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A Educação técnica: Para que e para quem?

Em artigo para o Observatório Jovem, o Mestre em Educação Carlos Artexes Simões discute os desafios e a necessidade do estabelecimento de políticas de educação técnica para jovens num quadro global de desemprego estrutural e escassez de oportunidades. Carlos Artexes é pesquisador do Observatório Jovem e defendeu no ano de 2007, no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFF, dissertação de mestrado sobre a formação de jovens trabalhadores do Colégio Estadual Prof. Horacio Macedo/CEFET-RJ

No inicio do século XXI, o Brasil enfrenta grandes dificuldades de atender à sua população e, em particular, aos jovens nos seus direitos básicos de uma educação de qualidade para todos e de trabalho não alienado. O trabalho informal e o subemprego predominam nas relações de produção e a expansão quantitativa da escolarização tem se caracterizado como uma oferta degradada para os setores populares. Um grande contingente de jovens tem abandonado a perspectiva do estudo e do trabalho. Nesta realidade social, aqui vista como uma tensão entre a estrutura de um sistema capitalista e a estratégia utilizada pelos atores sociais, as propostas educativas e, em particular, da educação profissional assumem diversas perspectivas entre seus motivos declarados e o público a quem alegam atender. Neste cenário contraditório torna-se importante trazer alguns elementos que podem ajudar a desvendar para que serve e a quem se destina o ensino técnico no Brasil.

Na atualidade, configura-se uma realidade da educação da juventude em uma sociedade de grandes desigualdades sociais com profundas mudanças no mundo do trabalho. Constata-se a exclusão de muitos do acesso e da permanência na educação escolarizada, a baixa qualidade educacional e a difícil inserção social do sujeito como cidadão produtivo.

Segundo a OIT (Organização Internacional do Trabalho), o desemprego alcançou, em 2003, cerca de 88 milhões de jovens entre 15 a 24 anos, representando 47% do total global de desempregados. Haverá pelo menos um bilhão de pessoas que enfrentarão a ameaça do desemprego ou o subemprego nos próximos anos. Aproximadamente 40% da população mundial têm menos de 20 anos atualmente. E 85% dos jovens, muitos trabalhando em condições de pobreza, vivem em países em condições de pobreza agravada pela falta de oportunidades. A taxa de desemprego juvenil subiu de 11,7% para 13,8% na última década. Em média, os jovens têm três vezes mais possibilidades de estarem desempregados que os adultos.

Por outro lado, milhões de jovens não podem permitir-se o “luxo” de estarem desempregados e, por isso, trabalham durante longas jornadas em troca de salários muito baixos. A maior parte dos habitantes do mundo vive e trabalha no quintal da economia de mercado, isto é, na economia informal. São trabalhadores que encontramos no campo e nas ruas das cidades. Desprotegidos pela lei, se vêem obrigados a subsistir com suas famílias em condições precárias.

Em termos de trabalho e escolarização da juventude, os dados da Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios (PNAD/IBGE-2001) já revelavam que entre os jovens de 15 a 24 anos no Brasil: 24,7% - só estudavam, 18,7% - estudavam e trabalhavam, 32% - só trabalhavam, 5,2 % - estudavam e procuravam emprego, 5,9% - só procuravam trabalho e 13,5% - não estudavam, não trabalhavam, nem procuravam trabalho.

Nesse quadro, encontra-se o dilema entre a tendência de garantir aos jovens um tempo maior de preparação na educação escolarizada, implicando, portanto, a suspensão provisória da inserção no mundo produtivo e, por outro lado, a necessidade concreta do trabalho dos jovens brasileiros como meio de aquisição das condições mínimas da cidadania. Do ponto de vista do trabalho, podemos falar de distintas formas de socialização profissional relativas aos diversos grupos de jovens, diferenciados pela sua origem social ou seu capital escolar. As trajetórias profissionais não são mais previsíveis e a responsabilidade da inserção no trabalho é dirigida cada vez mais para o próprio jovem e seus atributos de escolarização e formação. Novos significados em relação ao trabalho são construídos pelos jovens, ante a intensidade com que foram tocados pela incerteza e o desemprego juvenil. O trabalho aparece muitas vezes como uma referência central entre as opiniões, atitudes, expectativas e preocupações dos jovens e com significados diversos no imaginário juvenil, como valor, necessidade, direito ou mesmo como busca de aquisição de autonomia familiar e poder de consumo.

