O Observatório Jovem do Rio de Janeiro finalizou o seu quarto documentário que tem jovens como “personagens” principais. Na prática, contudo, não deveríamos falar dos jovens como os únicos protagonistas deste recente filme sobre a comunidade de Santa Rita do Bracuí, município de Angra dos Reis. O que percebemos e registramos com o filme foi um vigoroso campo de relações intergeracionais vivido por crianças, jovens, adultos e antigos moradores atualizando os sentidos da vida comunitária
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Relações que se ancoram tanto na historicidade de um território social, cultural e politicamente marcado pela descendência dos antigos escravos libertos das fazendas da região como pelas novas demandas, potencialidades e contradições resultantes da contemporânea situação de comunidade de negros e negras em busca da afirmação da identidade territorial de quilombo.
O filme foi finalizado com 44 minutos, produzido em formato digital Mini-DV e contou com o apoio de duas bolsas de iniciação científica do CNPq. Ele é resultado de duas incursões de pesquisa e filmagem ocorridas nos meses de janeiro e junho de 2007 e da retomada de um relacionamento de pesquisa e afeto que iniciei no final da década de 90 com o Bracuí durante a realização de minha tese de doutorado em educação. Transcrevo a sinopse do filme que permite uma visão rápida de seu conteúdo:
“Em Angra dos Reis, às margens da rodovia Rio-Santos encontra-se a comunidade quilombola Santa Rita do Bracuí. Desde os anos 1960 os moradores travam luta contra grileiros e condomínios de luxo para se manter nas terras que herdaram de seus antepassados. Antigos e jovens moradores compartilham memórias, experiências e projetos e se associam para a conquista da titulação da terra como território quilombola e para construir alternativas de desenvolvimento comunitário. As narrativas revelam o processo de construção de identidades negras e quilombolas que não se faz sem contradições e não é vivido da mesma maneira por todos. No diálogo intergeracional, os jovens e as jovens do quilombo revelam o compromisso com a herança que envolve a continuidade da luta e a renovação da cultura da dança do jongo”.
Roteiro compartilhado
A metodologia de pesquisa e filmagem seguiu os passos das outras produções do Observatório Jovem procurando compartilhar com os sujeitos da comunidade a elaboração do roteiro do filme. Os impasses comuns a qualquer produção áudio-visual foram vividos em alguma medida também pelos moradores numa reunião na sede da associação comunitária: a dificuldade de estabelecer o foco da produção, as problemáticas de investigação, a busca por bons narradores do vivido comunitário e sujeitos portadores de histórias pessoais interessantes para os rumos da pesquisa/filme, a percepção de que a complexidade da vida, mesmo numa comunidade tradicional, não permitiria abordar todos os aspectos possíveis etc. Para a equipe de pesquisa e produção, esta incursão fílmica compartilhada pode ser profundamente desestabilizadora dos objetivos e pré-noções que organizam a produção de um filme, porém, pode também ser estimulante pelos reordenamentos de sentidos e mudanças de rumo que costuma proporcionar. E assim se deu.
Os núcleos do filme
Os núcleos temáticos do filme são três. O primeiro passa pela questão da luta pela permanência e posse da terra do quilombo em seus diferentes momentos. Para os antigos moradores a luta maior foi contra os grileiros, os condomínios de luxo e os projetos de desenvolvimento que chegaram ao lugar na década de 60 ameaçando a permanência dos moradores no lugar. Para as novas gerações, organizadas na associação de moradores do quilombo, a questão agora é renovar a luta pelo território criando estratégias para acelerar o processo de titulação das terras do quilombo pelo governo federal e promover o desenvolvimento comunitário. É neste sentido que a educação – “para fazer a luta com a palavra e não mais com o corpo como fizeram os mais velhos” – se torna algo fundamental. No segundo núcleo temático, jovens e velhos falam da importância da cultura da dança do jongo para a memória e a renovação dos sentidos de pertencimento cultural à comunidade do Bracuí. É neste sentido que o projeto “pelos caminhos do jongo” se apresenta como síntese das ações comunitárias e projetos educativos desenvolvidos no quilombo. O terceiro e último núcleo temático evidencia o movimento de elaboração da identidade do Bracuí como comunidade quilombola, processo social recente que se intensificou nos últimos dois anos com a perspectiva da titulação da terra pelo governo federal e as ações do movimento negro de Angra dos Reis junto à comunidade.
Marilda, uma eloqüente e sagaz líder comunitária, sugere que seria bom o filme falar sobre “a diversidade que existe aqui no nosso lugar”, e mostrar a “dificuldade que o jovem tem para trabalhar e estudar” e também “aquilo que os jovens contêm”; suas potencialidades. Compreendemos o recado e buscamos na medida do possível contemplar suas preocupações. A jovem Angélica anuncia que os jovens do quilombo não são agricultores e que, assim, soaria falso mostrar os jovens “carpinando” e plantando. Talvez fosse mais ilustrativo apresentar o jovem do quilombo utilizando a internet, exagera, e dá pistas para que atentássemos para dimensões contemporâneas, urbanas e tecnológicas daquele quilombo que se apresentaria menos rural do que imaginávamos.
