Paulo Carrano (UFF) e Ana Karina Brenner (UERJ)
O vídeo a seguir é um dos produtos da Pesquisa Jovens Fora de Série e apresenta dispositivos metodológicos com a utilização de fotografias. Um primeiro uso da fotografia foi na forma de um varal de fotografias-conceito que ajudaram a disparar o diálogo grupo de discussão com jovens da pesquisa. O segundo uso foi a produção de fotografias pelos próprios jovens para falar de si e de seus processos de individuação. As fotografias deram, então, suporte a entrevistas compreensivas e geraram novos materiais para a interpretação dos percursos biográficos em análise na investigação.
O objetivo geral da pesquisa Jovens Fora de Série (CNPq e FAPERJ) – de natureza metodológica quantitativa e qualitativa – é o de revelar e compreender trajetórias de escolarização e percursos biográficos de jovens estudantes em situação de defasagem escolar em escolas públicas de Ensino Médio no Rio de Janeiro. Buscamos compreender o fenômeno da denominada “escolarização truncada”, caracterizada por reprovações, abandonos e retornos à escola, à luz da referida sociologia à escala individual de forma a produzir dados que nos permitissem reconhecer “desafios em comum” e sondar sobre os diferentes arranjos de busca de suportes para a superação das provas aos quais esses jovens estudantes foram submetidos.
No mês de novembro de 2012 foi aplicado questionário estruturado em turmas de EJA e do Projeto Autonomia – de “correção de fluxo” – em 14 escolas de quatro regiões geográficas da cidade do Rio de Janeiro, que envolveu 963 respondentes de idades que variaram entre 16 e mais de 50 anos. Com o objetivo de delimitação da pesquisa no público jovem, depurou-se o banco de dados da etapa quantitativa de forma que obtivemos o número de 593 jovens com idades entre 17 e 29 anos, matriculados em turmas de EJA (61,6%) e no Projeto Autonomia (36,9%). A amostra reuniu estudantes matriculados nos três turnos escolares, sendo 74,2% no noturno, 17,3% de manhã e apenas 7,4% matriculados à tarde. Os questionários foram aplicados nas três séries do Ensino Médio, sendo 17,6% no primeiro ano, 32,4% no segundo ano e 47,1% no terceiro ano (CARRANO, MARINHO e OLIVEIRA, 2015).
Um novo momento da pesquisa foi inaugurado no ano de 2014. Esta etapa consistiu na realização de entrevistas narrativas biográficas com jovens que declararam interesse, no momento do preenchimento do questionário estruturado, em participar da segunda e qualitativa etapa da pesquisa. Pretendeu-se com estas entrevistas conhecer percursos biográficos juvenis dando especial atenção às dinâmicas territoriais e sua incidência sobre as trajetórias escolares, assim como a outros aspectos que a literatura científica demonstra serem decisivos às trajetórias de vida e escolarização, tais como as estratégias familiares para a conquista da longevidade escolar, a inserção no mundo do trabalho e a própria qualidade da vida escolar que pode significar fator de atração ou repulsão frente ao prosseguimento dos estudos. A fase qualitativa da pesquisa foi realizada através da realização de entrevistas narrativas e envolveu 19 jovens de ambos os sexos e com idades até 29 anos. As entrevistas foram gravadas em qualidade de áudio e imagem para, além da análise de conteúdos, ser produzido o vídeo-documentário de pesquisa que se encontra em fase de finalização. Foi realizado também grupo de discussão com seis jovens aos quais foram apresentadas fotografias que provocaram reflexões sobre seus percursos biográficos e expectativas de futuro.
Ao longo da realização das entrevistas e da decupagem do material registrado, bem como a partir das reuniões de trabalho da equipe de investigação sobre o material coletado, levantou-se a possibilidade de realização de uma terceira etapa de pesquisa que permitisse acompanhar um grupo menor de jovens em seus percursos cotidianos. Interessava conhecer e registrar aqueles aspectos significativos de suas vidas narrados nas entrevistas. Neste sentido, novas estratégias e instrumentos de pesquisa foram integrados ao processo em curso extrapolando, assim, os planos inicialmente traçados no projeto de investigação.
O que se pretendia era aprofundar as possibilidades reflexivas dos sujeitos participantes da pesquisa em torno de suas trajetórias de vida, das provas enfrentadas e dos suportes (MARTUCCELLI, 2007) acionados por estes jovens no sentido da superação dessas provas. Com este intuito lançou-se mão de dois dispositivos metodológicos que permitiram que os jovens produzissem imagens de si e sobre si, ou seja, registros deles próprios em suas ações cotidianas e de representações sobre o passado vivido e suas projeções para o futuro.