Por outro lado, a escolarização, além de um direito social básico, ainda representa uma estratégia dos setores populares para o seu desenvolvimento individual e coletivo. Entretanto, no Brasil, cerca de 17,7 milhões de brasileiros, em um universo de 182 milhões, tinham entre 15 e 19 anos (PNAD/IBGE-2004), faixa etária que corresponde à idade considerada adequada para cursar o Ensino Médio. No entanto, apenas 6,8 milhões (38%), nessa faixa etária, estavam matriculados neste nível de ensino (CENSO ESCOLAR 2005).

O Ensino Médio tem-se constituído ao longo da história da educação brasileira como o nível de mais difícil enfrentamento, em termos de sua concepção, estrutura e formas de organização, em decorrência de sua própria natureza de mediação e a particularidade de atender aos jovens. Sua ambigüidade confere uma dupla função de preparar para a continuidade de estudos e ao mesmo tempo para o mundo do trabalho, produzida dentro de determinadas relações sociais e, em particular, no projeto capitalista de sociedade. Nesse contexto, a Educação Técnica Profissional de Nível Médio, no Brasil, ocupou um lugar importante nos conflitos que atravessam o campo educacional.

Outros dados (CENSO ESCOLAR 2005) são relevantes nas matrículas do Ensino médio e na Educação Técnica no Brasil:

a) 9.031.302 matrículas no Ensino Médio; b) 707.263 matrículas na Educação Técnica de Nível Médio; c) No Brasil 48% da população é de raça/cor preta ou parda (PNAD/IBGE-2004) onde 43% dos alunos do Ensino Médio e, surpreendentemente, apenas 26% dos alunos da Educação Técnica declaram-se de raça/cor preta ou parda; d) São oferecidos, pela iniciativa privada, 11% das matrículas no Ensino Médio e 58% das matrículas na Educação Técnica; e) Os alunos na faixa etária de 15 a 19 anos correspondem a 75% das matrículas no Ensino Médio e a 32% das matrículas na Educação Técnica.

Os jovens têm hoje maior acesso à escola, permanecendo nela por mais tempo. Mas a expansão quantitativa também é preenchida por reprovações sistemáticas e abandono “físico” e “espiritual” que configuram uma realidade de uma inclusão excludente.   A relação da juventude com a educação institucionalizada tornou-se um grande campo de disputa de gerações, onde a potencialidade de conquista de autonomia confronta-se com o formalismo escolar e interesses políticos e econômicos distantes do processo de aprendizagem dos jovens.

Sabemos que a escola nasce com uma tendência onde não havia preocupação com a economia e a formação profissional. A escola republicana era impelida pelo projeto de instalar uma cidadania nova e pela legitimidade das suas instituições. O liceu burguês ficava centrado nas humanidades e reivindicava a gratuidade do saber contra os conhecimentos diretamente úteis e produtivos. Apesar de fortalecer a importante autonomia da educação frente ao setor econômico promoveu uma história de longa resistência ao Ensino Técnico e Profissional, de um relegar esse ensino para as carreiras desvalorizadas - um confinamento simbólico, do qual hoje temos muita dificuldade em nos desvencilhar. Isso não significa que jamais tenha havido um desejo de adaptação da formação aos empregos e às qualificações profissionais mas que essa função permaneceu sempre marginal. Porém, a marca essencial desse sistema era o dualismo escolar e o tipo de seleção das diversas clientelas.

No Brasil, a preparação para o trabalho foi inserida na educação escolar no século XIX, voltando-se para os órfãos e desvalidos da “sorte”, em funções que exigiam mais a atividade manual do que a atividade intelectual. Até então, o preparo para os ofícios se dava nos próprios locais de trabalho. Foi no início do século XX que a formação profissional escolar ganhou caráter regular, com as Escolas de Aprendizes e Artífices, no nível primário. Posteriormente, a industrialização do país elevou o status da formação profissional, com a criação dos cursos técnicos de nível médio, na década de 1940. Porém, até hoje, aparecem concepções e práticas diferentes e contraditórias da relação da formação profissional e a educação geral.

