o novo e o velho, assim como há uma dialética entre a velocidade e o tempo lento, que é preciso preservar. A escola não mudou muito do século XIX para cá e eu acredito que ela não vá mudar radicalmente nos próximos anos, enfim, não vamos fazer futurologia, mas ela vai se abrindo para inovações, sem dúvidas, mas essas inovações precisam dialogar, muitas vezes até mesmo na forma de conflitos mediados, com a cultura escolar – material e simbólica – que temos hoje. Essa mistura entre a velocidade e a lentidão, a inovação e a experiência acumulada das práticas escolares, pode ser interessante tanto para trazer novidades como para fazer com que as novidades dialoguem com a memória, por exemplo.
Por outro lado, defende-se que haja aulas mais dinâmicas, que a escola esteja mais adaptada a essa velocidade, o que é um pouco contraditório com essa ideia de tempo lento que você defende.
Paulo Carrano – É essa ideia de substituição de uma coisa por outra que está equivocada. A escola pode receber esta inovação, pode ter lousa digital, produzir interações pela internet, mas ela pode também preservar. É preciso fazer um inventário distinguindo o que é preciso preservar como valor coletivo daquilo que se deve descartar ou mesmo substituir por conexões remotas. Isto não está dado, ninguém tem essas respostas, cada escola deveria fazer esse seu próprio inventário. Que tipo de espaço e tempo escolar deve ser preservado e que tipo de espaço e tempo escolar deve ser radicalmente transformado? E, talvez, a internet e as redes sociais possam ajudar a transformar esses espaços e tempos. No meu ponto de vista não me parece mais produtivo, contemporâneo e efetivo para a própria instituição escolar, manter a ideia, que estava já no nascimento da escola, de que é o professor que apresenta o mundo aos jovens. Essa ideia, por exemplo, já não cabe mais. O professor pode contar uma verdade científica e o jovem acessar o computador e falar: “mas professor, em um laboratório, de um país x ou y, descobriram que essa não é mais a verdade científica”. E o professor terá que lidar com essa situação. Ou seja, isso é uma afronta a sua autoridade docente ou é um desafio para que os currículos fossem mais dinâmicos e contemporâneos? Aliás, deveríamos repensar a noção de grade curricular, instituindo um léxico que dê mais conta da organização do conhecimento em rede. As redes sociais e essa maior liberdade de acesso ao conhecimento e à informação provocam a escola. Por outro lado, a velocidade e a confusão promovida pelo excesso de informações, muitas delas pouco qualificadas, podem encontrar na escola um antídoto. O especialista Nicholas Carr faz um alerta: “precisamos olhar criticamente a tecnologia. A leitura dispersiva da tela do computador leva à distração. O leitor distraído não lê em profundidade, ou seja, a forma como as pessoas leem interfere na forma como escrevem”. Ele está chamando atenção para o fato de que as muitas janelas abertas, a velocidade das redes, não criam um leitor atento. Talvez a escola tenha que produzir processos de maior aprofundamento da leitura, como contraponto a essa velocidade das redes de internet. Neste caso estamos diante de duas esferas educativas que precisam dialogar. Não se trata, então, de pura e simples contraposição entre uma coisa e outra. Agora, para a escola possa fazer um inventário entre o que pode incorporar daquilo que lhe chega pelas redes de internet e aquilo que ela pode preservar como cultura escolar, ela precisa fazer a leitura crítica das tecnologias. Neste sentido, os professores precisam aprender a fazer essa crítica se lançando também neste mundo da internet e das redes sociais. Se o professor não entrar nesse mundo para ler criticamente as tecnologias ele não vai saber fazer o próprio filtro daquilo que pode ser um contraponto à velocidade, por exemplo. Assim, é preciso ler criticamente as tecnologias. O próprio aluno não é apenas um aluno. Quando eu digo “o meu aluno”, estou priorizando parte do que aquele sujeito é, ele é também um indivíduo de identidades múltiplas e muitas dessas identidades estão nas redes sociais. Essa é outra questão, o uso das redes sociais pelas escolas pode ser instrumentalizado. Há um risco de as escolas tentarem levar a sua lógica para as redes sociais. Aquela lógica da árvore e da hierarquia de conhecimentos, a lógica de “primeiro isso e depois aquilo”. Esta seria uma forma inadequada de pedagogização das redes sociais. Este não me parece o melhor caminho a ser feito. A outra maneira e que me parece também equivocada, é se abrir totalmente para as redes sociais e dizer: “bom, a lógica das redes sociais é a melhor lógica, a lógica da escola morreu e vamos agora todos aprender em rede social”. Esta perspectiva de fetichismo tecnológico também não parece que iremos longe. Isoladamente, cada uma das perspectivas citadas levam ao desequilíbrio. Para fazer o equilíbrio de um prato na culinária, por exemplo, para retomar a metáfora do cru e do cozido, é preciso conhecer os temperos e esse é um problema que as pesquisa têm demonstrado, o grande gap de conhecimento e de experiência que os professores têm frente aos seus alunos. Seus alunos são muito mais especialistas em redes sociais do que seus próprios professores. Neste sentido, estes precisam apreender este meio para poder dialogar.
