Artigo discute o processo de abolição da escravidão e defende que ação afirmativa é mais do que cota para afrodescendentes nas universidades
Quando se quer um exemplo eloqüente de que o Brasil é um país esquisito, lembra-se um fato histórico: houve aqui quem defendesse a idéia bizarra de indenizar os donos de escravos pelo fim da escravidão. Os gaiatos da época tentaram espetar essa conta na viúva. Defendiam o argumento bisonho de que estavam sendo expropriados. A tese dividiu: do lado dela, ficaram os emancipacionistas querendo que os escravistas tirassem a última casquinha daquele sistema econômico hediondo; do outro, ficaram os abolicionistas, como Ruy Barbosa e José do Patrocínio. Eles venceram e foi decretado o fim oficial desta vergonha que marcou para sempre a sociedade brasileira. Deveria ter sido o primeiro passo de uma nova era, mas foi entendido como o objetivo final. Os abolicionistas comemoram a vitória. Era cedo e este foi o erro: o mundo novo se constrói com as ações que se seguem após a ruptura.
A tese da indenização aos escravistas parecia destinada a ser, assim, apenas o emblemático sinal de uma sociedade construída para ser desigual, para favorecer favorecidos e que usa os mais tortuosos raciocínios em favor da manutenção dos privilégios. Era uma extravagância lembrada para espantar, mas reapareceu num artigo publicado aqui pelo empresário Ruy Barreto. Ele sustenta que tudo, toda a tragédia social brasileira, a violência dos AR-15 do Rio de hoje, deve-se a dois erros: a escravidão deveria ter durado um pouquinho mais, seis meses, até a colheita, e seu fim deveria envolver indenizações aos proprietários. Aqueles seis meses e um dinheiro a mais para a elite nos salvariam para sempre. “No efeito dominó da abolição foram terrivelmente golpeadas as economias fluminense, mineira e capixaba baseadas na cafeicultura”, sustenta o empresário.
Que não se reclame de falta de indenização. Todas as políticas de subsídio aos cafeicultores do IBC, aos usineiros do IAA; os pacotes de socorro agrícola, sempre tão pontuais, ainda hoje. As federações empresariais usam dinheiro destinado a educar o trabalhador. Os subsídios do BNDES usam o dinheiro do “amparo ao trabalhador”. Erro achar que não houve indenização. O país não faz outra coisa a não ser distribuir dinheiro para cima. O que nos infelicita é o excesso de indenização na direção errada.
A escravidão brasileira durou mais de 300 anos, marcou o Brasil, foi violenta e trágica. Ao fim dela, era preciso ter adotado políticas para apoiar os negros e seus descendentes na busca de ascensão social. Ainda é preciso. É disso que trata o debate atual — que se perde em tantos descaminhos — sobre a ação afirmativa.
Ação afirmativa é mais do que cota nas universidades; ainda que elas tenham a função fundamental de tornar menos injusto o destino dos recursos públicos na educação superior. Ação afirmativa é um novo olhar para a sociedade, a busca constante, em cada política pública, em cada empresa, em cada escola, da construção de uma nova sociedade que possa aspirar, um dia, a se ver livre do passado escravocrata e de suas marcas no Brasil de hoje.
Uma reportagem da revista “Nova Escola” contava a história de uma menina branca que queria parecer com sua melhor amiga, negra. Ela queria também ter aquele belo penteado todo enroladinho, com tranças fininhas, enfeitadas com conchas coloridas. Querer imitar a melhor amiga é natural e saudável, mas, para chegar a esse resultado, a escola trabalhou duro; na demolição dos preconceitos, no orgulho das crianças negras, no tratamento harmônico na sala de aula, na busca de professores negros e brancos, na pesquisa de livros que contassem uma história equilibrada em que os heróis eram brancos e negros e, juntos, construíram a nação.
Não são as ações afirmativas que vão criar uma divisão racial. Não produzirão o racismo. As divisões existem hoje, sempre existiram. Quem quiser saber delas, ouça o que os negros têm a contar do seu cotidiano. Para varrer todo o lixo amontoado daquele tempo e dos tempos que se seguiram, dos erros reiterados, o país precisa se dedicar à lenta construção de uma sociedade sem preconceito. O caminho é longo, estamos atrasados. Borandá.
Publicado em 2/5/2006 no jornal O Globo