O primeiro dispositivo foi fotográfico. Cada um dos três jovens participantes desta etapa da pesquisa recebeu, sob empréstimo, uma máquina fotográfica digital. Um membro da equipe explicou a proposta, os objetivos enquanto tudo era novamente registrado em áudio e vídeo. O dispositivo foi tratado como um “desafio ou tarefa fotográfica” em torno de duas perguntas: a) sua vida poderia ser fotografada? b) o que você fotografaria? Sugeriu-se, com estas questões, um exercício projetivo de fotografias que poderiam ser feitas e assim os jovens foram descrevendo espaços concretos de seus cotidianos mas também imagens menos concretas que poderiam representar experiências, acontecimentos, sentimentos, projeções, expectativas de futuro. Após uma breve explicação sobre funcionamento e funcionalidades da máquina e possíveis enquadramentos para as fotos os jovens receberam uma cartela para registro de fotos escolhidas. Em tempos de máquinas digitais é possível registrar um sem número de fotografias, contudo, o principal da tarefa de reflexão sobre si recai sobre a escolha das fotos, daquelas que melhor representam aquilo que se pretende mostrar. Neste sentido os jovens poderiam registrar quantas fotos quisessem mas deveriam escolher entre 15 e 18 fotos para serem apresentadas à equipe de pesquisa em novo encontro marcado com 2 a 4 semanas de intervalo após este primeiro encontro.
“Uma imagem vale mais que mil palavras” já virou um jargão mas não é necessariamente uma verdade estética ou científica. Muito daquilo que se vê em uma imagem expressa, além das intenções e os acasos significativos de seu produtor, também as experiências, sentimentos, conhecimentos e pré-noções de quem olha. Ou seja, “(...) numa imagem existem também os tantos sentidos daquele que, com sua história, suas emoções e suas memórias, vê a imagem” (ALVES, 2015: 174).
Neste sentido, o retorno das fotos para uma nova conversa sobre elas era fundamental para se compreender o que e porque os jovens haviam feito e escolhido os registros fotográficos apresentados. Neste processo de retorno da produção realizada a partir do dispositivo fotográfico muitos temas já abordados nas entrevistas foram retomados com novos conteúdos e interpretações alternativas dos jovens sobre suas próprias experiências e trajetórias de vida. Houve temas repetidos e em alguns casos poucos elementos novos foram acrescentados além daquilo que emergira e havia sido registrado nas entrevistas, mas em outros, o processo reflexivo ficou bastante evidente na medida em que os novos olhares dos jovens sobre si haviam sido produzidos a partir do registro e olhar das imagens produzidas.
Um segundo dispositivo, de vídeo, foi introduzido com o uso da mesma máquina digital entregue aos jovens – para dois deles de maneira subsequente e para um deles simultaneamente em função das disponibilidades de cada um para o intervalo de produção das imagens. Com o dispositivo de vídeo esperava-se dar continuidade ao processo autorreflexivo dos jovens e também obter registros de imagens que poderiam ser usadas no vídeo documentário e que dificilmente poderiam ser registradas por uma equipe de filmagem sem que isto significasse significativa interferência na situação registrada.
Ao comparar as produções e retornos dos dois dispositivos foi possível observar o melhor resultado, em termos de processos autorreflexivos, na produção das fotografias do que dos vídeos. Ainda assim, os vídeos efetivamente produziram imagens significativas para o vídeo documentário seja em função do olhar peculiar de cada jovem sobre suas realidades seja pela preservação da cena vivida sem a interferência da equipe de pesquisa ou mesmo pela exclusiva interferência do jovem, produzindo imagens de sua vida da maneira que melhor gostaria de vê-la representada.
O desafio interpretativo deste momento da pesquisa será a análise das fotografias produzidas pelos jovens, em diálogo com a bibliografia de referência, e em conjunto com os elementos adicionais de registro de campo composto por diário de notas e filmagens das narrativas dos jovens sobre a própria produção fotográfica. Um dos desafios da investigação será o de produzir análises que descrevam a utilização dos dispositivos e os relacionamentos dos participantes com os mesmos tendo em vista seu potencial heurístico e de produção de reflexividade. Em síntese, trata-se de indagar em que medida os dispositivos contribuem para a compreensão do histórico dos processos de individuação e da mesma forma ativam na situação de encontro de pesquisa novos campos de reflexividade e autonomização.
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Para citar este artigo:
CARRANO, Paulo Cesar Rodrigues; BRENNER, Ana Karina. O Dispositivo fotográfico na Pesquisa Jovens Fora de Série. 2017. Página do Grupo de Pesquisa Observatório Jovem do Rio de Janeiro/UFF. Disponível em: <http://www.uff.br/observatoriojovem/materia/o-dispositivo-fotogr%C3%A1fico-na-pesquisa-jovens-fora-de-s%C3%A9rie>. Acesso em: 20 ago. 2017.
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Saiba mais aqui sobre a pesquisa.
Referências:
ALVES, Nilda. Imagens das escolas: sobre redes de conhecimento e significações em currículos escolares. In: Nilda Alves – Praticantepensante de cotidianos. Belo Horizonte: Autêntica, 2015, 173-180.
CARRANO, Paulo Cesar Rodrigues; MARINHO, Andreia Cidade e OLIVEIRA, Viviane Netto Medeiros de. Trajetórias truncadas, trabalho e futuro: jovens fora de série na escola pública de ensino médio.Educ. Pesqui.[online]. 2015, vol.41, n.spe, pp. 1439-1454. ISSN 1678-4634. Disponível na Internet: http://dx.doi.org/10.1590/S1517-9702201508143413.
MARTUCCELLI, Danilo. Cambio de Rumbo: La sociedad a escala del individuo. Santiago: LOM Ediciones, 2007.