As características compensatórias dos programas educacionais e formação profissional para superar deficiências e alcançar a cidadania das pessoas, através da inserção no mundo do trabalho, estão relacionadas às especificidades do modo de vida e indícios desses mesmos indivíduos em estado de pobreza. Basta ver os destinatários de determinados programas de formação profissional para perceber uma evidente ligação entre os seus objetivos educacionais e de inserção social, no mundo produtivo com os grupos sociais mais pobres. O modo de identificar uma pessoa sujeita a esses programas de Educação Profissional está sempre muito mais referido a aspectos próprios, como membros que são desses grupos sociais, do que a evidência de suas características próprias individuais. Não se reconhece o sujeito, mas sua posição de classe social. Na verdade, o reconhecimento do jovem como "clientela" para participar de um programa educativo está, essencialmente, no fato deste morar na favela, ser negro, ou ser pobre. São esses os indícios explicitamente admitidos pela sociedade para a identificação dos participantes de tais programas.

O Ensino Técnico como prática educativa se insere de forma diferenciada, de acordo com os momentos históricos e a política vigente, adquirindo a natureza ora da educação tecnológica ligada ao saber escolar, ora da natureza de Qualificação Profissional mais imediatamente ligada ao mercado de trabalho. Nesse sentido, o Ensino Técnico é uma oferta educativa que representa, historicamente, no âmbito da educação, uma questão contraditória e com ambigüidades entre a Qualificação Profissional e a educação propriamente dita. Observa-se, curiosamente, que na sua relação com o Ensino Médio (secundário) dá-se uma disputa permanente entre orientações profissionalizantes e/ou acadêmicas, entre objetivos propedêuticos e econômicos.

Por outro lado, a palavra dos jovens trabalhadores, a lógica pela qual percebem o valor do trabalho e da educação técnica revela um conjunto de questões que indica a necessidade de rever concepções há muito tempo repetidas e que encobrem relações desconhecidas entre o jovem e o mundo da produção e da reprodução social. As velhas hipóteses segundo as quais a educação reproduz o sistema de produção social, ou é vista como um caminho de salvação dos jovens pobres não mais é suficiente para entender a realidade dos jovens e sua relação com a escola e o trabalho. Percebe-se a importância da educação técnica como estratégia dos jovens para alcançar não só os seus projetos de vida e objetivos educacionais, como, também, para a busca de inclusão social e de autonomia individual. Em síntese, a estratégia dos jovens de utilizar as oportunidades educacionais para sua emancipação social e desenvolvimento pessoal se estabelece dentro de uma contradição incorporada de negatividades e positividades.

O Ensino Técnico representa uma estratégia dos jovens trabalhadores, muitas vezes imperceptíveis para gestores e legisladores educacionais. Sua importância para os setores populares relativiza questões que, do ponto de vista teórico, representariam uma subordinação aos interesses do capital, mas que, por outro lado, evidenciam uma chance de fortalecer os jovens trabalhadores em sua emancipação e desenvolvimento pessoal e coletivo.

Nos depoimentos de jovens trabalhadores fica claro que a profissão de técnico favorece sua inserção mais favorável na sociedade, fortalece a autonomia e a capacidade de continuação dos estudos no Ensino Superior. A falta da profissão de nível médio para os jovens pobres pode não só interromper suas trajetórias de estudantes como, principalmente, suas implicar que a inserção no trabalho ocorra de forma precária e desvalorizada.  

Ensino Técnico articulado com o Ensino Médio, preferencialmente integrado, representa uma possibilidade que não só colabora na questão da sobrevivência econômica e inserção social dos jovens, como também aponta para uma proposta educacional que, na integração de campos do saber, torna-se fundamental na perspectiva do desenvolvimento pessoal e na transformação das realidades sociais nas quais os jovens estão inseridos. A relação e integração da teoria e prática, do trabalho manual e intelectual, da cultura técnica e da cultura geral representam um avanço conceitual e a materialização de uma proposta pedagógica mais avançada em direção aos interesses da juventude.
 

(*) Professor do CEFET-RJ, Engenheiro Eletrônico (UFRJ), Pedagogo (UFRJ) e Mestre em Educação (UFF).

Acesse o texto integral da dissertação de Carlos Artexes: Juventude e Educação Técnica: a experiência na formação de jovens trabalhadores do Colégio Estadual Prof. Horacio Macedo/CEFET-RJ

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