Acervo
Vídeos
Galeria
Projetos


Futuro Negado: Juventude é maior vítima da década da violência no país

Pesquisa da Organização dos Estados Ibero-americanos coloca o Brasil na liderança dos países com maior número de mortes de jovens por armas de fogo. Ausência de políticas sistemáticas de inclusão, educação e emprego torna a juventude ainda mais vulnerável

SÃO PAULO –  “A juventude é a época de mais mudanças e incertezas. Se neste contexto o jovem não tiver perspectivas de chegar ao mercado de trabalho, de continuar seus estudos, ele se torna completamente vulnerável e corre um grande risco de se envolver em situações ilegais pela simples falta de opções. Não tem presente, não tem futuro”. A avaliação acima é de Jorge Werthein, assessor especial do Secretário-Geral da Organização dos Estados Ibero-americanos pra a Educação, a Ciência e a Cultura (OEI). Nesta quinta-feira (16), a OEI lançou uma pesquisa que revela que o Brasil ocupa o primeiro lugar no mundo no ranking de mortes de jovens por armas de fogo. A taxa de 51,7 homicídios por 100 mil habitantes jovens registrada no país também coloca o Brasil no topo da lista de mortes violentas: é o terceiro, ficando atrás somente da Colômbia e da Venezuela. Os índices brasileiros são cerca de 100 vezes superiores aos de países como a Áustria, o Japão, o Egito ou Luxemburgo.

O estudo dá continuidade a um trabalho iniciado em 1998, quando foi elaborado o primeiro “Mapa da Violência: Os Jovens no Brasil”. Já naquela época as mortes representavam apenas a ponta visível do iceberg da violência generalizada que afeta e vitima a juventude do país. Mais três etapas foram divulgadas em 2000, 2002 e 2004. A pesquisa é resultado de uma análise das bases de dados do Subsistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), implementado pelo Ministério da Saúde, que centraliza as certidões de óbito emitidas. Para as comparações internacionais, foram utilizadas as bases de dados de mortalidade da Organização Mundial da Saúde (OMS), em cuja metodologia foi baseado o SIM. Os números publicizados esta semana são relativos ao período que vai de 1994 a 2004, quando os jovens de 15 a 24 anos representavam mais de 20% da população do país.

Nesta década, o número total de homicídios registrados pelo SIM cresceu em 48,4% – bem superior ao crescimento da população no mesmo período (16,5%). Entre os jovens, no entanto, o crescimento dos homicídios foi ainda maior: 64,2%, numa média anual de aumento na ordem de 5%. Quando se compara a população jovem com a não-jovem também fica evidente o brutal desequilíbrio entre o total de óbitos são atribuíveis a causas consideradas “externas” – além dos homicídios, os acidentes de trânsito e os suicídios. Na população não-jovem, somente 9,6% são atribuíveis a causas externas. Já entre os jovens, elas correspondem a 72,1% das mortes. Se na população não-jovem só 3% dos óbitos são causados por homicídios, entre os jovens os homicídios são responsáveis por 39,7% das mortes. Em estados como Pernambuco, Espírito Santo e Rio de Janeiro, mais da metade das mortes de jovens foram provocadas por homicídios.

Outro dado preocupante do estudo da OEI é o que mostra o alto percentual do uso de armas de fogo nos homicídios praticados contra jovens: mais de 75%.

“A incidência crescente de todas essas formas de violência, que torna nossos jovens, ao mesmo tempo, vítimas e algozes, exige do conjunto da sociedade uma análise mais aprofundada e uma atitude mais objetiva e responsável”, afirma o autor do relatório, Julio Jacobo Waiselfisz. “A violência também encontra um excelente caldo de cultivo na apatia, na falta de projeto de futuro, na ausência de perspectivas, na quebra dos valores de tolerância e solidariedade”, completa.

As vítimas desses homicídios também têm gênero e cor: 93% são homens e os negros apresentam um índice de vitimização 73,1% superior aos brancos na população total e 85,3% superior nos jovens. Esses níveis de vitimização por cor vêm crescendo nos últimos tempos: em 2002, eram de 65% e 74%, respectivamente. Na avaliação de Jorge Werthein, se também fosse feito um cruzamento dos dados por renda, as vítimas se concentrariam na camada mais carente da população. “A pobreza tem cor, e no Brasil ela é negra. São os jovens negros os que mais sofrem e são os mais vulneráveis do setor social”, afirma.

