A Agência de Notícias conversou sobre a Comunicação Comunitária na América Latina com Carlos Guimarães, coordenador da área de Comunicação e Educação para o Desenvolvimendo da ONG Batá (Centro de Iniciativas para la Cooperacíon), entidade espanhola que desenvolve projetos relacionados ao desenvolvimento sócio-cultural de países do Terceiro Mundo, e professor do Master em Comunicación y Desarrollo Local da Universidad de Sevilla (Espanha)
Agência de Notícias: O que você entende por comunicação comunitária?
Carlos Guimarães: Qualquer adjetivo vinculado à comunicação corre o risco de limitar a sua definição por critérios quase que ideológicos. Pode-se pensar em comunicação comunitária relacionada à comunicação popular, vinculada a uma vertente de esquerda, mas também como sendo parte do desenvolvimento integral de uma determinada comunidade. Para nós, da Batá, o mais importante quando definimos “comunicação comunitária” é a questão do acesso aos meios de comunicação por grupos sociais excluídos dos meios de comunicação de massa. Ela é uma comunicação que permite a horizontalidade na relação entre emissor e receptor, mas, sobretudo, entre interlocutores.
A comunicação comunitária significa o empoderamento, a governabilidade e fortalecimento das redes sociais, do protagonismo e da cidadania. Também é um fator de desenvolvimento, uma vez que gera uma dinâmica de discussão e de mobilização social. Além de permitir a preservação da diversidade cultural, possibilita a identificação e a proximidade da população que usa diferentes suportes comunicacionais com o discurso que se emite. No entanto, para que isso seja possível é preciso que se preserve uma orientação metodológica que valorize a interlocução mais do que a simples dinâmica de emissão e recepção.
Agência de Notícias: Quais as características das primeiras experiências de comunicação comunitária na América Latina?
Carlos Guimarães: Para entender as características das primeiras experiências de comunicação comunitária na América Latina, é preciso entender um pouco da história que se passou por trás disso. Entre as décadas de 60 e 70, nós estávamos vivendo uma época de guerra fria, de ditadura, de conflito entre o comunismo e o capitalismo. Na comunicação comunitária, conviviam essas duas visões: uma muito capitalista, da FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação), dos EUA, que criou rádios para transmitir algum tipo de conhecimento como apoio a projetos de cooperação; e outro movimento mais clandestino, de esquerda, mas também muito dirigistista, muito pouco vinculado às bases. Essa realidade foi sendo transformada durante as décadas de 70 e 80, com a formação de um forte movimento popular, que tinha por trás a Igreja Católica na grande maioria dos países onde aconteceu. A Teologia da Libertação funciona, nessa época, como um catalisador e uma espécie de canteiro dos movimentos sociais, que também usavam veículos de comunicação. No Brasil, por exemplo, o Jornal São Paulo, da diocese de São Paulo, foi um veículo importante para os movimentos sindicais e sociais nesse período.
Na década de 80, as pessoas treinadas pela FAO vão percebendo o poder dos meios de comunicação e passam a interpretar a relação emissor / receptor de outra maneira, mais voltada para a interlocução. Além disso, com o descrédito da esquerda, a cooperação internacional e os movimentos sociais passaram a se apropriar desses meios a partir de agendas diferentes, que não eram baseadas nem em ideologias globais contra o imperialismo, nem em agendas de desenvolvimento puro, visto pelo lado econômico. Propuseram agendas sociais setoriais, assumindo os meios de comunicação para veicular as suas mensagens de movimentos de mulheres, indígenas, de negros, de camponeses. E, a partir do final dos anos 80, essa vai sendo a tendência da comunicação comunitária: a fragmentação por setores de interesse.
Agência de Notícias: E para você, o que mudou dessas experiências iniciais para as que existem atualmente?
Carlos Guimarães: Existe hoje uma recuperação ideológica, não ao estilo do velho comunismo e da velha esquerda, mas uma reivindicação ideológica que parte da base social dos movimentos, e não dos partidos políticos. E que permite discutir, formar fóruns de debates e redes. Pra mim é isso representa um grande avanço em termos de políticas de comunicação popular. Além disso, a apropriação da internet por esses movimentos também é um grande avanço, uma vez que permite conectar temas que aparentemente estavam desconectados.
Atualmente, existe, por exemplo, a Liga dos Movimentos Socais, que funciona como uma espécie de grande portal dos movimentos sociais da América Latina na web. O portal coordena uma série de ações de movimentos distintos: feminista, indígena, de negros, dos sem terra, dos sem teto, entre outros. Essa liga anualmente marca uma agenda de debates e mobilização. Sua atuação tem tido um impacto significativo e provocado outros atores da sociedade. Um claro exemplo disso foi o fato de que, no ano passado, o Banco Mundial e outras organizações assumiram como parte importante dos programas de ajuste estrutural as políticas de comunicação social. Essas entidades realizaram em Roma, em 2006, o primeiro Encontro de Comunicação e Desenvolvimento em nível global, com seções preparatórias em todos os continentes. Tais seções, ao invés de terem sido organizadas por técnicos do Banco Mundial, ficaram a cargo de pessoas representativas dos movimentos de comunicação comunitária de cada um dos continentes.
Eu acredito, que hoje em dia, o grande motor da coordenação da comunicação comunitária na América Latina, em questões macro, que permite posicionar frente ao movimento da globalização, é a Internet. No nível micro, de inserção social, continuam sendo os mesmos suportes tradicionais, como rádios, tvs locais, com uma grande limitação ainda do que é a legislação do espaço de radiodifusão. Apesar disso, a luta caminha bem definida, tendo em vista que a comunicação passa a ser parte da agenda desses movimentos como defesa de um direito humano fundamental. Algo muito diferente do que acontecia antes, quando ela era somente uma ferramenta de transmissão de idéias. O grande avanço é que ela é uma questão que passa a ser parte da agenda de quase todos os movimentos sociais, como a defesa de um direito fundamental.
