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Artigos de opinião

Artigos de opinião

Bracuí: velhas lutas, jovens histórias

O Observatório Jovem do Rio de Janeiro finalizou o seu quarto documentário que tem jovens como “personagens” principais. Na prática, contudo, não deveríamos falar dos jovens como os únicos protagonistas deste recente filme sobre a comunidade de Santa Rita do Bracuí, município de Angra dos Reis. O que percebemos e registramos com o filme foi um vigoroso campo de relações intergeracionais vivido por crianças, jovens, adultos e antigos moradores atualizando os sentidos da vida comunitária

Salvemos a escola pública

No estado do Rio, 20 mil crianças não freqüentam salas de aula por falta de professores. O índice nacional de reprovação é 11,9%. Recente pesquisa realizada pela Unesco, em parceria com o governo federal, comprovou que 82,4% dos alunos reprovados no ensino fundamental culpam a si mesmos pelo fracasso

Antes de ingressar na faculdade, em 1964, estudei oito anos em escola pública. Como ocorre agora com as universidades, em geral elas superavam em qualidade os colégios particulares. Além da inigualável vantagem de serem gratuitas.

Hoje, nossas escolas públicas de ensino básico estão sucateadas. Foram deterioradas pela má administração pública, a corrupção, o descaso para com alunos e professores. Há, no Brasil, 55 mil escolas públicas. Segundo a OCDE, apenas 0,2%, ou seja, 160 alcançam um índice de desempenho considerado médio.

Adotam-se no Brasil, para classificar nossas escolas de ensino básico, o Saeb (Sistema de Avaliação da Educação Básica), feito por amostragem, e o Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), que dá nota de 0 a 10 às instituições de ensino, tendo por critério o desempenho dos alunos na Prova Brasil, exame aplicado a todos os alunos de 4ª. e 8ª. séries.

Em todo o país, apenas 160 escolas mereceram nota 6 ou acima. Nas séries iniciais do ensino fundamental nossa nota é 3,8. Os cursos de 5a a 8a séries ganharam nota 3,5. No ensino médio, 3,4. A meta do MEC, estimulado pela campanha “Compromisso Todos pela Educação”, é que a maioria de nossas escolas atinja a nota 6 em 2021. O Ideb atual da Holanda é 7; do Reino Unido, 6,5. Há no Brasil colégios, raros, que receberam nota 8,5, como a Escola Professora Guiomar Gonçalves Neves, em Trajano de Morais (RJ). É a de melhor qualidade no país.

Será que daqui a 15 anos – véspera do bicentenário da independência do Brasil – alcançaremos a meta almejada? No estado do Rio, 20 mil crianças não freqüentam salas de aula por falta de professores. O índice nacional de reprovação é 11,9%. A distorção idade/série é 17,3%.

O que faz uma boa escola? Muitos fatores, entre os quais disciplina, ou seja, não tolerar atrasos de alunos; contar com professores efetivos e qualificados (mestrado, doutorado ou especialização) trabalhando em tempo integral; remunerar dignamente o corpo docente; aumentar a permanência do aluno na escola; contar com oficinas de música, teatro e artes plásticas; laboratórios de idiomas, ciências e informática; grêmio estudantil; salas de leitura e vídeo etc.

O MEC promete que o governo haverá de liberar, ainda este ano, R$ 30 milhões para as escolas urbanas, e R$ 66 milhões para as rurais. As 5 mil escolas com piores índices no Ideb terão direito, cada uma, a módicos R$ 6 mil para investirem em infra-estrutura, material pedagógico e apoio metodológico. Através de sistema de educação à distância – a Universidade Aberta do Brasil –, o MEC pretende qualificar 2 milhões de professores do ensino básico.

Recente pesquisa realizada pela Unesco, em parceria com o governo federal, comprovou que 82,4% dos alunos reprovados no ensino fundamental culpam a si mesmos pelo fracasso. A mesma pesquisa indica que a culpa não pode ser atribuída às crianças. Ela recai na falta de motivação dos professores, na péssima infra-estrutura das escolas e no fato de diretores e professores não darem importância à realidade pessoal e familiar do estudante.

Não se pode culpar uma criança de 10 anos pelo fracasso escolar. No entanto, se isso não fica claro para ela, se não se sente valorizada na escola e querida pelos professores, ficará com sentimento de derrota, o que pode revoltá-la ou levá-la ao desânimo precoce.

A maioria de nossos estudantes chega à 4ª. série com dificuldade de leitura e redação. Falta estímulo ao professor, muitas vezes submetido à carga excessiva de trabalho, sem condições de aprimorar sua qualificação e humilhado por salário irrisório.

Em fins de junho, o Banco Mundial divulgou o relatório “Jovens em situação de risco no Brasil”. As conclusões preocupam: nossos jovens entre 15 e 14 anos matam e morrem mais, iniciam a vida sexual cada vez mais cedo e são vulneráveis às drogas. Dados da Secretaria Nacional da Juventude mostram que, hoje, 9,5 milhões de brasileiros entre 15 e 29 anos não estudam e estão desempregados. Desses, 4,5 milhões não completaram o ensino fundamental. É entre estes que se inclui a maioria dos assassinos e dos assassinados.

O que fazer diante desse quadro aflitivo? Pressionar o poder público? Sim. Votar ano que vem em vereadores e prefeitos comprometidos com a prioridade Educação? Também. Mas por que não reunir as famílias de seu bairro ou comunidade e promover um mutirão para a melhoria das escolas públicas da região? Por que não assegurar instrução e/ou emprego a um ou dois desses 9,5 milhões de jovens vulneráveis ao narcotráfico? 

*Frei Betto é escritor, consultor do MST e autor de A obra do Artista —  Uma visão holística do Universo, entre outros livros.
 

Publicado originalmente em 13/08/2007, no Blog do Galeno (http://www.blogdogaleno.com.br/texto_ler.php?id=1103&page=14)

"Juventude": A dor como um processo necessário

Juventude é um filme temática e esteticamente ligado à chamada primeira fase do cinema de Ingmar Bergman. Em seu filme seguinte, Noites de Circo, o autor finalmente encontrará pela primeira vez a sua expressão autoral de cinema em caráter definitivo

Em seus filmes anteriores, da sua chamada primeira fase, Bergman ainda tenta encontrar um caminho autoral, mas esbarra na tradição dos melodramas do cinema nórdico. Nesses filmes, existem características que prenunciam o cinema que Bergman irá desenvolver a partir de Noites de Circo. Mas essas características aparecem apenas de forma esparsa, de forma assistemática. É a prova de um autor buscando caminhos próprios.

Nesse contexto, Juventude merece atenção especial, exatamente por ser o filme imediatamente anterior a Noites de Circo. Em sua própria temática, existem de forma esparsa várias personagens que Bergman irá retomar em alguns de seus grandes clássicos. A atriz famosa que apreende o vazio de sua existência, o lirismo da colheita de morangos silvestres num flashback, o jogo de xadrez com uma mulher que se diz imortal, entre outras, lembram o contexto de vários de seus filmes posteiores. Além disso, estão presentes a estrutura em flashbacks, o jogo de espelhos, a importância do close, a questão existencial e a perda da fé em Deus.

O drama da bailarina Marie, a sua percepção do pesadelo e da falta de sentido da sua vida, se inicia quando ela recebe o diário de Hendrik, mandado por seu tio Erland, conforme saberemos mais tarde. O envio do diário é na verdade uma expressão de vingança, já que a paixão do tio pela bailarina não é correspondida. O tio sabe que o diário fá-la-á sofrer. No instante em que a bailarina percebe que o caderno que recebera se trata na verdade do diário de Hendrik, seu antigo namorado, ela instantaneamente se relembra de todos os traumas de seu passado, e percebe que sua vida nos palcos foi na verdade uma grande fuga de problemas que ela ainda não conseguiu resolver consigo mesma. Por isso, ela se sente mal, e dificilmente conseguirá representar. Nesse instante cruel, nesse arrepio de vazio que sintetiza a essência do filme, a câmera se aproxima do rosto da bailarina e a enquadra em primeiríssimo plano. Essa é uma seqüência típica da posterior segunda fase do diretor.