O que você acha do que tem sido difundido sobre a chamada geração y, esses jovens nascidos entre o final dos anos 80 e no princípio dos 90 que seriam extremamente informados, adeptos da cultura colaborativa e produtores de conteúdo para a internet? Uma vez que a maior parte dos jovens têm acesso bastante precário à internet, você acredita que possamos estar diante de mais um grande desafio para a promoção da igualdade de oportunidades?
Paulo Carrano – Todas as vezes que falamos em geração estamos cometendo uma verdade e uma mentira. A verdade é que sempre que nós chamamos a atenção a um grupo geracional, recortamos arbitrariamente um grupo pretensamente homogêneo segundo a data de nascimento. Mas, por outro lado, quando nós falamos que determinada época é geração x ou y, nós estamos deixando de fora muitas pessoas que não fazem parte dessa mesma pretensa geração unificada. Assim, dependendo do uso do conceito de geração, isso pode ser uma verdade ou uma grande mistificação. Em grande medida, o uso das expressões geração x ou y está sendo utilizado pelos mercados para decodificar e interpretar demandas de públicos consumidores para vender produtos para mercados específicos. Então, essas categorias têm uma funcionalidade para o mercado, eles conseguem identificar perfis de consumidores, e não apenas identificar, eles acabam produzindo necessidades de consumo e também os próprios consumidores para os quais venderão as suas marcas e produtos. Geração é uma verdade, mas, em geral, uma verdade de mercado. Por outro lado, sociologicamente, esse conceito de geração tal como é apresentado, especialmente nos contexto da análise das redes sociais, pode assumir também ares de imprecisão. Isso porque o conceito de geração também implica a vivência do mesmo tempo e espaço e dificilmente, em uma sociedade desigual como a nossa, em um mundo desigual como o nosso, as pessoas vivem os mesmos tempos e espaços, as mesmas experiências; as pessoas podem ser coetâneas do tempo, terem a mesma idade, e não serem coetâneas dos espaços. Então, um jovem pobre é da mesma geração temporal, mas não é da mesma geração espacial ou experiencial, então não faz sentido dizer que eles são da mesma geração. Por outro lado, as desigualdades vão criando essas assimetrias, então, dizer geração da internet faz sentido para muitos jovens que tem acesso à internet de banda larga, entretanto, já faz menos sentido para jovens que têm acesso à internet, mas não têm acesso gratuito, ou que têm acesso a uma banda que não é larga, que é lenta. Estes jovens, por exemplo, não vão acessar vídeos que outros acessarão. E faz muito menos sentido para jovens que não têm acesso a nenhum tipo de conexão com a internet. No Brasil de hoje há uma parcela significativa de jovens que não têm acesso a computador, este número chega a 30% dos jovens brasileiros. Assim, ainda que não se possa ignorar o conceito de geração que pode ser conceitualmente interessante e adequado em situações especificas de interpretação de grupos concretos, o que temos que saber é sobre quais populações nos referimos quando falamos de geração. Do ponto de vista da escola pública ainda há pouca acessibilidade à internet. Temos escolas que mesmo quando têm acesso à internet dão uso limitado e restrito aos seus laboratórios, controlam excessivamente o tempo de uso, não confiam no bom uso dos seus computadores e das suas redes pelos jovens e pedagogizam o uso da internet. Então, de certa maneira, usam apenas parte do potencial da rede na produção de saberes, valores e conhecimentos e, por outro lado, não exercitam seus alunos para a liberdade de escolha uma vez que o tempo escolar é um tempo excessivamente tutelado. Temos o desafio de transformar a geração de jovens que estão na escola em usuários criativos e potentes da internet. E isso também nos espaços-tempos da escola.
[1] Entrevista realizada por Carolina Real, bolsista do Portal Ensino Médio EMdiálogo, em agosto de 2012.
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Assista aqui ao vídeo com o debate "Por que tanta exposição". Sobre a exposição dos jovens nas redes sociais. Programa Conexões/Canal Futura. Exibido em 28.03.2014