Acervo
Vídeos
Galeria
Projetos


A menina paraense que virou notícia

Pessoas sensíveis talvez não tenham conseguido passar da abertura das matérias. Cada uma acrescentava um dado a mais sobre a miséria, a falta de perspectiva e a degradante situação das pessoas mais humildes quando em confronto com as pequenas autoridades, como os carcereiros e delegados que abusam do poder e ameaçam aqueles que estão sob seu jugo

Por Ligia Martins de Almeida em 27/11/2007
Publicado pelo Observatório da Imprensa
 

A prisão de uma menina de 15 anos em uma cela com 30 homens – e a violência continuada que sofreu durante o período – indignou a mídia na semana que passou, a ponto de merecer um editorial do Estado de S.Paulo sob o título de "Vergonha nacional":

"No capítulo das grandes vergonhas nacionais, merece destaque o fato, especialmente sórdido, de vileza desmedida, que é a colocação de mulheres em celas com muitos homens, para que sejam exploradas e brutalizadas sexualmente... E o mais acachapante é que a governadora do Pará suspeita de que a prática é comum – não apenas em seu Estado, mas em outros locais do território nacional – para garantir sexo aos detentos (e assim, quem sabe, deixá-los mais calmos)". (Estadão, 25/11/2007)

Pessoas sensíveis talvez não tenham conseguido passar da abertura das matérias publicadas durante a semana. Cada uma acrescentava um dado a mais sobre a miséria, a falta de perspectiva e a degradante situação das pessoas mais humildes quando em confronto com as pequenas autoridades, como os carcereiros e delegados que abusam do poder e ameaçam aqueles que estão sob seu jugo. E, pior ainda, diante das autoridades maiores, como juízes, promotores e até governadores, que se escondem atrás de argumentos legais ou da desinformação para não tomar providências.

"Gritava e pedia comida"

A leitura das revistas e jornais permite traçar o quadro completo da miséria nacional, a partir do abuso cometido com uma adolescente numa remota cidade do norte do país.

A Veja desta semana (nº 2036, de 28/11/2007), começa a matéria "Presa, estuprada e torturada" comovendo os leitores com a descrição física da vítima:

"Aos 15 anos, L.A.B. mede 1,50 metro e pesa 35 quilos. Tem a compleição física de uma criança de 12 anos. Todos os dias, L. era violada de cinco a seis vezes. A situação revoltou alguns dos presos, que disseram aos carcereiros que, além de ser uma menina, ela não podia ficar na cela com homens. Os policiais, então, cortaram o cabelo longo, liso e negro de L. à faca e rente à cabeça. Como seu corpo tem poucas curvas, ela ficou parecida com um rapaz."

A Folha de S. Paulo – "Todos sabiam que a menina estava no meio dos homens" (25/11/2007) – discute a omissão do público diante do abuso policial:

"`Era um show isso daqui. Todo mundo sabia que a menina estava lá no meio daqueles homens todos, mas ninguém falava nada´, disse uma mulher na delegacia, sexta-feira à noite. `Antes de comer, os presos se serviam dela´, lembra, inflamada, outra mulher, falando alto bem em frente à sala do delegado de plantão. Refere-se ao fato de os presos obrigarem a menina a praticar sexo como condição para lhe darem alimento. `Ela gritava e pedia comida para quem passava, chamava a atenção para si, e, como ela era conhecida por aqui, não dava para ignorar´, afirma outra."

O Brasil dos pobres

O Estado de S. Paulo, na matéria "Miséria e Prostituição na trilha de L., 15 anos" (25/11/2007), foi além dos concorrentes ao situar os leitores na situação em que vivem os moradores do município, "antigo produtor de cachaça, que hoje sofre com a grande quantidade de jovens viciados em drogas".

Sem tentar comover os leitores – como fez a Veja ao falar da fragilidade física da menor –, o jornal dá um retrato verdadeiro, cruel e talvez por isso mais comovente ainda da situação da jovem, ao dizer:

"Vivendo nas ruas e prostituindo-se desde os 12 anos, viciada em drogas, a menina, apelidada de Cartucheira, acabou presa em Abaetetuba. Com a anuência da Polícia Civil, Ministério Público e Judiciário, ficou entre os presos numa cela que pode ser vista da rua pela população, escancarando a tolerância da sociedade com aberrações cometidas pelas autoridades."

