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Clientes especiais

Rapazes que espancaram doméstica, no Rio, são obedientes às leis ditadas por uma sociedade que endeusa a falta de limites

Antes de mais nada, como já se notou, existe o viés social.

De um lado existem “jovens” que ocasionalmente cometem atos delinqüentes. É o caso de Júlio, Leonardo e seus colegas, espancadores da Barra. Inspiram-nos cuidado semelhante ao que dispensamos aos nossos filhos. Tentamos compreender: o que aconteceu? (Psicólogos são chamados a justificar.)

E existem os outros, os que já são bandidos antes de chegar (quando chegam) diante do juiz.

A execução sumária confirma, a posteriori, o veredicto que a imprensa divulga sem questionar: A polícia matou 18 "suspeitos” em confrontos com supostos “bandidos”... Ninguém persegue o resultado das investigações sobre as tantas chacinas que caem no esquecimento.

O que distingue uns dos outros é o número do CEP: na Barra, nos Jardins, no Plano Piloto vivem os jovens.

Os outros, adultos anônimos desde os 14, vêm de bairros que não figuram no mapa: "Periferia é periferia em qualquer lugar".

Qualquer delegado de bom senso percebe na hora a diferença. Se a cor da pele confirmar o veredicto, melhor. A sociedade, representada pelo Dr. Ludovico Ramalho, pai de Rubens Arruda, se tranqüiliza: as travessuras dos “jovens”, adultos infantilizados das classes A e B, não ameaçam a segurança da gente de bem.

Espancaram uma doméstica, mas pensavam que fosse prostituta. Ah, bom.

Nos bairros onde vivem os jovens não há solidariedade com os chacinados das favelas, com os executados a esmo em Queimados, com os meninos abatidos na praça do Jaraguá, em SP. Os movimentos “pela paz” nunca se manifestam por eles.

Ninguém de fora


Mas, quanto mais o Brasil maltrata seus pobres, quanto mais a polícia sai impune dos excessos cometidos contra os anônimos cujas famílias não protestam por temor de represálias, quanto mais o país confia na lógica do “nós cá, eles lá”, mais o gozo da violência se dissemina entre todas as classes sociais.

Para pacificar o país, seria preciso redesenhar o mapa do respeito e da civilidade de modo a não deixar ninguém de fora.

Uma sociedade que assiste sem se chocar, ou sem se mobilizar, ao extermínio dos pobres — bandidos ou não — está autorizando o uso da violência como modo de resolução de conflitos, à margem da lei.

Tomemos o ato de delinqüência cometido pelos meninos “de família” da Barra, no Rio. Que a culpa seja dos pais, vá lá. As declarações do pai de Rubens Arruda são reveladoras. Não que ele não transmita valores a seu filho.

Mas serão valores relacionados à vida pública? Não terá o Dr. Ludovico educado seu filho para “levar vantagem em tudo”? Esse pai não admite que o filho seja punido pelo crime que cometeu.

Há aqueles que não admitem que a escola reprove o jovem que tirou notas baixas, os que ameaçam o síndico do condomínio que mandou baixar o som depois das 22h etc.

Olham o mundo pela ótica dos direitos do consumidor: se eu pago, eu compro. Entendem seus direitos (mas nunca seus deveres) pela lógica da vida privada, como fizeram as elites portuguesas desde a colonização.

Quem disse que os jovens não lhes obedecem? Obedecem direitinho. Param em fila dupla, jogam lixo nas ruas, humilham os empregados — igualzinho a seus pais.

Vez por outra, quando os pais precisam impor alguma interdição, já não se sentem capazes. O que nos coloca a pergunta: que valores, que representações, no imaginário social, sustentam o exercício necessário da autoridade paterna? Em nome de que um pai ou uma mãe, hoje, se sentem autorizados a coibir ou mesmo punir seus filhos?

A autoridade não é um atributo individual das figuras paternas. A autoridade dos pais — e da escola, que também anda em apuros (quem viu “Pro Dia Nascer Feliz”, de João Jardim?) — deriva de uma lei simbólica que interdita os excessos de gozo.

Uma lei que deve valer para todos. O pai que “tem moral” com seus filhos é aquele que também se submete à mesma lei, traduzida em regras de civilidade, de respeito e da chamada boa educação.

Cliente especial


Mas em nome de que, no imaginário social, a lei simbólica se transmite? Já não falamos em “Deus, pátria e família”, significantes desmoralizados em nome dos quais muitos abusos foram cometidos, sobretudo no período de 1964 a 1980 [regime militar].

No lugar deles, no entanto, que outros valores ligados à vida pública foram inventados pela sociedade brasileira? Em nome de que um pai que diz “não pode” responde à inevitável pergunta: “Não posso por quê”?

Ocorre que a palavra de ordem que organiza nossa sociedade dita de consumo (onde todos são chamados, mas poucos os escolhidos) é: você pode. Você merece. Não há limites pra você, cliente especial.

Que o apelo ao narcisismo mais infantil vise a mobilizar apenas a vontade de comprar objetos não impede que narcisismo e infantilidade governem a atitude de cada um diante de seus semelhantes — principalmente quando o tal semelhante faz obstáculo ao imperativo do gozo.

O que queriam os rapazes que espancaram Sirlei Dias de Carvalho Pinto? Um celular usado? Um trocado para comprar mais um papel? Descontar a insegurança sexual? “No limits”, diz um anúncio de tênis. Ou de cigarro, tanto faz. E os meninos obedecem. No fundo, são rapazes muito obedientes. Se a ordem é passar dos limites, pode contar com eles.

(*) Psicanalista, autora de "Ressentimento" (Casa do Psicólogo). Colaborou Paulo Fernando Pereira de Souza.

Publicado originalmente no caderno Mais! da Folha de S.Paulo, de 1º/07/07.