Enquanto Belo Horizonte se destaca pelo cumprimento do ECA, em Abaetetuba (PA) garantias são ignoradas
Condições precárias: nas sala de aula sem forro, o sol bate forte no rosto dos estudantes
Dois mil e novecentos quilômetros separam Belo Horizonte (MG) de Abaetetuba (PA). A distância geográfica, porém, não é maior do que o abismo entre as duas cidades no que se refere à garantia dos direitos das crianças e dos adolescentes
Enquanto a capital mineira foi reconhecida nacionalmente pela Fundação Abrinq por fortalecer a rede de proteção à infância, o município paraense ganhou fama internacional por um motivo vergonhoso: a denúncia, em dezembro do ano passado, da prisão de uma menina de 15 anos numa cadeia comum, com 20 homens, onde sofreu abuso sexual.
Dezoito anos depois da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Belo Horizonte ainda caminha para assegurar a plenitude da garantia de direitos, mas os resultados começam a aparecer. Os conselhos tutelares estão bem estruturados, os programas sociais funcionam e a capital investe 31% do orçamento na população infanto-juvenil. “Os programas e projetos em curso ainda não atendem toda a demanda, mas houve muito avanço nos últimos anos, isso é inegável”, afirma o conselheiro tutelar da Região Leste, Samuel Viana Moreira.
Em Abaetetuba, ao contrário, meninos e meninas não são prioridade. “O poder público só funciona sob pressão”, admite o bispo Flávio Giovaneli, ameaçado de morte por denunciar o caso da adolescente encarcerada. Resta à sociedade civil unir forças para enfrentar as mazelas que atingem as crianças, como exploração sexual, trabalho infantil e tráfico de drogas. A Pastoral do Menor, ligada à arquidiocese, é a organização não-governamental mais atuante na cidade, e busca, por conta própria, garantir os direitos da infância. Um trabalho penoso, num local onde meninas se prostituem durante o dia, crianças perdem membros do corpo nas olarias, meninos traficam e são usuários de drogas.
O Correio e o Estado de Minas mostram, hoje, as duas realidades conflitantes. De um lado, a cidade que busca respeitar os 267 artigos do Estatuto. De outro, o município onde o ECA parecer sequer existir.
Abaetetuba (PA) — Todos os dias, a Feira da Farinha arrasta uma multidão ao porto da cidade. Tem gente que sai de municípios vizinhos para comprar peixe, toucinho, temperos, raízes medicinais e produtos industrializados, que passam por espelhinhos com moldura laranja a cigarros falsificados. Há também quem vai comprar o corpo de crianças, vendido a R$ 10. Dois reais mais barato do que o preço de um frango assado.
Mal começa a escurecer e as meninas iniciam a peregrinação pelo cais. Dividem o espaço com os urubus, ávidos por restos de comida. Ninguém as perturba. Às vezes, uma ou outra oferece seus serviços na feira ainda pela manhã. Quartinhos nas sobrelojas, que cobram R$ 15, são usados para os programas. Mas, às vezes, os próprios barcos servem de cenário.
“Criança pequena fazendo programa? Tem demais. Um tenente da Polícia Militar é freguês de todas, mas eu sou a preferida dele. O tenente também dá dinheiro pra gente comprar drogas.” Quem conta é a prostituta Shirley*, 24 anos, nas ruas desde os 6. Entre suas concorrentes, há uma família inteira: uma menina de 13, uma adolescente de 16 e dois jovens de 18 e 21, ambos travestis. A mãe, de 48 anos, dependente química, tenta justificar: “Estou desempregada, passando dificuldades. Então a gente vai tentando se virar”. Na casa sobre palafitas, de três cômodos, o esgoto corre a céu aberto. No único quarto, não há camas, somente uma rede. O único enfeite é uma imagem do Coração de Jesus, pregada na geladeira vazia de comida.
Símbolo de violação
Cidade paraense às margens do Rio Maratauíra, distante cerca de 80km da capital, Abaetetuba continuaria sendo apenas um pontinho cravado no mapa do Pará se, em dezembro do ano passado, o caso de uma adolescente de 15 anos, trancafiada na cadeia pública com 20 homens, não tivesse corrido o mundo e a tornado símbolo da violação dos direitos da infância. Histórias como a dela e a da família que se prostitui causam pouco impacto entre os moradores de uma cidade acostumada, historicamente, a maltratar suas crianças. “Eu mesma já fiquei presa naquela cadeia. Dormia no corredor”, diz Shirley, com uma calma perturbadora. E, com a concordância de muitos habitantes de Abaetetuba, arremata: “Ela ficou presa com os homens porque quis. Aquela menina não presta”.