Mas, de toda a cobertura da imprensa, talvez a denúncia mais grave seja a do Diário do Pará (24/11/2007), na matéria "Polícia comunicou fato à Justiça", que informa:

"A Justiça teria conhecimento da situação da Delegacia de Polícia de Abaetetuba e houve falhas na comunicação entre os órgãos de Justiça e a Superintendência de Polícia Civil do Baixo Tocantins. É o que mostram documentos obtidos pelo Diário. Além disso, vários pedidos de transferências de delegacias do interior revelam que a situação se repete em outros municípios. Entre os documentos, um ofício, anterior ao escândalo, mostra que a Superintendência Regional do Baixo Tocantins, situada em Abaetetuba, solicitou a transferência da menor antes das denúncias virem à tona, ainda que com um inexplicável atraso de 14 dias em relação à prisão, ocorrida no dia 22 de outubro. A comunicação em tempo hábil poderia ter evitado que a presa sofresse tantos abusos. O ofício nº 870/07, de 5 de novembro de 2007, enviado pelo superintendente regional, Antonio Fernando Botelho da Cunha, e encaminhado à juíza da 3ª Vara Criminal de Abaetetuba, foi protocolado na secretaria do Fórum Penal no dia 7. No documento, o superintendente pede a transferência da presa para o CRF (Centro de Recuperação Feminino), em Belém, `em caráter de urgência (...) uma vez que não possuímos cela para o abrigo de mulheres, estando a mesma custodiada juntamente com outros detentos, correndo o risco de sofrer todo e qualquer tipo de violência por parte dos demais´ ."

Morosidade da Justiça, omissão governamental, abuso policial, somados a um quadro de miséria que obriga adolescentes a se prostituírem – por pura falta de opção e perspectivas – foram revelados nas várias matérias publicadas ao longo da semana. Graças a um escândalo que deixou leitores sensibilizados e foi um dos destaques da semana, a mídia acabou traçando um triste retrato de um Brasil que dificilmente ganha páginas dos jornais: o Brasil dos pobres e desamparados que não sensibiliza nem mesmo as mulheres no poder.

Leia mais sobre o assunto:

Secretário de Direitos Humanos pede proteção para mãe da adolescente presa com homens
Diário de Pernambuco (PE)
Correio Braziliense (DF)
28/11/2007

Ullisses Campbell e Izabelle Torres;

Além da mãe biológica, Paulo Vanucchi, pediu proteção para as quatro integrantes do Conselho Tutelar do município que denunciaram o caso e para a presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-PA

O secretário especial de Direitos Humanos, Paulo Vanucchi, pediu ontem (27) que a Polícia Federal dê proteção para as quatro mulheres integrantes do Conselho Tutelar de Abaetetuba que denunciaram o caso da adolescente que foi abusada sexualmente por detentos numa cela do município, e também para a mãe da jovem. A proteção policial, se concedida, também será estendida à presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil do Pará, Mary Cohen. Todas denunciam que recebem ameaças de morte. Hoje (28) as integrantes do Conselho Tutelar vão se reunir com deputados da comissão externa criada pela Câmara dos Deputados para investigar o crime. Amanhã (29) os parlamentares terão reuniões com a governadora do Pará, Ana Júlia Carepa. “Vamos saber quais atitudes efetivas as autoridades estão tomando para a responsabilização desses criminosos”, disse a deputada Maria do Rosário (PT/RS), coordenadora da Frente Parlamentar em Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente na Câmara e integrante da comissão.

Gravidez - Antes de deixar o Pará e ingressar no Programa Federal de Proteção de Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte, a adolescente fez testes de gravidez e HIV. Os resultados ficarão prontos hoje. A suspeita de que a jovem possa estar grávida foi confirmada pelo bispo de Abaetetuba, dom Flávio Giovenale. “Antes de viajar ela estava com tonturas e enjôos. Mas como ela seria usuária de droga e desde que foi tirada da delegacia passou a não consumir mais, pode ser que esses sintomas sejam uma crise de abstinência”, disse o religioso. Pela legislação brasileira, caso a jovem esteja de fato, grávida, terá o direito de interromper a gestação pelo Sistema Único de Saúde (SUS) – já que se trata de resultado de estupro – desde que consiga uma autorização judicial.