Uma das características é o franco fatalismo do filme. Qunado a bailarina sai de seu camarim, pálida e ausente, ouvimos várias pessoas da equipe dizendo que sonharam ou que têm a sensação clara de que alguma coisa péssima acontecerá com o espetáculo. O curto-circuito na verdade salva Marie, porque ela terá tempo de fazer o seu necessário ajuste de contas com seu passado não assimilado. Mas de fato, a metáfora é clara: o palco fica às escuras, e nesse clima introspectivo, Marie se vê impossibilitada de fugir de seus problemas com a luz artificial da dança. Ela, então, sai do lugar de apresentações e faz uma viagem em busca de um sentido para os acontecimentos de seu passado. Uma viagem de auto-descoberta, onde ela volta ao local onde seu drama se iniciou. Daí o flashback se inicia...

Em Juventude, os locais vazios ganham uma importância fundamental, que espelham o estado psicológico da personagem. O início do filme nos situa exatamente neste clima, quando vemos cenários vazios (quase à moda de Ozu) que situam os arredores do teatro. Em filmes posteriores, igualmente introspectivos, Bergman também optou por início semelhante, como em Gritos e sussurros e The touch.

No flashback é que o filme se revela um melodrama, que culmina com a morte um pouco estranha do rapaz: ele mergulha num lugar cheio de pedras. O lento envolvimento do casal, a timidez do rapaz, a incomunicabilidade deste com sua "família", a paixão do tio pela moça, a divisão de Marie entre seu amor e a dança são apresentados de forma lenta, poética e sugestiva, anunciando a posterior tragédia. O melodrama tem momentos desiguais, mas ainda assim é o melhor melodrama da primeira fase do cinema de Bergman. O amplo domínio da narrativa, a exuberante fotografia de Fischer recobrem o filme de um lirismo simples e autêntico. O flashback é ainda muito bem mesclado. Marie volta ao local onde ela e Hendrik fizeram amor pela primeira vez e toca nos umbrais, com a luz do sol tocando levemente sua face. Em seguida, encontra Erland, amargurado e decadente. As cenas do lago também são memoráveis, especialmente a cena em que Marie sai de sua casa e se aproxima da ponte, onde encontra Hendrik.

Marie só conseguirá construir um futuro se conseguir resolver seus problemas internos do passado. Por isso, ela faz uma espécie de volta às origens, redescobrindo seu passado, voltando ao lugar onde todo o caso acontecera e revendo seu asqueroso tio Erland. Marie está cansada de fugir. Ele deve enfrentar seu passado, e não mais se esquivar dele através do trabalho, ou da dança. Talvez seja o que o próprio Bergman sinta em sua vida pessoal. Cansado de se esquivar nos melodramas superficiais, Bergman parece estar convencido de que é preciso enfrentar seus fantasmas interiores de forma mais direta, e não se esquivando deles. O resultado é o posterior Noites de Circo.

A habilidade narrativa de Bergman fica comprovada quando ele mistura a presença do passado e a possibilidade do futuro, representada através de dois homens. Ora, passado e futuro sempre estão interligados, porque a vida é contínua, e Marie só poderá construir um futuro se aprender a dialogar com o passado. Os primeiros contatos de Marie com o jornalista são frustrados, porque Marie ainda tem medo de se ferir novamente, e evita o contato com os homens. Mas ela sabe que o tempo passa, e ela tem medo de ficar sozinha. Ao mesmo tempo em que resolve seus traumas com o antigo Hendrik, Marie contempla a possibilidade de um futuro com o jornalista.

O diário, portanto, acabou tendo um resultado positivo para Marie. Sem dúvidas, foi-lhe penoso recordar os pesadelos do passado, mas apenas assim, enfrentando-os, Marie pode construir um futuro. O diário foi a chave de um processo de busca de uma nova identidade. Seu passado foi traumático, mas Marie pode conviver com isso, e partir para uma nova possibilidade, mesmo que seja pior que o mundo de antes. A tentativa desse novo esquilíbrio é com certeza melhor que fugir, para esquecer o equilíbrio de antes que é por definição insustentável. Quando Marie finalmente consegue dialogar com seu passado, encarar seus traumas com o mínimo de dignidade, Marie então está pronta a enfrentar um novo futuro, uma perspectiva que se abre indefinida pela frente. Bergman é no fundo neste filme um grande otimista, pois acredita que Marie finalmente conseguirá reconstruir a sua vida. A estréia do espetáculo agora para ela ganha um novo sentido: um novo espetáculo, um novo desafio, um novo dia...

Em vários de seus filmes posteriores, Bergman irá romper com essa possibilidade de um novo caminho, mas no fundo Bergman nunca achou que a vida é ruim. As dificuldades são apenas um processo necessário de uma busca de uma verdadeira identidade, e Juventude reflete à perfeição essa idéia.

***

Publicado originalmente em 28/08/99 - http://www.geocities.com/Hollywood/Agency/8041/juventud.html

Juventude, divino Tesouro

Ficha Técnica
Título Original: Sommarlek
Gênero: Drama
Tempo de Duração: 72 minutos
Ano de Lançamento (Suécia): 1951
Estúdio: Svensk Filmindustri AB
Distribuição: Gaston Hakim International
Direção: Ingmar Bergman
Roteiro: Ingmar Bergman e Herbert Grevenius
Produção: Allan Ekelund
Música: Erik Nordgren
Fotografia: Gunnar Fischer
Desenho de Produção: Nils Svenwall
Edição: Oscar Rosander

 Elenco
Maj-Britt Nilsson (Marie)
Birger Malmsten (Henrik)
Alf Kjellin (David Nyström)
Annalisa Ericson (Kaj)
Georg Funkquist (Tio Erland)
Stig Olin (Mestre de balé)
Mimi Pollak (Sra. Calwagen)
Renée Björling (Tia Elisabeth)
Gunnar Olsson (Padre)
Christopher Lee

 Sinopse
Marie (Maj-Britt Nilsson) é uma bailarina clássica não muito jovem que, ao encontrar um antigo diário, recorda um verão que passou com Erland (Georg Funkquist), um possessivo tio que vivia com sua cancerosa esposa (Renée Björling) numa ilha perto de Estocolmo. Lá Marie faz amizade com um inocente jovem, Henrik (Birger Malmsten), por quem ela logo se apaixona. Quando o verão está para terminar os jovens amantes estão muito envolvidos, mas algo trágico irá acontecer.

ficha técnica publicada em:

http://adorocinema.cidadeinternet.com.br/filmes/juventude-divino-tesouro/juventude-divino-tesouro.asp

 
 

A influência da mídia sobre os jovens

Rosa Fischer é doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Em seu texto “Mídia e juventude: experiências do público e do privado na cultura” Rosa discute a influência da mídia na forma que os jovens têm construído sua vida pública e sua vida privada. Para isso, analisa os conteúdos veiculados pela grande mídia para esse público, assim como a resposta dos jovens a esses conteúdos

Leia aqui o texto “Mídia e juventude: experiências do público e do privado na cultura”

Leia também outros textos de Rosa Maria Bueno Fischer, disponíveis no site Scielo

A imagem do Rio nos livros didáticos

Como realidade cotidiana da cidade, o tráfico de drogas não deve jamais virar um tema tabu nas escolas e tem legitimidade para ser abordado nas aulas de geografia. O problema aqui é difundir imagens que estabeleçam uma relação direta entre favela e tráfico, sem problematizar como distintos espaços e seus protagonistas participam deste comércio mundial

Cesar Maia é um político que conhece o poder das imagens, e não por acaso conseguiu transformar o laranja da Comlurb em marca da prefeitura. Onde há laranja, há prefeitura, e esta associação iconográfica fica clara nas faixas existentes ao longo da Linha Vermelha: "agora a linha é laranja"! É assim que se busca evidenciar a presença do poder público, uma guerra das cores, uma guerra das imagens. Hoje há uma vertente do planejamento urbano que se preocupa quase que exclusivamente com o marketing das cidades, buscando destacar singularidades que qualificam os espaços no intuito de atrair investimentos.