Para o assessor da OEI, o Brasil ainda não possui nenhuma política sistemática e profunda de inclusão social dos jovens, limitando profundamente suas possibilidade educacionais e de trabalho. “Hoje enfrentamos uma situação grave. Sete milhões de jovens brasileiros, o dobro da população do Uruguai, não trabalham nem estudam. Então é profundamente importante formular políticas de Estado para a juventude. E esta não é uma responsabilidade somente da União, mas também dos estados e municípios. Há governos que se preocupam com isso, mas há outros que não têm a mínima sensibilidade. E há experiências significativas que mostram que não é preciso esperar tanto tempo para encontrar soluções”, acredita.

O exemplo do município de Diadema, na Grande São Paulo, é dos melhores neste sentido. Considerada uma das cidades mais violentas do mundo na década passada, Diadema conseguiu reduzir drasticamente os índices de morte dos jovens a partir do investimento em programas integrais de segurança pública, educação continuada e geração de emprego e renda.

“Isso nos mostra que não estamos num estágio em que não é possível enfrentar o problema. Se houver decisão política para isso, é possível”, afirma Werthein. O relatório aponta os recentemente criados Conselho Nacional de Juventude, a Secretaria Nacional de Juventude e o Programa Nacional de Inclusão de Jovens (Pro Jovem) como parte de um esforço de tratar com relevância o tema da juventude. No entanto, o empenho precisaria ser maior. “A cada jovem espanhol que morre vítima de um homicídio, morrem 50 brasileiros. Quando ouvimos essa comparação, ficamos assustados. Mas isso dura 24 horas. Depois negamos este quadro e assumimos que os indicadores de morte de jovens no Brasil são normais. Aí banalizamos a morte e banalizamos a vida”, avalia.

Queda nos homicídios
Um dado positivo apontado pelo relatório é o de que, depois de longo período em que as cifras só aumentavam, entre 2003 e 2004 as mortes por armas de fogo caíram de 39.325 para 37.113, uma redução de mais de 5%. De acordo com a pesquisa, se for considerada a tendência histórica de aumentos do último qüinqüênio, o resultado esperado para 2004 seria de um total de 42.054 vítimas de armas de fogo. Isso significa que a queda foi, portanto, superior: de 9,6% para o total da população e de 11,2% para a população jovem. O estudo aponta a vigência do Estatuto do Desarmamento e a já implantada campanha de recolhimento das armas de fogo em mãos da população como razão para a melhoria do quadro.

“Observamos em muitos estados que havia um momento comum de inflexão, quando caem os homicídios, e que havia uma coincidência de que os estados que apresentaram uma redução maior do número de homicídios por armas de fogo foram os que mais haviam conseguido recolher armas”, explica Jorge Werthein. “Isso mostra que não basta só recolher armas e fazer cumprir a lei, mas informar e sensibilizar a população. Quando falamos do Estatuto, isso nunca foi somente um instrumento legal. Foi acompanhado de uma enorme campanha de mobilização, que levantou a consciência sobre uma situação em que havia muitas armas e muitos homicídios. E isso teve impacto. Por isso a campanha precisa continuar”, afirma.

Se a mesma análise for feita em relação aos dados de morte por acidentes de trânsito, será possível verificar que, depois de um período de queda (entre os anos de 1997 e 2000), diretamente imputável à vigência da nova Lei de Trânsito, a mortalidade foi recuperando fôlego. Assim, já em 2004, registrou-se praticamente o mesmo número de óbitos por acidentes de transporte que no pico de 1997.

“Ao não falamos do tema, não conseguimos mobilizar a população para impedir situações de risco e eliminar a comercialização e facilidade de acesso às armas de fogo. Nunca é o elemento repressivo, punitivo ou legal estabelecido que leva a uma melhoria significativa. E sim a política preventiva e sistemática”, acredita o assessor da OEI.

De acordo com o Mapa da Violência 2006, o problema no Brasil é conseqüência de uma grande diversidade de fatores individuais, grupais, culturais, sociais, econômicos e políticos. Fatores que se conjugam e não são fáceis de enfrentar ou de solucionar. Entre elas, a forte destruição social e desigualdade econômica que existe no país, das quais os jovens são as principais vítimas. Na avaliação da Organização dos Estados Ibero-Americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura, uma mudança neste quadro só será possível quando a vida perdida dos principais excluídos do país passar a ser considerada de fato.

Publicado na Agência Carta Maior em 17/11/2006.