Poucas vezes uma medida de política educacional foi tão cínica em seu propósito antidemocrático, como no caso da Resolução 946, publicada em 25/04/07, da Secretaria Municipal de Educação da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro
Em nome do direito ao acesso e à permanência dos estudantes no ensino fundamental, a Portaria implementa mecanismos de aprovação automática e de flexibilização da obrigatoriedade da freqüência nas disciplinas que, considerando as condições de funcionamento da rede municipal de educação do Rio de Janeiro, produzirão, de uma parte, genocídio intelectual em toda uma geração de estudantes e, de outra, uma distorção e banalização das experiências do ensino por ciclos.
O processo de avaliação até então em curso qualificava os estudantes, por disciplina, com os conceitos I (Insuficiente), R (Regular), B (Bom), MB (Muito Bom) e O (Ótimo). Nos termos da Portaria, os conceitos I, indicativo de reprovação, e O, de elevado desempenho, foram extintos, garantindo que um estudante progrida da Classe de Alfabetização até a 8a série sem reprovação. É importante salientar que esse estudante pode concluir o nível fundamental com alto índice de faltas concentradas em poucas disciplinas. Com efeito, ao determinar apenas 75% da freqüência no fim do percurso do ensino fundamental (o que permitiria ao estudante ter o equivalente a dois anos de faltas!), a Resolução permite a esse mesmo estudante a conclusão do ensino fundamental com conceito global R, mesmo sem ter acompanhado, por exemplo, as aulas de matemática e de história.
Por isso, não é possível deixar de exaltar a extraordinária manifestação dos professores da rede municipal que, organizados por seu sindicato, o SEPE, foi capaz de reunir cerca de 4 mil docentes e pessoal administrativo para uma luta que tem como eixo a defesa do direito da juventude de ter acesso ao conhecimento científico, artístico, cultural e tecnológico, comprovando que os sindicatos da educação sempre associaram suas lutas econômico-corporativas à melhoria da qualidade do ensino público.
Será que todas essas manifestações de indignação contra a Resolução significam a defesa da pedagogia da repetência que, nos anos 1980, ceifava a vida escolar de 35% dos estudantes? Evidentemente que não.
Infelizmente, as orientações “bancomundialistas” tentam reduzir o ciclo à aprovação automática. A referida Portaria ignora décadas de pesquisas e de experiências inovadoras, e comprometidas com a educação pública de qualidade, que justamente sustentam a necessidade de superar a pedagogia da repetência sem medidas demagógicas e descomprometidas com o padrão de qualidade do ensino público e gratuito.
A existência de um ciclo inicial – prática que atualmente abrange aproximadamente 20% dos estudantes do ensino fundamental, em geral agrupando em um mesmo ciclo a CA até a segunda série – não deve ser confundida, necessariamente, com a aprovação automática. Mas a crença de que a avaliação, em si mesma, transforma a realidade educacional, doutrina difundida pelo Banco Mundial, está presente na grande maioria das experiências em curso. Os neoliberais aprenderam rápido que com essas orientações seria possível “forçar” a melhoria dos índices escolares sem a ampliação das verbas educacionais e, desde então, vêm promovendo essas mirabolantes inovações educacionais que somente degradam a escola pública.
Os educadores, professores e defensores da educação pública de alta qualidade sempre diferenciaram a prática nefasta da aprovação automática (como a SME quer implementar) da prática de avaliação continuada, processo radicalmente distinto, pois preconiza que a avaliação deve ser realizada pelos protagonistas da educação (e não por órgãos centralizados nos governos ou ligados a iniciativa privada) e que a mudança radical nas práticas de avaliação deve estar inserida em um processo muito mais amplo de redefinição do espaço, do tempo e das condições de trabalho nas escolas.
Os dois problemas cruciais que distinguem as duas formas de pensar a avaliação são, em primeiro lugar, a jornada escolar diária: a reprovação deixa de ter sentido em um ambiente de ensino e aprendizagem em tempo integral, em que as crianças podem vivenciar experiências educacionais que garantam real aprendizado a cada um dos estudantes. Cabe lembrar que, das aproximadamente 170 mil escolas públicas brasileiras, apenas 47% possuem jornada diária superior a quatro horas de aula. Em segundo, mas não menos importante, os sistemas públicos de educação não asseguram professores em tempo integral e com dedicação exclusiva mantendo, ainda, um padrão salarial para os docentes que, conforme a Unesco, é baixo ainda se comparado aos padrões latino-americanos. Outros problemas derivados, como classes superlotadas, infra-estrutura degradada etc., confirmam um padrão de oferta de educação pública que, obviamente, é incompatível com o conceito de educação pública de qualidade.
No caso do município do Rio de Janeiro, não chega a surpreender que a aprovação automática seja implementada justo em um momento em que os investimentos educacionais estão entre os mais baixos da história. Estudo do mandato do Vereador Eliomar Coelho atesta que atualmente os investimentos estão profundamente reduzidos o que, inevitavelmente, repercutiria nas condições de ensino-aprendizagem das escolas municipais e ensejaria balanços negativos em um ano eleitoral. Assim, antes que os índices fossem apresentados, o prefeito muda a forma de avaliação para que a perda de qualidade não possa ser aferida. Quando o fracasso da medida ficar evidente, em alguns poucos anos, o jogo eleitoral já será outro.
Tampouco devemos pensar que esse padrão minimalista é uma perversidade exclusiva da prefeitura. A mesma lógica está presente no Plano de Desenvolvimento da Educação do Governo Federal. Nos termos de Saviani , o Plano está referenciado em uma lógica que “poderia ser traduzida como uma espécie de ´pedagogia de resultados´. Assim, o governo se equipa com instrumentos de avaliação de produtos forçando, com isso, que o processo se ajuste a essa demanda. É, pois, uma lógica de mercado que se guia, nas atuais circunstâncias, pelos mecanismos das chamadas ´pedagogia das competências´ e da ‘qualidade total´.”
Mesmo o irrisório piso salarial (R$ 850,00) além de gradual, inclui todos os itens que compõem a remuneração dos professores, como auxílio transporte, alimentação etc. sendo melhor denominado de teto salarial. E nada é feito quanto aos recursos globais para toda a educação pública, hoje estagnados em 3,5% do PIB. Embora seja uma lembrança inconveniente, por que o governo Federal não retira o veto ao aumento das verbas educacionais para 7% do PIB, nos termos da deliberação do Congresso Nacional quando da votação do Plano Nacional de Educação? Assim, teríamos profundas transformações na educação e a questão da reprovação seria página virada na história da educação brasileira, sem mágicas e pirotecnias.
Está claro, pois, que as classes dominantes não estão preocupadas com a educação de todas as crianças e jovens. O padrão de acumulação que desindustrializa e reprimariza o país de fato não requer educação pública de alta qualidade; por isso, a luta pela escola pública é também uma luta contra o capitalismo dependente. Lutar contra a Resolução 946/07 e as pífias medidas do PDE são formas de anunciar um projeto alternativo à barbárie neoliberal, conferindo concretude às lutas por uma sociedade além do capital.
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