Como professor de geografia da UERJ, me chamou muita atenção a polêmica criada em torno do livro didático "Geografia - Sociedade e Cotidiano", indicado recentemente pelo Ministério da Educação para a sexta séria das escolas públicas. No referido livro, ao discutir a formação territorial do Brasil, os autores mostram um mapa do Rio de Janeiro com as facções criminosas nas favelas da cidade, além de uma foto onde um policial entra fortemente armado no complexo de favelas do Alemão.

Claramente o que está em jogo é a imagem da cidade do Rio de Janeiro, e o poder que a geografia tem, a partir de imagens cartográficas ou fotográficas, de qualificar os espaços. Este foi o papel da geografia tradicional e regionalista e tem relação com a própria origem da palavra "geo-grafia", que enquanto descrição da terra buscou produzir discursos e relatos sobre as distintas regiões do mundo. Ao caracterizar um espaço sempre selecionamos alguns elementos a serem destacados e excluímos outros. O que incomodou o sindicato dos professores e o prefeito Cesar Maia foi justamente esta seleção, considerada "uma aberração para crianças de 12 anos".

O que deve ser destacado aqui não é a presença ou ausência deste conteúdo na sexta série e sim o poder que a geografia escolar tem na criação de um imaginário social sobre os espaços. Para minha surpresa, frente à polêmica criada, um dos autores prontamente justificou-se: "foi um mapa publicado no jornal", justificou-se, como que lavando as mãos e apontando o dedo acusatório para uma fonte que cada dia mais tem sido utilizada pelos professores de geografia, a imprensa. O conteúdo jornalístico é uma referência para o saber escolar. No entanto, é preciso refletir sobre sua forma de apropriação, que não pode ser feita sem mediações pelo professor, sob pena de reproduzir estereótipos já difundidos na sociedade.

Em minha dissertação de mestrado defendida na UFRJ, discuti exatamente a representação das drogas ilícitas na cartografia jornalística brasileira. Comparando mapas jornalísticos que representavam o tráfico de drogas na cidade desde a década de 1970, evidenciei que existem mudanças nas formas de perceber (e consequentemente de representar) este fenômeno. Os mapas da década de 1970 situavam o tráfico de drogas em ruas da cidade formal. O tráfico de cocaína, por exemplo, era representado em ruas de Copacabana, galerias e bares, sendo raramente associado às favelas. A estruturação do tráfico de drogas e seu impacto no imaginário social conduziram praticamente a uma ausência destas representações nas décadas seguintes, onde se observa uma associação freqüente entre tráfico e favela.

Ora, sabe-se que o tráfico continua a ocorrer nas ruas da cidade e que ele articula camadas distintas da sociedade. Além disso, os consumidores com maior poder aquisitivo tendem a circular nas áreas mais nobres e tem cada vez mais medo da violência das favelas, desenvolvendo outras estratégias para obtenção das drogas. Estas informações nos levam a crer que as drogas seguiram sendo comercializadas na chamada cidade formal, no entanto sua representação foi sendo suprimida de forma crescente.

Como realidade cotidiana da cidade, o tráfico de drogas não deve jamais virar um tema tabu nas escolas e tem legitimidade para ser abordado nas aulas de geografia. O problema aqui é difundir imagens que estabeleçam uma relação direta entre favela e tráfico, sem problematizar como distintos espaços e seus protagonistas participam deste comércio mundial. O problema não é "entregar um livro tratando do tráfico de drogas", como afirmou Cesar Maia, e sim a associação direta deste tráfico com as favelas, visão que tem estimulado grande parte de nossas políticas públicas que reprimem exclusivamente estes espaços.

Acima de tudo, o repúdio do prefeito é um reconhecimento do poder das imagens geográficas na criação de um imaginário social que qualifica os espaços. Para ele não tem problema que haja uma associação entre tráfico e favela, o problema é que estas favelas estão na cidade do Rio de Janeiro e esta tenta ser vendida como moderna, esportiva e laranja.

* André Reyes Novaes é professor do Departamento de Geografia da UERJ

Originalmente publicada em http://oglobo.globo.com/opiniao/mat/2007/07/06/296669214.asp, em  06/07/2007 às 18h58m

Aprovação automática: educação neoconservadora e negação do direito ao conhecimento

Gaudêncio FrigottoRoberto LeherPoucas vezes uma medida de política educacional foi tão cínica em seu     propósito   antidemocrático, como no caso da Resolução 946, publicada em 25/04/07, da Secretaria Municipal de Educação da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro

Em nome do direito ao acesso e à permanência dos estudantes no ensino fundamental, a Portaria implementa mecanismos de aprovação automática e de flexibilização da obrigatoriedade da freqüência nas disciplinas que, considerando as condições de funcionamento da rede municipal de educação do Rio de Janeiro, produzirão, de uma parte, genocídio intelectual em toda uma geração de estudantes e, de outra, uma distorção e banalização das experiências do ensino por ciclos.

O processo de avaliação até então em curso qualificava os estudantes, por disciplina, com os conceitos I (Insuficiente), R (Regular), B (Bom), MB (Muito Bom) e O (Ótimo). Nos termos da Portaria, os conceitos I, indicativo de reprovação, e O, de elevado desempenho, foram extintos, garantindo que um estudante progrida da Classe de Alfabetização até a 8a série sem reprovação. É importante salientar que esse estudante pode concluir o nível fundamental com alto índice de faltas concentradas em poucas disciplinas. Com efeito, ao determinar apenas 75% da freqüência no fim do percurso do ensino fundamental (o que permitiria ao estudante ter o equivalente a dois anos de faltas!), a Resolução permite a esse mesmo estudante a conclusão do ensino fundamental com conceito global R, mesmo sem ter acompanhado, por exemplo, as aulas de matemática e de história.

Por isso, não é possível deixar de exaltar a extraordinária manifestação dos professores da rede municipal que, organizados por seu sindicato, o SEPE, foi capaz de reunir cerca de 4 mil docentes e pessoal administrativo para uma luta que tem como eixo a defesa do direito da juventude de ter acesso ao conhecimento científico, artístico, cultural e tecnológico, comprovando que os sindicatos da educação sempre associaram suas lutas econômico-corporativas à melhoria da qualidade do ensino público.

Será que todas essas manifestações de indignação contra a Resolução significam a defesa da pedagogia da repetência que, nos anos 1980, ceifava a vida escolar de 35% dos estudantes? Evidentemente que não.

Infelizmente, as orientações “bancomundialistas” tentam reduzir o ciclo à aprovação automática. A referida Portaria ignora décadas de pesquisas e de experiências inovadoras, e comprometidas com a educação pública de qualidade, que justamente sustentam a necessidade de superar a pedagogia da repetência sem medidas demagógicas e descomprometidas com o padrão de qualidade do ensino público e gratuito.

A existência de um ciclo inicial – prática que atualmente abrange aproximadamente 20% dos estudantes do ensino fundamental, em geral agrupando em um mesmo ciclo a CA até a segunda série – não deve ser confundida, necessariamente, com a aprovação automática. Mas a crença de que a avaliação, em si mesma, transforma a realidade educacional, doutrina difundida pelo Banco Mundial, está presente na grande maioria das experiências em curso. Os neoliberais aprenderam rápido que com essas orientações seria possível “forçar” a melhoria dos índices escolares sem a ampliação das verbas educacionais e, desde então, vêm promovendo essas mirabolantes inovações educacionais que somente degradam a escola pública.