“Aquela menina” era vista como estorvo pelos moradores. Afinal de contas, segundo eles, roubava, usava drogas e dava trabalho aos professores. “Ninguém gostaria de tê-la como vizinha”, atesta o bispo da cidade, dom Flávio Giovenali, ameaçado de morte por denunciar as violações aos direitos humanos cometidas na região. A adolescente, diz ele, é reflexo das condições socioeconômicas. E o que aconteceu com ela, o retrato do abandono por parte do poder público. “É um problema do próprio sistema carcerário. Não tem onde colocar os menores infratores. O que fazer com eles?”, questiona. Depois que prisão da garota veio à tona, a delegacia acabou demolida. Não há previsão para a construção de uma nova.
Há mais de uma década na cidade paraense, o bispo denuncia a falência do sistema educacional que, para ele, é uma “fábrica de analfabetos, de gangues e de homicídios”. Até a quarta série do ensino fundamental, a educação é municipalizada e não faltam vagas. Porém, o índice de evasão é alto: 35%. “As crianças repetem, repetem, acham que são burras e acabam desistindo”, diz dom Flávio, que usa dados oficiais do Ministério da Educação. Da quinta à oitava séries, o problema se agrava. Por ano, mil crianças que deveriam passar da quarta para a quinta ficam sem estudar por falta de vagas. “No melhor dos casos, se 75% delas ficarem quietinhas em casa, isso já significa 250 adolescentes nas ruas, sem fazer nada. E isso numa estatística otimista”, ressalta.
Tráfico internacional
Se as ruas das cidades são sinônimo de risco para crianças e adolescentes, em Abaetetuba o perigo é redobrado. A partir de meados da década de 1990, o município passou a integrar a rota internacional do tráfico de drogas. Os entorpecentes vêm de Medellín, na Colômbia, e têm como destino a Guiana, de onde partem para a Europa. O posicionamento geográfico da cidade — rodeada por ilhas — dificulta a fiscalização e atuação da polícia. “Hoje, além da exportação, há consumo interno. As bocas-de-fumo funcionam com a conivência de policiais. Alguns vão uniformizados receber a propina”, denuncia Giovenali. “O tráfico de drogas não sofre nenhum arranhão.”
O resultado pode ser observado nas zonas periféricas da cidade. Em meio às casinhas sobre palafitas, há aglomerados de jovens de manhã até a noite. Aos 14 anos, Jonas** já foi preso por tráfico. Ajudava o pai, vendedor de maconha, a distribuir a droga pela cidade. Na delegacia, uma policial recebeu suborno de R$ 250 para liberá-lo. A mãe do adolescente garante que ele não é usuário. Diferentemente de um outro menino, de 8 anos, que já se tornou dependente químico.
Falta de horizonte
Em Abaetetuba, quem quer fugir da quase condenação a um futuro de marginalidade e abandono tenta, bravamente, se apegar às poucas opções disponíveis numa cidade onde não há cinemas nem teatros. Eliana da Conceição Ferreira, 14 anos, participa da Pastoral do Menor, movimento da Igreja Católica que organiza cursos e atividades de cidadania voltados aos adolescentes. Uma das tarefas do grupo é o estudo do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Eliana conta que um dos direitos garantidos pelo ECA e violados na cidade é o acesso à escola. Estudante da oitava série da Escola Estadual Professora Terezinha de Jesus Lima, a menina sofre com as condições precárias. As salas de aula não têm forro. O sol bate forte no rosto dos estudantes que, não à toa, acabam abandonando o estudo. Somente neste ano, 500 alunos pediram transferência para outras escolas. Muitas ficaram sem vagas. “Nem dá gosto de estudar assim”, diz Eliana.
O mesmo problema é enfrentado por Laura*, 15 anos, menina que quer estudar direito para evitar que as crianças sejam vítimas de violações. “No ano passado inteirinho ficamos sem dois professores. Mesmo assim, passaram todo mundo para a outra série”, diz. Além das condições físicas precárias da escola, ela enfrentou, até o mês passado, outra dificuldade para estudar. Órfã de pai aos 3, abandonada pela mãe aos 6, Laura trabalhava para ajudar a avó, que recebe um salário mínimo por mês, a pagar as contas.
Até o ano passado, ela cuidava de três crianças das 12h às 21h. Ganhava R$ 120. “Mas não dei mais conta, era muita coisa para fazer”, conta. Recentemente, começou a trabalhar para uma comerciante, fabricando velas de umbanda. “Já me queimei muito. Tem que puxar o pavio com a vela ainda quente, é um trabalho muito chato.” Só largou o ofício porque a lojista não pagou o que devia. O irmão de 10 anos, por exemplo, continua na labuta. Vende caroço de açaí das 17h às 23h, a R$ 2 por dia, sem ser incomodado por nenhum agente público. “Acho que é por isso que ele já repetiu três vezes a segunda série”, arrisca Laura. (PO)