IML do Pará conclui exames de adolescente presa com homens
27/11/2007 - 19h27

da Folha Online

O IML (Instituto Médico Legal) do Pará concluiu nesta terça-feira as análises dos exames realizados na garota de 15 anos que permaneceu presa com 20 homens em uma cela de Abaetetuba. Os laudos com os resultados foram encaminhados às secretarias estaduais de Segurança Pública e de Direitos Humanos.

Os resultados devem apontar se a adolescente sofreu estupros, se está grávida ou se contraiu alguma doença sexualmente transmissível.

Os laudos, que ainda não foram divulgados oficialmente, devem comprovar que a menina é menor de idade. O Conselho Tutelar afirma que a garota tem 15 anos, mas os delegados envolvidos na prisão dizem que ela informou ser maior de idade e que havia sido presa outras vezes --e, inclusive, ouvida pela Justiça--, como maior de 18.

Hoje, o delegado-geral da Polícia Civil, Raimundo Benalussy, disse que a garota "tem certamente alguma debilidade mental porque em nenhum momento ela manifestou sua menoridade penal".

De acordo com o Conselho Tutelar, depois de ter sido retirada da cela masculina, a menina disse ter sofrido abuso sexual dos cerca de 20 presos da cela; ter sido obrigada a fazer sexo com eles em troca de comida; e ter sido agredida --ela tinha hematomas e marcas de queimadura de cigarro pelo corpo.

Com Agência Brasil

Garota dividiu cela com 20 homens no Pará
20/11/2007 - 22h34

SÍLVIA FREIRE
da Agência Folha

Uma jovem presa em flagrante por furto ficou detida em uma cela com cerca de 20 homens na delegacia de Abaetetuba, na região metropolitana de Belém, por pelo menos 26 dias.

Segundo o Conselho Tutelar do município, a jovem tem menos de 18 anos e disse ter sido abusada sexualmente pelos colegas de cela.

O delegado Celso Viana, de Abaetetuba, disse que a jovem ficou presa com outros detentos porque a carceragem da delegacia tem apenas uma cela. Apesar de Viana não ter feito o flagrante da jovem, disse que, ao ser presa, ela declarou ter 19 anos e se chamar Lidiane da Silva Prestes.

O conselheiro José Maria Ribeiro Quaresma afirmou ter recebido a denúncia anônima de que ela dividia a cela com outros presos no último dia 14. Segundo ele, a jovem tem 15 anos, conforme uma certidão de nascimento em poder do órgão, mas com nome diferente, que não foi divulgado.

A presa apresentava hematomas e queimaduras de cigarros pelo corpo. Ela foi submetida a exame de corpo de delito, mas o relatório não foi concluído.

Quando o conselheiro foi à carceragem, o delegado disse que retirou a detida da cela e a colocou numa sala, de onde fugiu. O delegado afirmou que não se lembra da data da prisão da jovem. Mas alegou que o pedido de transferência foi feito ao Judiciário no dia seguinte à prisão, mas que não recebeu autorização.

"A autorização para que fosse transferida nunca chegou aqui. O delegado não pode tomar uma medida desta [transferir um preso] sem ordem judicial", disse Viana.

Viana declarou também não acreditar que ela tenha sido submetida a abuso sexual, pois não fez nenhuma queixa aos agentes prisionais. Questionado se ela não teria tido medo de denunciar a agressão, ele disse que não.

No final da tarde, os juízes, promotores e defensores públicos de Abaetetuba divulgaram uma nota conjunta na qual afirmam que, pelos autos, Lidiane tem 19 anos e foi presa em 21 de outubro. Ainda segundo a nota, o pedido de remoção dela só foi encaminhado à Justiça no dia 7 de novembro, sem informar que ela dividia a cela com homens. Essa informação só foi levada ao Judiciário, segundo a nota, pelo Conselho Tutelar no último dia 14.

A Secretaria da Segurança Pública do Pará determinou abertura de procedimento disciplinar às corregedoria da Polícia Civil e do Sistema Penitenciário do Estado. A jovem foi transferida para um abrigo para adolescentes em Belém, segundo o Conselho Tutelar.