Os educadores, professores e defensores da educação pública de alta qualidade sempre diferenciaram a prática nefasta da aprovação automática (como a SME quer implementar) da prática de avaliação continuada, processo radicalmente distinto, pois preconiza que a avaliação deve ser realizada pelos protagonistas da educação (e não por órgãos centralizados nos governos ou ligados a iniciativa privada) e que a mudança radical nas práticas de avaliação deve estar inserida em um processo muito mais amplo de redefinição do espaço, do tempo e das condições de trabalho nas escolas.

Os dois problemas cruciais que distinguem as duas formas de pensar a avaliação são, em primeiro lugar, a jornada escolar diária: a reprovação deixa de ter sentido em um ambiente de ensino e aprendizagem em tempo integral, em que as crianças podem vivenciar experiências educacionais que garantam real aprendizado a cada um dos estudantes. Cabe lembrar que, das aproximadamente 170 mil escolas públicas brasileiras, apenas 47% possuem jornada diária superior a quatro horas de aula. Em segundo, mas não menos importante, os sistemas públicos de educação não asseguram professores em tempo integral e com dedicação exclusiva mantendo, ainda, um padrão salarial para os docentes que, conforme a Unesco, é baixo ainda se comparado aos padrões latino-americanos. Outros problemas derivados, como classes superlotadas, infra-estrutura degradada etc., confirmam um padrão de oferta de educação pública que, obviamente, é incompatível com o conceito de educação pública de qualidade.

No caso do município do Rio de Janeiro, não chega a surpreender que a aprovação automática seja implementada justo em um momento em que os investimentos educacionais estão entre os mais baixos da história. Estudo do mandato do Vereador Eliomar Coelho atesta que atualmente os investimentos estão profundamente reduzidos o que, inevitavelmente, repercutiria nas condições de ensino-aprendizagem das escolas municipais e ensejaria balanços negativos em um ano eleitoral. Assim, antes que os índices fossem apresentados, o prefeito muda a forma de avaliação para que a perda de qualidade não possa ser aferida. Quando o fracasso da medida ficar evidente, em alguns poucos anos, o jogo eleitoral já será outro.

Tampouco devemos pensar que esse padrão minimalista é uma perversidade exclusiva da prefeitura. A mesma lógica está presente no Plano de Desenvolvimento da Educação do Governo Federal. Nos termos de Saviani , o Plano está referenciado em uma lógica que “poderia ser traduzida como uma espécie de ´pedagogia de resultados´. Assim, o governo se equipa com instrumentos de avaliação de produtos forçando, com isso, que o processo se ajuste a essa demanda. É, pois, uma lógica de mercado que se guia, nas atuais circunstâncias, pelos mecanismos das chamadas ´pedagogia das competências´ e da ‘qualidade total´.”

Mesmo o irrisório piso salarial (R$ 850,00) além de gradual, inclui todos os itens que compõem a remuneração dos professores, como auxílio transporte, alimentação etc. sendo melhor denominado de teto salarial. E nada é feito quanto aos recursos globais para toda a educação pública, hoje estagnados em 3,5% do PIB. Embora seja uma lembrança inconveniente, por que o governo Federal não retira o veto ao aumento das verbas educacionais para 7% do PIB, nos termos da deliberação do Congresso Nacional quando da votação do Plano Nacional de Educação? Assim, teríamos profundas transformações na educação e a questão da reprovação seria página virada na história da educação brasileira, sem mágicas e pirotecnias.

Está claro, pois, que as classes dominantes não estão preocupadas com a educação de todas as crianças e jovens. O padrão de acumulação que desindustrializa e reprimariza o país de fato não requer educação pública de alta qualidade; por isso, a luta pela escola pública é também uma luta contra o capitalismo dependente. Lutar contra a Resolução 946/07 e as pífias medidas do PDE são formas de anunciar um projeto alternativo à barbárie neoliberal, conferindo concretude às lutas por uma sociedade além do capital. 

***

Leia também a matéria "Aprovação Automática: Solução ou ameaça para a educação no Rio?"

Comentários sobre a entrevista Juventude e Desemprego

Gostaria de fazer alguns comentários sobre a entrevista do Prof. Paulo Carrano, concedida ao Instituto Souza Cruz... A entrevista me encaminha a seguinte reflexão: de fato,  as políticas públicas têm sido "ineficientes" para favorecer o ingresso dos jovens no mercado (não precário) de trabalho. Mas têm sido "eficientes" na medida em que vão ao encontro da atual lógica de acumulação de capital e da lógica neoliberal de tratar a questão social, marcada pela pobreza

Em primeiro lugar, quero parabenizá-lo pela riqueza dos dados e a pela forma brilhante como analisa o contexto em que se dá o desemprego juvenil.

A entrevista me encaminha a seguinte reflexão: de fato,  as políticas públicas têm sido "ineficientes" para favorecer o ingresso dos jovens no mercado (não precário) de trabalho. Mas têm sido "eficientes" na medida em que vão ao encontro da atual lógica de acumulação de capital e da lógica neoliberal de tratar a questão social, marcada pela pobreza. Não por casualidade o resultado dos milhares de pequenos programas e projetos esporádicos, descontínuos e dispersos têm resultado, de uma maneira geral, na  inserção de jovens (e também de adultos e idosos) de forma AINDA MAIS precária no mundo do trabalho. 

Num contexto em que, com a acumulação flexível, o emprego com direito sociais torna-se carta fora do baralho, a contribuição da grande maioria das ONGs tem sido no sentido de  fazer "animação cultural" para incutir no jovem  o espírito do “empreendedorismo juvenil”, ou seja,  o espírito de ter iniciativa e  criatividade para inventar o trabalho por contra própria, conseguir se virar sozinho no mercado,  tornando-se o "patrão de si mesmo". 

Já não está mais na moda falar em “educação para a empregabilidade”, mas em “educação para o empreendedorismo”. Sem dúvida, a baixa escolaridade dificulta que os jovens possam COMPETIR entre si por uma vaga no mercado. No entanto, embora o direito à Educação Básica deva ser assegurado, ela não pode ser entendida como a "galinha dos ovos de ouro". A escola nunca foi a solução para os males sociais.

Em síntese, penso que, ao longo da história, as políticas públicas  têm sido apenas um paliativo para aliviar os efeitos perversos da política econômica !!!.

Por fim, queria registrar que também considero  o cooperativismo e outras formas associativas uma possibilidade de trabalho  que tem como base um novo tipo de sociabilidade . Para semear a perspectiva de que trabalho associativo não se confunda com "empreendedorismo" e tampouco seja útil às cadeias produtivas requeridas pelo capital, poderia ser muito interessante se os jovens conseguissem se organizar em torno do movimento da economia popular solidária, em âmbito regional e nacional.

 Para ser forte e para que possa vingar como alternativa de trabalho, as iniciativas associativas não podem se dar de forma isolada.  Com isto estou querendo sinalizar que o trabalho associativo precisa sair das quatro paredes da organização econômica, tomar as ruas, sair mundo a fora levando a bandeira de uma cultura do trabalho que se contraponha à lógica do capital.   Além de estratégia de trabalho e de sobrevivência, o associativismo é uma forma de luta e, ao mesmo tempo, uma forma da gente ir ensaiando, desde já, uma "sociedade dos produtores livremente associados" (na verdade, é isso que desejo e acredito !!!)

Obrigada a todos vocês do Observatório Jovem que nos propiciam tanta reflexão e desejo de ação. Um abraço, Lia Tiriba.   