Ainda com Marilda, aprendemos nesta primeira incursão de elaboração comunitária do roteiro que o filme deveria demonstrar um “quilombo diferente”, ou seja, longe das representações dos turistas que por lá aportam e que perguntam: “isso aqui é quilombo mesmo”? Isso quando percebem que estão diante de espaços e arquiteturas de casas distintos daqueles que imaginam ser os característicos de um “quilombo tradicional”, “com as casas arrumadinhas assim (Marida faz um círculo com as mãos)..., “Feito oca de índio”. “Não, nosso quilombo é diferente” e “isso o filme tem que mostrar”. Na montagem do filme lembramos desta sugestão de Marilda e introduzimos o mosaico formado pelas casas de quilombolas, casas de não quilombolas residentes e casas de veranistas que ao longo dos anos foram se apropriando do território comunitário original e dando um dos tons das diferenças e conflitos peculiares ao quilombo do Bracuí.
“Seu” Zé Adriano, um dos antigos moradores, “mestre de jongo” e liderança familiar e comunitária, canta um ponto no início do filme demarcando a centralidade da luta da comunidade contra as incursões de grileiros que assediaram o Bracuí e transfiguraram seu território ao longo dos últimos 40 anos: “ÊÊ, de carcunda, ele volta de carcunda, o tatú cavuca a terra, ele volta de carcunda....”. E denunciando, afirma: “É grilagem, o que houve aqui foi grilagem... e você sabe que o grileiro só tem olho naquilo que é dos outros”. E “isso aqui é terra de quilombo!!! Então, eu acreditava que eles não mexesse com a gente”, enuncia Zé Adriano evocando o direito da terra aos descendentes de quilombo.
Porém, o mesmo Zé Adriano – que reconheceu o Bracuí como terra de quilombo – demonstrou sua incerteza sobre a precisão do conceito: “olha este negócio de quilombo eu não sei bem dizer não... (o que eu sei) é que aqui era três marias (sesmarias) de terra... que o finado Breves deixou quando já tava doente pra morrer”. Sobre isso, o jovem Emerson também assinala: “Eu sabia que eu era descendente de escravo, mas quilombola eu só vim saber recentemente”. Estes são trechos significativos do filme que demonstram que as noções de ser quilombo e ser quilombola são conceitos em construção. Ao mesmo tempo, a experiência e a memória do corpo vivido no território não deixam dúvidas sobre a percepção de que o Bracuí se fez quilombo como terra de “dáudiva”, doada pelo antigo proprietário de escravos e não como espaço-fortaleza articulado por escravos fugidos do cativeiro, e lugar de permanência comunitária.
O jovem Leandro, neto de Seu Zé Adriano, conta: “eu aprendi com meu avô que o valor da terra não é comercial, a terra tem um valor natural... e na minha concepção terra não se vende!”. Leandro demonstra seu descontentamento com aqueles do quilombo que por um motivo ou por outro (pressão de grileiros e “autoridades” ou por interesses financeiros) fragilizam a identidade territorial e familiar do Bracuí com a venda de lotes, principalmente, para os veranistas. Na comparação com os outros jovens personagens do filme, sem dúvida, é Leandro aquele que mais se apresenta como “herdeiro” dos sentidos da terra como espaço-tempo da agricultura. É interessante perceber os movimentos dos outros jovens do filme que buscam legitimar a conquista da terra, que a titulação do quilombo promete trazer, apresentando outros agenciamentos para o território que não passam necessariamente pelo ato de lavrar a terra. A “fuga da agricultura” empreendida pelos jovens e a busca de alternativas para a manutenção da integridade produtiva e sustentável do território é uma das tensões que o filme revela. Os mais velhos têm dificuldades em perceber as mutações dos relacionamentos dos jovens com a terra.
A juventude do quilombo, apoiada por projetos governamentais e organizações sociais, se envolve em projetos de desenvolvimento e geração de renda que não têm na agricultura o seu vetor fundamental. Para Luciana, ser quilombola “não é só você viver da roça”... Até porque dentro da comunidade não tem trabalho e os jovens vão lá para fora procurar, festas, baile funk que não têm no quilombo, comenta. Em outras palavras, ser jovem quilombola também significa ser sujeito de circulações mais amplas do que aquelas delimitadas pelo território de origem. Os projetos de desenvolvimento explorando as potencialidades turísticas do lugar, o manejo sustentável da floresta, o artesanato, a realização de cursos pré-vestibulares, a produção cultural através da dança do jongo são iniciativas que abrem oportunidades e fertilizam o solo cultural, social e político do quilombo. Parcerias e apoios externos dão esperanças para que, em conjunto com a titulação da terra que os moradores esperam da parte do governo federal, se possa manter a integridade territorial, familiar e cultural do quilombo do Bracuí.
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Assista ao filme na íntegra (43 minutos)
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