Levantamento revela que 68,5% das agressões contra crianças partem de pais ou responsáveis
Nome: J.J. Cidade natal: Bauru (SP). Características físicas: marcas de pauladas, socos e pontapés na cabeça, dentes quebrados, mãos queimadas, lábios cortados, hematomas no rosto. Rotina: sessões de tortura diárias, incluindo surras com fivela, batidas do crânio contra o vaso sanitário, queimaduras com ferro elétrico. Idade: apenas 4 anos.
Retirado pela Justiça da casa materna e entregue ao pai biológico, J.J. foi vítima de um dos tipos de violência mais comuns praticados contra crianças: aquela que acontece dentro de casa. Levantamento feito pelo Correio no Sistema de Informação para a Infância e a Adolescência (Sipia), mantido pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos (Sedh), revela que, de 1º de janeiro de 2007 a 1º de janeiro de 2008, houve 4.133 casos notificados de violação do direito à vida e à saúde de meninos e meninas. Em média, foram 11,3 agressões por dia. Em 68,5% dos casos, os agressores e-ram pais, mães e responsáveis.
Um número que, de acordo com especialistas, pode ser ainda maior. Isso porque o Sipia registra apenas os casos encaminhados aos conselhos tutelares. Muitas vezes, principalmente nas classes sociais mais altas, a violência é silenciosa e não ultrapassa as quatro paredes. Assim, é difícil registrar o número real de crianças e adolescentes vítimas de agressões físicas.
“A infância e a juventude sempre foram tratadas como categorias de segunda classe. Nunca foram vistas como sujeitos de direito, mas objeto de tutela, seja dos pais ou do Estado”, afirma Alexandra Santos, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP). Segundo ela, no Brasil, apenas a partir de 1723 a infância começou a inspirar cuidados dos poderes públicos. Nessa data, criaram-se as rodas dos enjeitados, onde eram acolhidas crianças abandonadas pelos pais. “Antes disso, elas ficavam nas ruas, e geralmente acabavam devoradas por ratos e cachorros”, conta.
Fator cultural
São muitas as causas da violência doméstica contra crianças. A principal delas é cultural. “O castigo corporal sempre foi visto como uma forma de correção. Os escravos apanhavam dos donos; as mulheres, dos maridos; as crianças eram castigadas na escola”, lembra Maria Leolina Couto Cunha, coordenadora nacional do Centro de Combate à Violência Infanto-Juvenil (Cecovi). “Os atos de violência são entendidos pelos pais como permitidos, pois eles acham que, assim, estão educando os filhos”, concorda Alexandra Santos.
Em Curitiba, uma mulher mergulhou a mão do filho de 8 anos em uma panela de água fervendo porque o menino havia tirado R$ 1 da sua bolsa, para jogar videogame. A criança desmaiou e foi acudida pelos vizinhos. “Quando perguntei por que ela havia feito isso, a mulher disse: `Pensei que ia dar um castigo tão grande no meu filho que ele nunca mais iria roubar'”, conta Maria Leolina.
A mãe da criança agredida relatou, ainda, que foi abandonada numa caixa de papelão e criada por uma mulher que a corrigia com ferro de engomar. A coordenadora do Cecovi conta que havia marcas horrorosas nas costas da mulher. Segundo a especialista, esse também pode ser um fator desencadeador da violência doméstica: a repetição de uma conduta vivida durante a infância.
“Daí a importância de ensinar os pais a encontrarem outras propostas para educar os filhos. Não existe uma fórmula, pois cada criança é de um jeito. É preciso reconhecer as necessidades, as características de cada uma”, explica a psicóloga Lígia Caravieri, coordenadora do Centro Regional de Atenção aos Maus Tratos na Infância (Crami), que funciona na região do ABCD paulista. No ano passado, a organização não-governamental acompanhou mais de 3 mil famílias com casos de violência física, apenas nos municípios de Santo André, Diadema e São Bernardo do Campo. Segundo a psicóloga, não há registro de reincidência dos pais que receberam alta do tratamento.
Cravieri lembra que a violência doméstica não escolhe classe social. Embora somente 21% das famílias atendidas pelo Crami ganhem mais de oito salários mínimos, de acordo com levantamento feito em 2006, os especialistas explicam que, entre pessoas de maior poder aquisitivo, é mais fácil esconder os fatos. “A violência ocorre em todas as camadas. Cada uma, porém, reage de um jeito. Quem tem condições melhores omite as ocorrências. Já entre as pessoas mais humildes, os vizinhos costumam avisar os conselhos tutelares”, explica a pesquisadora do NEV-USP Alexandra Santos.
Contra a conivência social
Especialistas ouvidos pelo Correio são unânimes em afirmar que um dos passos mais importantes para o combate à violência contra a criança e o adolescente é a denúncia das violações de direitos. “Existe uma conivência social aliada à ignorância sobre os direitos da criança”, afirma o promotor dos Direitos da Infância e da juventude do Ministério Público do Distrito Federal, Oto de Quadros. Ele lembra que a proteção à criança não é um favor, mas um dever, expresso no artigo 227 da Constituição Federal.