Lia Tiriba é doutora em Educação, professora do Programa de Pós-Graduação em da UFF e integrante do NEDDATTE/UFF (Núcleo de Estudos, Documentação e Dados sobre Trabalho e Educação)

 

Nossa realidade

Marco Aurélio BarbosaMarco Aurélio da Silva Barbosa, arte educador da ONG Se Essa Rua Fosse Minha, fala sobre as reais condições da juventude brasileira. "Falta à sociedade tratar essas pessoas como verdadeiros seres humanos, que precisam muito mais do que um prato de comida, que precisam ser valorizados e respeitados"

Viemos da antiga e dura realidade que, infelizmente, até hoje é a do Brasil. A realidade do desemprego, da violência, da discriminação e de outros fatores que impedem os brasileiros de viver em paz, em liberdade e tranqüilos.

A maioria dos jovens esbarra com uma grande dificuldade: conseguir fazer suas economias honestamente. Às vezes, vêem os furtos, o tráfico de drogas e outras coisas ilegais como solução. As autoridades discordam dessas ações e prendem, não só os fora da lei como também os jovens e os pais de família que caem nesta tentação...

Mas... Será que é só isso que eles vêem como solução?! Prender pessoas como se fossem animais de zoológico?! O pior é que os detentos não têm um trabalho de reintegração e saem das prisões, muitas vezes, piores do que quando entraram. A dificuldade de arrumar um trabalho aumenta pelo simples fato de ser um ex-presidiário. Isso logo se transforma em uma marca para esse sujeito. Dificilmente ele arruma um trabalho, então retorna à criminalidade. Nesse meio tempo,  a polícia acaba tirando a sua vida. Na minha visão não é isso que irá mudar essa realidade... Agora querem até liberar uma lei que diminua a idade penal... Um verdadeiro absurdo! Falta à sociedade tratar essas pessoas como verdadeiros seres humanos, que precisam muito mais do que um prato de comida, que precisam ser valorizados e respeitados.

Eu faço parte de um coletivo. Vejo que individualmente viemos de lugares diferentes, mas vivemos a mesma realidade. Hoje nós lutamos contra essas desigualdades e percebemos que não precisamos de arma de fogo para vencer essa “guerra”. Temos a arte do circo e o Se Essa Rua (ONG) como base de treinamento. Através da arte nos locomovemos pelo Rio de Janeiro e pelo exterior, não levando apenas o circo, mas a alegria e a esperança de um mundo melhor para todos. Recebemos um convite para um show em uma casa de custódia (Instituto João Luiz Alves). Chegando lá, vimos no mínimo quatrocentos jovens, alguns até conhecidos nossos.

Foi muito triste ver tantos jovens como nós em condições tão diferentes das nossas. Antes de começarmos o espetáculo, alguns jovens me pediram para participar da apresentação. Eu conversei com diretor da casa de custodia para ver se ele podia liberar alguns jovens para participar do show em algumas cenas, a idéia foi aprovada. Quando começamos o espetáculo aconteceu algo muito emocionante! Vimos que havia muitos jovens talentosos, que, rapidamente, entraram em cena sem o mínimo de vergonha e por alguns minutos deixaram de ser presidiários e se tornaram artistas circenses.

Foi o suficiente para tirar lágrimas de muitas pessoas da platéia! Vimos no olhar dos jovens a alegria de ter a oportunidade de mostrar a todos seus talentos e suas qualidades. Muitas destas qualidades nunca haviam sido vistas.

Terminamos o espetáculo em meio a muito choro, mas as lágrimas foram de alegria, de vitória, da esperança de um dia, quem sabe, ter a oportunidade de fazer seu próprio espetáculo. Para mim foi uma das melhores apresentações que fizemos, pois tive um enorme aprendizado, principalmente sobre o valor que tem a nossa liberdade. Lá foi mais um lugar no qual tivemos a oportunidade de dizer para as pessoas que, juntos, podemos construir um mundo diferente. Não podemos achar que isso é problema dos outros; é nossa obrigação, quanto seres humanos, estarmos a todo tempo nos cobrando para que possamos sempre contribuir para essa mudança.

Eu acredito muito no trabalho que faço (que é o circo social) e a cada dia eu penso, crio ou discuto com outras pessoas elementos que façam com que este seja sempre real, não só nas nossas vidas, mas nas vidas de todos que passarem por nós.

A partir desses momentos comecei a pensar, com meus amigos, em como transformar em realidade o desejo que várias crianças das comunidades têm em participar desse universo maravilhoso do circo. Então, começamos a transformar nossos sonhos em projetos e buscamos parceiros para transformar esses projetos em realidade.

Redução da maioridade penal ou medidas socioeducativas?

Ana Karina Brenner

Elaine Monteiro

Até quando vamos deixar que crianças, adolescentes e jovens sejam mortos? A mudança no Estatuto da Criança e do Adolescente, com a redução da maioridade penal, contribuirá para a solução do problema?A aplicação de medidas inadequadas tanto viola um direito que deve ser garantido a adolescentes como produz efeito contrário ao que deveria produzir

    Meio Leve                                         
Vim meio leve, há quase uma semana sem viver               
Nasci pivete chorando uma bagana prá comer                  
Saí de leve , com um passo de quem nunca quis chegar
Virei confete no fundo de uma cela popular                         
Mas posso, mais do que demais                                          
E quanto mais me convém?                                                   
Não quero mais me machucar                                              
Pancada não me faz bem                                                        
Espero mais de minha voz                                                      
Para falar por nós                                                                      
O Anjo Forte que há em mim quer lhe dizer                         
Paz, também sou capaz                                                           
Dor, não preciso de dor                                                            
Dor, ninguém é só dor.                                                             
 (Babilônia - 1992 (1))

O assassinato brutal do menino João Hélio, em fevereiro deste ano, preso ao cinto de segurança e arrastado de carro por um grupo de assaltantes pelas ruas de um bairro do subúrbio carioca,trouxe novamente o debate sobre a redução da maioridade penal à sociedade brasileira, uma vez que no grupo havia um menor de idade. Especialmente na cidade do Rio de Janeiro, a cada dia surgem novas notícias de vítimas de assaltos e de balas perdidas disparadas em confrontos entre policiais e milícias ou traficantes de drogas. A sociedade tem procurado, de diversas formas, manifestar que é preciso uma ação efetiva do Estado para acabar com a violência na cidade. O Brasil se comoveu e solidarizou com os pais de João Hélio que jamais esquecerão  a dor da perda de um filho de forma tão violenta. O mesmo acontecerá com a família de Alana, adolescente de 13 anos morta por uma bala perdida, também em fevereiro, quando voltava para casa no Morro dos Macacos/RJ, e com tantos outros pais, parentes e amigos que têm perdido pessoas queridas nas quais depositavam sonhos e esperanças. A dor e o clamor dos indivíduos e da sociedade, diante de mortes violentas que não podem e não devem ser esquecidas, merecem respostas efetivas. Mas talvez seja o momento de pararmos para nos perguntar se as respostas que estão sendo exigidas do Estado são realmente as mais efetivas.

Ainda que seja quase consenso que a educação é “a base de tudo” e que o caminho para reverter a situação de violência na qual nos encontramos passe por ela, há uma espécie de coro que canta a urgência de medidas mais imediatas. A redução da maioridade penal tem sido apontada como a alternativa rápida para a proteção da sociedade contra a participação de jovens cada vez mais jovens em ações delituosas. Mas este momento de dor e de comoção social diante da violência, que já não se restringe aos espaços dos morros e favelas da cidade e que incide fortemente sobre aquilo que costumamos chamar de “cidade oficial”, também pode trazer à sociedade a possibilidade de fazer algumas escolhas, mais complexas e abrangentes que a proposição de reduzir a maioridade penal. E é sobre estas escolhas que devemos refletir.

