Segunda meta do compromisso estabelece que, até 2022, toda criança esteja plenamente alfabetizada. Especialistas afirmam que o maior desafio é erradicar o analfabetismo funcional: há estudantes que terminam o ensino fundamental sem compreender o significado daquilo que lêem
Está escrito no caderno de Israel Sales, 12 anos: “El fiquei impresionado com sua belesa que conheci”. Português, para o aluno do 3º ano do ensino fundamental, é “portuguez”. Frases viram “frazes”. Assistência, vários e você são grafados como “asistencia, varios e voce”. A leitura é silábica; a letra, irregular. O menino não é uma exceção. De acordo com a comissão técnica do movimento Todos pela Educação (TPE), 95% dos alunos matriculados no 6º ano não estão totalmente alfabetizados.
Na segunda reportagem da série Todos Pela Educação, o Correio mostra que, se quiser atingir as metas estabelecidas pelo TPE e pelo Ministério da Educação, o Brasil terá de acelerar. Até 2022, todas as crianças de 8 anos terão de dominar a leitura e a escrita. “Não sei o que acontece. No meu tempo, a gente estudava tão pouco, mas mesmo assim eu leio e escrevo direito. Hoje em dia, esses meninos estudam o tempo todinho, mas aprendem menos do que eu. Não conseguem nem escrever uma carta”, constata a mãe de Israel, Maria Bezerra Sales, 53 anos, dona-de-casa que parou os estudos no 3º ano fundamental (antiga 2ª série).
“Por muitos anos, o debate sobre educação ficou restrito ao acesso. Precisamos nos acostumar com a idéia de que a qualidade do ensino é o outro lado do direito à educação. Os alunos aprendem? Lêem melhor? Lêem no nível em que deveriam estar?”, questiona o especialista em avaliação Francisco Soares, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Não há, no país, indicadores adequados sobre as habilidades básicas de leitura das crianças de 8 anos, mas, de acordo com uma metodologia desenvolvida pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), de 1995 a 2005 a taxa de analfabetismo entre pessoas de 10 a 14 anos caiu de 9,9% para 3,4%.
As estatísticas, porém, escondem uma realidade grave: o analfabetismo funcional. As crianças aprendem vogais, consoantes e sabem formar sílabas. Porém, escrevem de forma rudimentar e não conseguem entender o significado da informação. De acordo com o Instituto Paulo Montenegro, do Ibope, apenas 28% dos brasileiros entre 15 e 64 anos de idade têm nível pleno de alfabetização. Ou seja, lêem textos longos, interpretam, inferem, sintetizam.
“A torneira do analfabetismo está aberta. Se as crianças de 8 anos não estiverem lendo e escrevendo bem, não há como alcançar as outras metas. Nossos filhos não lêem e escrevem com 5 anos? Por que o filho do pobre não está lendo e escrevendo como o filho da classe média?”, provoca o presidente-executivo do TPE, Mozart Neves Ramos.
Para Ramos, a falta de um diagnóstico preciso sobre o nível de alfabetização das crianças na fase inicial do ensino atrapalha o desenvolvimento de estratégias de combate ao analfabetismo funcional. De acordo com o Ministério da Educação, este ano, pela primeira vez, essa radiografia será feita. A partir deste mês, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) disponibilizará para os professores orientações sobre a aplicação da Provinha Brasil, teste que irá conferir o nível de alfabetização das crianças entre 6 e 8 anos matriculadas nas escolas públicas.
A adesão das redes é voluntária e, ao contrário do que ocorre com os resultados da Prova Brasil, que testa alunos das duas fases do ensino fundamental, os dados não serão enviados para o MEC. A idéia é que sirvam apenas de diagnóstico local. Mozart Neves Ramos, porém, acredita que as provas deveriam, sim, ser divulgadas, e critica o fato de as escolas não serem obrigadas a aplicar o teste. “O pior dos mundos é o do faz-de-conta. Ou faz seriamente ou não faz. A Provinha Brasil deveria ser levada com a mesma seriedade da Prova Brasil e do Saeb (avaliação de alunos dos 5º e 8º anos do ensino fundamental, da 3ª série do ensino médio).”
A dona-de-casa Franciene Ribeiro Ferreira, 40 anos, moradora de Boa Vista I, comunidade do Novo Gama (GO), acredita que o filho, Luís Henrique, 10, não é muito cobrado na escola. O garoto está no 4º ano do ensino fundamental e tem dificuldades com a escrita. O conteúdo está atrasado: no colégio, ele ainda aprende divisão silábica, assunto tratado no 1º ano. “Eu faço o que posso. Coloco ele para fazer o dever todos os dias. Mas a escola ensina pouco, falta muito para melhorar”, afirma Franciene.
Em São Paulo, uma experiência da sociedade civil mostrou que é possível combater o problema de forma simples e eficaz. Desde o ano passado, a organização não-governamental (ONG) Associação de Combate ao Analfabetismo Funcional Próxima Página usa a leitura de jornais para melhorar o nível de alfabetização de alunos da rede pública, selecionados para particpar do projeto. No horário contrário ao das aulas regulares, crianças entre 9 e 14 anos, do 5º ao 9º ano do ensino fundamental, são realfabetizadas por uma equipe de educadores e pedagogos.
Atualmente, há 50 alunos no projeto. “Noventa por cento do nosso trabalho é feito através da leitura de jornais. Além de desenvolver a alfabetização, a experiência dá bagagem aos alunos. É inacreditável como mudaram. Eram crianças que não conseguiam dizer o que pensavam, não conseguiam trabalhar em grupo, e hoje sabem se expressar bem e debater temas importantes do dia-a-dia, como a violência urbana ”, conta Daniela de Paiva, diretora-executiva da ONG.
Para ela, a grande revolução da educação depende da erradicação do analfabetismo funcional. “A criança não pode só saber que juntar bê com á dá bá. Tem, de fato, que saber utilizar a informação”, acredita. Cada aluno custa, para o projeto, R$ 300 mensais. Isso inclui a contratação dos profissionais, a merenda e o transporte.
Publicado originalmente no Correio Braziliense - 17/03/2008