O promotor, porém, lamenta que, em geral, as pessoas preferem se omitir nos casos de violência doméstica com a desculpa de não quererem se envolver com assuntos que consideram privados. “Se a família, em vez de garantir, viola o direito da criança, quem sabe disso tem o dever de denunciar”, explica. “Até os médicos se omitem em casos gravíssimos, e o Estado só pode tomar medidas quando há denúncia.”
Para a psicóloga Lígia Cravieri, especialista em violência doméstica, os professores podem ser grandes aliados no combate à violência, pois, além do vínculo afetivo com as crianças, passam boa parte do tempo com elas. Embora não exista um padrão, geralmente as vítimas mudam bruscamente de comportamento, podendo se isolar ou tornarem-se agressivas. Cravieri lembra que é preciso ficar atento também às marcas apresentadas pelas crianças. Se o professor suspeita de violência doméstica, deve chamar os pais à escola e denunciar.
Em Fortaleza, a coordenadora nacional do Centro de Combate à Violência Infantil (Cecovi), Maria Leolina Couto Cunha, atendeu um caso que poderia ter sido evitado se os vizinhos não tivessem ficado calados. Uma menina de 9 anos que sofria espancamentos constantes da mãe foi parar na UTI depois de passar por uma sessão de tortura. Com uma colher quente, a mulher queimou todo o corpo da filha. “Quando a menina foi encontrada, já estava com partes do corpo em necrose avançada. Os vizinhos ouviram a criança gritar por horas e não fizeram nada. A professora também contou que já tinha visto a menina machucada, mas não quis interferir”, relembra.
De acordo com a Secretaria Especial dos Direitos Humanos, o número de denúncias feitas ao Disque 100 aumentou 80% no ano passado, comparado a 2006. Foram 24.924 ligações — o maior número de denúncias veio de São Paulo, Bahia, Minas Gerais e Rio de Janeiro. (PO)
Entrevista // Helena Oliveira Silva
O desafio de criar uma rede de proteção
Especialista pede atenção com ações das famílias e das escolas
Autora do livro Análise da Violência contra a Criança e o Adolescente Segundo o Ciclo de Vida no Brasil, a oficial de projetos do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) Helena Oliveira Silva vê progressos no combate à violência doméstica, mas pede a consolidação de uma rede de proteção. Lembra que, de 1996 a 2003, 21,1% dos óbitos de crianças com até 6 anos ocorreram devido a agressões físicas.
Temos uma cultura de aceitação da violência física contra crianças?
Historicamente, a violência física sempre fez parte da maneira de educar as crianças, tendo como justificativa protegê-las do perigo ou fazer com que se tornem “bons” adultos. Embora o ambiente da casa, ou seja, o ambiente familiar, seja entendido como um dos primeiros ambientes protetores da criança, esse mesmo local também pode apresentar relações não-protetoras. Poderíamos classificar essas relações em pelo menos três formas: práticas educacionais que fazem uso de violência física (castigo, palmadas, surras, etc); os acidentes, as negligências, a bem conhecida síndrome do bebê sacudido, além dos abusos, incluindo o sexual. A terceira forma se refere às que levam a criança efetivamente à morte, seja por omissão, negligência, seja por agressões diretas e fatais. É importante destacar esse último ponto, pois pouco se atina para os casos de violência que levam à morte de crianças ainda na primeira infância. Segundo dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, de 1996 a 2003, eles foram responsáveis por 21,11% das mortes de meninos e meninas de 1 a 6 anos.
A legislação brasileira é uma das mais avançadas do mundo no que diz respeito à garantia dos direitos da criança. Mesmo assim, a violência doméstica ainda é uma realidade. Como o Estado deve interferir?
Muita coisa já tem sido feita. O Brasil já produz diagnósticos suficientes que dão um quadro de causalidade e explicativo do fenômeno da violência doméstica. Contudo, ainda persiste o desafio da qualidade dos sistemas de informações e notificação da violência e do atendimento às vítimas. Em todo o país, o ideal é poder ter em cada cidade uma rede de atenção que envolva o setor da saúde, o escolar, a segurança pública e o conselho tutelar, de modo a acompanhar e definir formas de prevenção dentro das famílias, das escolas, das creches e da comunidade local. Associada a isso é importante uma agenda social com mensagens educativas para toda a sociedade.
Geralmente, os cuidados psicológicos são voltados apenas às vítimas da violência. Há negligência no que diz respeito ao agressor?
Na verdade, a base moral impera em toda as relações violentas, inclusive quando se trata de lidar com o autor da agressão. Programas de atenção àqueles que praticam a agressão, com uma atenção especializada, são recentes. Nesse contexto de inovação, vale mencionar a experiência da Justiça Restaurativa implementada na Vara da Infância e juventude de São Caetano (SP) e na Vara de Porto Alegre (RS). Trata-se de um conceito jurídico que valoriza a autonomia, o diálogo e o protagonismo dos sujeitos envolvidos: vítimas, infratores, familiares e comunidade. Todos são convidados ao diálogo e à compreensão mútua. Isso pressupõe mudança de foco nas práticas judiciais em relação ao agressor e também à vítima, que tem de volta psicologicamente sua integridade moral e de direitos restabelecidos no âmbito judicial.
Publicado originalmente em 11/02/2008, pelo jornal COrreio Braziliense