João Hélio era uma criança, Alana saía da infância para a adolescência. Dezenas, centenas de jovens são brutalmente assassinados nas periferias urbanas e aparecem apenas como notas nos jornais. A morte da maioria dos jovens pobres nem esta visibilidade alcança. Até quando vamos deixar que crianças, adolescentes e jovens sejam mortos? A mudança no Estatuto da Criança e do Adolescente, com a redução da maioridade penal, contribuirá para a solução do problema? Claramente, muito mais do que a mudança na lei, o que está em jogo em todo este debate é a forma como a sociedade brasileira se relaciona com suas crianças, adolescentes e jovens, assim como o tipo de sociedade que deseja construir.

Uma sociedade que mata ou deixa matar suas crianças, como disse um dia Betinho (Herbert de Souza), talvez tenha começado o seu suicídio enquanto sociedade. Isso nos faz lembrar Hanna Arendt, que chama a função preservadora da educação de natalidade. Trata-se, na verdade, da responsabilidade dos adultos com a preservação da própria humanidade e com a continuidade da sociedade. Neste momento, temos que nos perguntar: qual o mundo que mostramos aos nossos jovens? Quem são os seres humanos que educamos para a vida em sociedade? O que têm feito a sociedade e o Estado em favor de suas crianças, adolescentes e jovens?

Mais do que pensar em rever imediatamente o Estatuto da Criança e do Adolescente, é importante puxar da memória coletiva as razões que levaram à sua criação e todas as expectativas e possibilidades geradas pela   inovadora lei, elaborada pela sociedade brasileira nos momentos iniciais de sua redemocratização. Vale lembrar que o ECA foi aprovado em 1990 como uma grande conquista de movimentos sociais e que só a partir de sua promulgação começaram a ser esboçadas políticas públicas voltadas para a criança e o adolescente como sujeitos em suas especificidades, potencialidades e necessidades. Políticas públicas que pretendiam deixar de ver e de tratar crianças e adolescentes, sobretudo pobres, como “coitadinhos” ou como “ameaças à sociedade.” Deixou-se de lado a radicalidade dos extremos expressos pelos termos acima para tratá-los simplesmente como sujeitos de direitos.

Se a história da criança e do adolescente no Brasil foi redimensionada com a mobilização da sociedade civil pela aprovação do ECA, isso não significou mudá-la de imediato, uma vez que a mudança na forma como uma sociedade se relaciona com suas crianças e adolescentes não depende única e exclusivamente da promulgação de uma lei. A forma de se relacionar com sujeitos determinados de uma sociedade só muda a partir de mudanças de valores, de amadurecimento de princípios, de transformações profundas no modo de enxergar o “outro” que é diverso do “eu”. Um dos principais avanços do ECA foi a utilização da Doutrina de Proteção Integral. Isso implica na articulação das políticas públicas para a garantia de direitos plenos a crianças e adolescentes.  Essas políticas, entretanto, continuam engessadas em suas setorialidades e continuam a impedir as crianças e adolescentes de constituir-se efetivamente como sujeitos em nossa sociedade.

O olhar sobre a atual situação de implementação do ECA – incompleta, desarticulada, fragmentada – nos leva a duas ponderações. A primeira diz respeito ao clamor pela mudança em uma lei que não foi cumprida integralmente. E a segunda diz respeito à responsabilidade da sociedade e do Estado para com crianças e adolescentes. Será que é suficiente demandarmos mudanças na lei ao Estado sem nos perguntarmos, enquanto sociedade, pelo papel que estamos cumprindo junto às crianças, aos adolescentes e aos jovens? Sem nos perguntarmos que sociedade é esta que apresentamos a eles que gera tanta violência? Como nos posicionaremos perante o Estado: exigiremos tão somente a redução da maioridade penal ou exigiremos o cumprimento da Doutrina de Proteção Integral?

Mais do que discutir a modernidade e os avanços da lei, precisa-se discutir a capacidade das ações previstas em produzir resultados positivos no que diz respeito à (re)socialização de adolescentes infratores e as condições dadas a adolescentes para que não cometam atos infracionais ou, ainda, que adolescentes infratores não “progridam” em seus delitos ou tornem a cometê-los. As ações previstas no ECA têm como objetivos principais a atenção integral às necessidades relativas ao desenvolvimento pleno de crianças e adolescentes. Esta atenção integral passa pela garantia irrestrita a todos os seus direitos.

Considerando que, ainda que o sistema de proteção integral funcione plenamente, algo “falhe” na trajetória de algum adolescente e este venha a cometer algum ato infracional, o ECA prevê uma série de medidas socioeducativas, restritivas de direitos, capazes de promover sua (re)socialização. Estas medidas vão desde a advertência (para delitos considerados leves) até a internação (para os delitos considerados graves). Há uma escala de medidas que acompanha a elevação da gravidade dos atos infracionais cometidos: Advertência, Obrigação de Reparar o Dano, Prestação de Serviços à Comunidade, Liberdade Assistida, Semi-Liberdade e Internação, além da Internação Provisória que é mecanismo de contenção para adolescentes a quem se atribui autoria de atos infracionais graves enquanto aguardam julgamento. No caso de adolescentes, o ECA estabelece que todo o processo, até a realização do julgamento e definição da medida socioeducativa, deve ocorrer em, no máximo, 45 dias.

O sistema socioeducativo, destinado a adolescentes infratores, considera que, por estar em processo de desenvolvimento, o adolescente deve passar por um processo socioeducativo – (re)educar-se, através da reordenação de suas rotinas, da retomada ou construção de laços sociais positivos e do corte de laços negativos, da convivência saudável com outras pessoas (agentes educadores), entre outras medidas – que o habilite a retomar o convívio social.

Essas regras especiais foram estabelecidas por crianças e adolescentes serem sujeitos em condições especiais de desenvolvimento, que ainda encontram-se em processo de formação. O estabelecimento da idade de 18 anos segue, mais do que critérios biológicos ou psicológicos, critérios políticos de definição. Considera-se que a idade de 18 anos seja a idade em que, tendo uma trajetória regular e de qualidade na educação, o adolescente tenha completado o ensino médio e esteja apto a se inserir no ensino superior ou no mercado de trabalho, tendo obtido a qualificação mínima e obrigatória para isso. Desta forma, somente a partir desta idade ele teria completado seu processo básico de socialização que ocorre via convívio familiar e participação na vida escolar. Ocorre, entretanto, uma distância enorme entre o que se considera ideal e o que é a realidade da imensa maioria dos adolescentes pobres neste país. As trajetórias escolares são irregulares, descontinuadas devido à necessidade de inserção precoce no mercado de trabalho, a escola não atende às demandas modernas das várias identidades e culturas juvenis, a má qualidade do ensino e a oferta insuficiente de vagas também afastam adolescentes e jovens de uma trajetória escolar que poderia ser chamada de ideal e que auxiliaria na conclusão de um processo de desenvolvimento pleno. Além disso, a inserção precoce e pouco qualificada no mercado de trabalho coloca adolescentes e jovens em situações de trabalho precário e, por definição , explorado.

A relação de uma criança ou adolescente com o tempo é muito distinta daquela estabelecida por um adulto. De acordo com o psicólogo italiano Alberto Melucci (1997) a adolescência é a fase da vida em que se começa a perceber o tempo como uma dimensão significativa e contraditória da identidade. O tempo constitui-se em horizonte onde o indivíduo ordena escolhas e comportamentos, construindo um complexo de pontos de referências para suas ações. “A maneira como a experiência do tempo é vivenciada vai depender de fatores cognitivos, emocionais e motivacionais os quais governam o modo como o indivíduo organiza o seu ‘estar na terra’” (pp. 8). Na medida em que as biografias estão cada vez menos previsíveis e os projetos de vida dependem cada vez mais de escolhas individuais, a experiência do tempo na adolescência torna-se mais importante e mais conflituosa. Um dos grandes conflitos vividos por adolescentes e jovens, especialmente os das classes populares, é a percepção de que o futuro reserva inúmeras possibilidades de experiências e realizações ao mesmo tempo em que se deparam com barreiras e restrições, muitas vezes intransponíveis, à experimentação destas possibilidades.