Agência de Notícias: Como você enxerga as legislações que regulamentam a comunicação comunitária da América Latina?
Carlos Guimarães: Eu diria, como disse Ignacio Ramonet (presidente do Le Monde Diplomatique), que é bastante fácil explicar porque existe uma limitação tão grande nas legislações de acesso a comunicação: é que antes nós pensávamos na democracia erguida sobre três poderes: legislativo, executivo e judiciário. Mas existe um quarto poder na democracia neo-liberal globalizada, que são os meios de comunicação. Antes ele era uma espécie de contra-poder, uma espécie de contra-peso aos outros poderes, mas hoje os meios de comunicação são uma parte importante na emissão dos sentidos do que é a globalização, na criação de uma espécie de inconsciente coletivo sobre o que são as nossas metas e valores.
Assim, a comunicação dos grandes meios é parte do esquema da globalização, e por isso é tão importante controlar o acesso aos canais e as mensagens que são emitidas. E contra isso Ramonet propõe um quinto poder: um poder cidadão, que deve fazer uso de absolutamente todas as ferramentas que estejam ao seu alcance para controlar os outros quatro, incluindo os meios de comunicação. Para ele, a grande luta hoje é a da construção dessa cidadania ativa, que atenda não só aos direitos humanos naturais, reconhecidos pela Declaração Internacional dos Direitos Humanos, mas um dos mais importantes, o da comunicação.
Por muito tempo se apregoou que os meios existentes eram porta-vozes da sociedade civil. O que estamos vendo hoje é que eles são porta-vozes de interesses vinculados à globalização. Faz-se fundamental, portanto, lutarmos para que as legislações ligadas à comunicação determinem com bastante clareza espaços e meios que estejam efetivamente a serviço do público, bem como formas e mecanismos de acesso de toda a população aos meios de comunicação. O gigantismo das grandes redes de comunicação é um fator inibidor da partição popular nos veículos de comunicação. Portanto, as legislações devem ser meios que possibilitem essa proximidade, a existência de meios comunitários que estejam o mais próximos possíveis da população com a qual se pretende comunicar.
Agência de Notícias: Em toda a América Latina existem iniciativas e estudos voltados para a relação entre a comunicação e a educação. Como você enxerga essa relação e qual a importância de experiências nesse campo?
Carlos Guimarães: Existe uma espécie de confusão que parte do que cada um pensa do que é comunicação e educação. Se nós vamos ao pensamento de Paulo Freire ou de Mário Kaplún, não existe uma verdadeira comunicação educativa se a base dessa educação não é romper com o esquema emissor/ receptor que existe tanto na comunicação tradicional quanto na educação tradicional. A relação mestre/ aluno, que é uma relação muito vertical de poder que existe na escola tradicional, quando é transferida para a comunicação reproduz esses esquemas de poder e de submissão. Existe esse tipo de comunicação educativa, que utiliza os suportes comunicacionais para a transmissão de conhecimentos e valores, como uma espécie de educação nos modelos do Telecurso, da Rede Globo.
Vejo a relação entre comunicação e educação como fundamental, pois são processos inseparáveis. Não existe educação que não seja comunicação, e vice-versa. O problema é quando nós percebemos a comunicação a partir do fetiche tecnológico. Quando você entende a comunicação como algo que só se pode fazer através da mídia, você perde a dimensão educativa. A mídia possui formatos, discursos e tempos, e os processos educativos têm que estar isentos de qualquer formato prévio que os encarcerem. Se nós focamos a comunicação como um processo social de fato, e se nós a entendemos como as estratégias de diálogo que podemos utilizar, então não existe nenhuma dificuldade de pensar comunicação e educação como irmãs. Podemos utilizar os meios de comunicação como um processo educativo, mas para isso devemos sempre considerar o critério de “convivencialidade”, defendido por Ivanovich em algumas de suas obras. De acordo com esse critério, toda ferramenta de comunicação que nós utilizamos deve nascer de uma necessidade partida da própria comunidade. Essa ferramenta deve ser passível de transformação e apropriação por parte comunidade, além de promover o diálogo entre os seus integrantes. Além disso, é importante que, quando essa ferramenta desaparecer, não desapareça a dinâmica de comunicação e de educação que se estruturou através dela. Esse critério, para mim, é fundamental para identificar se nós estamos usando os meios de comunicação como o verdadeiro espírito de comunicação popular freiriano, ou não.
Quando você se insere em um processo social de transformação e debate, esse movimento ou essa comunidade começa a detectar as necessidades comunicacionais que tem e se apropria naturalmente dos suportes que respondem a essas necessidades. Embora exista a necessidade desse processo ser acompanhado por profissionais que irão ajudar a polir o discurso e a prepará-lo, dependendo se esse discurso vai para dentro ou para fora do movimento, o mais importante é que nunca se imponha determinado suporte, nunca se imponha a um grupo uma ferramenta que necessite de uma prévia formação desse grupo nesse suporte, e não uma apropriação interessada. Quer dizer: eu posso dar um curso de vídeo, dar um curso de manejo da câmera e as pessoas aprenderem exatamente a usar, mas a câmera vai estar vazia de discurso. O grande processo de comunicação começa no debate.
Publicado originalmente no Boletim Informativo Rede Jovem de Cidadania 23 de agosto de 2007 - Ano 04 #18