Estudo de 2003 do IPEA (2) (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas) aponta que uma das grandes fragilidades do sistema socioeducativo brasileiro é a pouca abrangência ou mesmo inexistência das medidas socioeducativas em meio aberto e a incipiente prática de descentralização nos municípios. No Rio de Janeiro, por exemplo, todas as medidas de internação são cumpridas na região metropolitana (3) . Soma-se a isso a precária oferta de Prestação de Serviços à Comunidade e Liberdade Assistida nos municípios do estado. Esta situação faz com que o direito do adolescente ao cumprimento de uma medida socioeducativa equivalente ao ato infracional cometido esteja em risco. Ocorre que, um adolescente que comete um ato infracional pouco grave acaba por não cumprir medidas devido à não oferta das medidas em meio aberto – adequadas à situação delituosa leve – ou é enviado a cumprir medida em regime fechado, absolutamente incompatível com sua conduta. Qualquer das duas situações implica em violação de seu direito: na primeira ele perde a chance de cumprir a medida adequada ao ato cometido e de ter o devido acompanhamento e auxílio para que não ocorra reincidência; na segunda, ele tem a clara percepção de que ocorreu uma injustiça recebendo uma medida desproporcional ao ato cometido. A sensação de injustiça normalmente faz com que o sujeito se distancie das razões que o levaram a receber uma medida restritiva de direitos e deixe de refletir e analisar as trajetórias de vida que o levaram a cometer o ato infracional. Desta forma, a aplicação de medidas inadequadas tanto viola um direito que deve ser garantido a adolescentes como produz efeito contrário ao que deveria produzir.

Além da pouca abrangência do sistema socioeducativo brasileiro, a maioria das unidades de internação ainda funciona conforme o modelo ultrapassado que se fundamenta no Código de Menores estabelecido pela antiga FUNABEM. Tal modelo se apresenta tanto em relação à estrutura arquitetônica, quanto na sua dinâmica de atendimento e nas concepções que ainda permeiam as práticas de agentes/educadores, equipes técnicas e direções de unidades. Concepções e práticas exclusivamente punitivas ainda imperam em inúmeras unidades. Quando o ECA foi promulgado, o sistema foi descentralizado e os estados receberam não só os prédios, equipamentos e recursos, mas tiveram que manter também muitos de seus funcionários e, com eles, a herança de uma cultura institucional de práticas punitivas completamente inadequadas ao sistema que se pretendia inovador. Algumas experiências, infelizmente ainda isoladas, de implementação das medidas de internação em unidades pequenas, para no máximo 40 adolescentes, com infraestrutura adequada, equipes atuando conforme os princípios e diretrizes do ECA já demonstram o quanto o Estatuto pode ser eficaz na ressocialização de adolescentes infratores e, portanto, na diminuição da criminalidade

É ainda muito difícil obter dados sobre as medidas socioeducativas e sobre os atos infracionais cometidos por adolescentes. Esses adolescentes tornam-se invisíveis após a entrada no sistema. Ganham a esfera pública apenas os casos excepcionais, relatados, na maioria das vezes, de maneira sensacionalista e criminalizadora pela imprensa, e que se tornam exemplos daquilo que a opinião pública passa a acreditar que seja a regra, quando, na verdade são as exceções. Exceções não apenas em relação aos tipos de delitos mais comumente praticados por adolescentes (29,5% roubo, 18,6% homicídio, 14,8% furto e 8,6% tráfico – IPEA, 2003) mas também em relação à população total de adolescentes e em relação aos crimes cometidos por adultos

Segundo o estudo do IPEA acima mencionado, na medida em que as unidades que ainda funcionam no modelo de reclusão “menorista” e deixam de estabelecer parcerias com a rede pública e ofertas privadas de serviços, de encaminhar os adolescentes para atendimentos e atividades fora das unidades, os custos de manutenção destas unidades tornam-se extremamente elevados em relação aos benefícios produzidos. O regime de internação é a medida socioeducativa mais cara dentre o rol das medidas estabelecidas pelo Estatuto. No entanto, pouco se investe nas medidas em meio aberto que são as de menor custo e mais eficazes na contenção das condutas delituosas na medida em que são capazes de alcançar o adolescente quando ele comete um ato infracional de pouca gravidade, atuando para que os atos não tornem a ocorrer nem que aumente sua gravidade. Desta forma, investir maciçamente nas medidas em meio aberto representa a forma mais eficaz de conter o aumento da criminalidade, dando aos adolescentes respostas adequadas a atos infracionais menos graves (cerca de 90% de todos os atos infracionais imputados a adolescentes no Brasil são considerados pouco graves, ou seja, são delitos contra o patrimônio sem ofensa à pessoa). De acordo com dados da Secretaria Especial de Direitos Humanos – SEDH (4), o Rio de Janeiro apresentou, em 2006, apenas 461 adolescentes cumprindo medidas de meio aberto, sendo que desses apenas 35 prestavam serviços à comunidade. Este dado deu ao município destaque negativo por se tratar da segunda cidade do país.

Os investimentos nas unidades de internação devem ser mantidos e ampliados, mas apenas na medida da adequação dos espaços aos pressupostos do ECA e não para ampliar oferta de vagas ampliando a  internação irregular de adolescentes que deveriam cumprir medidas em meio aberto.

Uma vez que a redução da maioridade penal implica na inserção dos jovens de 16 a 18 anos no sistema prisional, sistema este que produz mais reincidências do que o sistema socioeducativo (apesar de todas as suas precariedades), tal decisão levaria a uma piora na situação de violência no Brasil, na medida em que provavelmente veríamos aumentar o número de jovens reincidentes no crime.

Com essas indagações, voltamos ao tema das escolhas. Podemos, enquanto sociedade, escolher caminhos mais curtos, imediatos, que não nos darão garantia de chegar a lugar algum, ou podemos escolher a garantia do desenvolvimento integral de nossas crianças e adolescentes e a garantia de uma formação efetiva para nossos jovens. Podemos escolher o tipo de herança que queremos deixar para as novas gerações: uma sociedade cada vez mais dividida, apartada, em que os indivíduos são precocemente responsabilizados pelas conseqüências das desigualdades na garantia dos direitos à educação, cultura, saúde, esporte, lazer, assistência social, trabalho, etc. ou uma sociedade que toma as suas crianças, adolescentes e jovens para si, se responsabiliza por eles e se compromete com as garantias de seus direitos?

Tem havido, em meio a todo este debate sobre a redução da maioridade penal, uma tentativa de não caracterizá-lo como um debate político. O receio é evidente quando os próprios organizadores de  manifestações pelo fim da violência afirmam que essas não têm caráter político, mas somente de busca de justiça e paz social. Essa desvinculação do “político” pode estar relacionada à decepção da sociedade com os seus representantes no Executivo e no Legislativo após sucessivos escândalos de corrupção. Mas não podemos nos esquecer que escolher é um ato político. Podemos escolher a forma pela qual  vamos nos relacionar com nossas crianças, adolescentes e jovens e as nossas escolhas têm conseqüência, geram novas ações e desenham perspectivas diversas de futuro e de humanidade. São políticas! Escolher, nesse caso, implica na escolha da sociedade que queremos construir e compartilhar com as novas gerações.   

(1) Em 1992, Babilônia teve seus poemas publicados após uma visita de Betinho (Herbert de Souza) ao Instituto Padre Severino, onde ele era um dos detentos. Betinho foi participar de um debate a pedido do juiz Siro Darlan e contou à época que em meio a todos aqueles meninos, quando saía do auditório onde ocorrera o debate, aquele menino veio correndo e lhe entregou os seus poemas, lhe pedindo que os lesse. Ele os leu, conversou com o juiz, e o livro de Babilônia foi publicado.

(2) IPEA. Texto 979 – “Adolescentes em Conflito com a lei. Situação de atendimento institucional no Brasil, 2003. disponível em http://www.ipea.gov.br/pub/td/2003/td_0979.pdf

(3) Há apenas uma unidade de internação no município de Belford Roxo, todas as demais se concentram no município do Rio de Janeiro.

(4) Levantamento Nacional do Atendimento Socioeducativo ao Adolescente em Conflito com a Lei, ago/2006.

*Elaine Monteiro  é Professora da UFF e Doutora em serviço Social pela UFRJ
*Ana Karina Brenner é Psicóloga e Doutoranda em Educação pela USP

Algumas imagens foram retiradas de: AdPeople Comunicações

Projeto Guia Cívico do Pan - um projeto de inclusão ou exclusão social?

Artigo demonstra a insatisfação e indignação de Fransérgio Goulart, membro do Fórum de Juventudes RJ, com relação a mais um projeto voltado para a juventude, em especial a juventude moradora de comunidades populares do município do Rio de Janeiro: o Guia Cívico do Pan

 Antes de relatar a minha insatisfação e indignação tentarei, brevemente,  contextualizar este projeto.

O projeto Guia Cívico do Pan é a coluna de um projeto maior denominado de “Segurança cidadã” que tem como entidade executora a Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP) do Ministério da Justiça. O projeto teria como objetivos principais: a incorporação de novos parceiros a fim de garantir efetividade ao processo de articulação de todas as forças da sociedade e formas de governo no combate à criminalidade, além de planejar e controlar as intervenções em cada região, quebrando o isolamento entre a área de segurança e as outras instituições do Estado, as entidades da sociedade civil e os movimentos sociais.

O Guia cívico hoje estende–se para 116 comunidades do município e conta com a participação de cerca de 4.500 jovens, entre 14 e 16 anos de idade, que recebem uma bolsa no valor de R$175,00/mês e que tiveram aulas sobre os mais diversos temas (cidadania, espanhol, inglês...). Os guias conheceram os espaços públicos da cidade, os pontos turísticos e os equipamentos que serão utilizados durante os Jogos Pan–Americanos para poderem exercer a função de auxiliar na organização e fiscalização do evento.

A indignação começa pela forma como todo este processo foi sendo construído. Os jovens não foram chamados para que ouvissem toda a proposta e, com isto, pudessem construir coletivamente o processo. Mais uma vez a “política bolo pronto” foi o que acabou reinando: o projeto veio pronto e ponto, a tal participação juvenil nunca existiu.

Esta iniciativa governamental teve como ponto de partida a interlocução com líderes comunitários.Visualizamos a juventude tutelada, neste caso, os adultos (líderes  comunitários) falavam pelos jovens. No entanto, mesmo sem participação direta , os/as jovens moradoras de comunidades acreditavam e  acreditam  na figura da liderança ou gestor comunitário para fazer valer suas vozes no projeto.

 No início desta articulação, os/as líderes comunitários/as fizeram um curso de Gerenciamento e mediação de conflitos, com instrutores que, segundo relatos das próprias, não conheciam nada da violência  nas comunidades e solicitaram que se elas soubessem quem era o chefe do tráfico dentro de sua comunidade avisassem à Senasp. Embora ressaltassem que continuariam ajudando e colaborando no que fosse possível, as lideranças tiveram que informar aos instrutores o que eles “não sabiam”: a denúncia, neste caso, representaria a morte destas e de suas famílias.

Diante disse, vale ressaltar dois pontos : Para estes atores -, que nunca ou raramente são reconhecidos pelo poder público e que, na maioria das vezes, tiram dinheiro de seu próprio bolso para realizar trabalhos comunitários com objetivo da melhoria da qualidade de vida (pois quem tem que fazer não faz nada ou quase nada em relação às comunidades populares)- receber uma bolsa entorno de R$250 ou R$350 pelo trabalho de coordenação local era algo importante para a sustentabilidade dos seus trabalhos comunitários. E ainda: as lideranças relatam que são “conviventes” com o tráfico e não “coniventes”, mas estas questões não devem ser muito faladas nas comunidades.

Quando começaram a participar deste projeto, algumas lideranças começaram a ficar muito expostas em relação às relações existentes entre os diversos atores de suas comunidades - fato este que nunca mereceu uma discussão maior dentro do projeto. Será que o poder público soube e monitorou este fato?

As lideranças apontaram que os jovens participantes e suas famílias foram cadastrados no projeto e na Senasp. Seria isto um retorno do monitoramento dos passos das pessoas, desta vez não dos comunistas, mas dos moradores de comunidades populares?

Vale neste momento uma contextualização para uma melhor compreensão dos fatos descritos acima da minha relação com as lideranças comunitárias .
Por ser um militante de movimentos  sociais e populares,tenho um contato muito próximo com algumas lideranças comunitárias, pois as mesmas participam destes espaços e  nestes acabam fazendo uma verdadeira terapia  dos problemas enfrentados em projetos e suas relações com o poder público ,principalmente.
 
Por que todas estas indagações? Pelo simples fato de que mais uma vez o desconhecimento do poder público e todo estereótipo construído sobre as comunidades trazem  a impressão de que o canhão  da Eco-921 não vai existir, mas existirá uma outra forma de coerção tão violenta quanto ele apontado para a comunidade durante os Jogos Pan-americanos. 

No evento de certificação dos jovens do Projeto Guia Cívico, que contou com participação do  presidente da república, foram noticiados vários problemas, entre eles as brigas entre jovens de comunidades por questões de facções do tráfico. A questão é que todo este fato poderia ser evitado ,pois desde o início do projeto as lideranças disseram que seria impossível colocar dentro do Maracanã jovens de comunidades diferentes, juntos em um mesmo evento, ou seja, esta atividade foi um ato de  irresponsabilidade do poder público para a sociedade, em especial as comunidades populares envolvidas neste processo.

Concluo pedindo uma reflexão de todos os cariocas, mas, em especial, de quem executa as políticas e projetos governamentais. Se este projeto ou qualquer outra ação governamental tivesse construído de fato um lugar para comunidades e, principalmente, que os jovens colaborassem, poderíamos ter uma história diferente da que soubemos ou presenciamos. Acho que esqueceram de avisar ao poder público que hoje, queira ou não, temos uma limitação imposta pelo tráfico que é algo real.

Aqui, no Rio de Janeiro, no Fórum de Juventudes temos tido todo o cuidado com esta questão da geografia do tráfico, por isto termos acreditado muito nos Encontros de Galeras, um evento realizado em alguma comunidade popular, no qual os jovens trazem o que querem discutir e como querem fazer isto. A partir disto, estamos vagarosamente fazendo uma discussão da limitação desta circulação e, hoje, alguns jovens que diziam não poder ir a algum lugar já começam a circular por outras comunidades. Através  do encontro, algumas questões estão sendo apontadas pelos próprios jovens como impedimento da circulação destes pela cidade,que são: a defesa do território ,a história e identidade construídas dentro de suas comunidades,a apropriação de termos utilizados pelo próprio tráfico(a questão Cultural).O que estamos fazendo enquanto Fórum para minorar esta questão?Uma é a própria proposta da  atividade e toda sua dinâmica,como já descrevemos anteriormente,  a outra é partir da cultura local e seus valores,principalmente os relacionados a questões da história e identidade destes jovens e suas comunidades.

Termino com mais um questionamento: por que o guia cívico – um projeto para formação de “guias de turismo”,esta é realidade, ser um projeto implementado pela secretaria nacional de segurança pública?

(1) - ECO 92,evento acontecido na cidade do Rio de Janeiro no ano de 1992 para a  discussão da questão ambiental a nível mundial.Neste evento segundo notícias e estatísticas apresentadas pela grande mídia houve uma baixa do n° de  delitos e assassinatos na cidade do Rio de Janeiro .Diante deste fato uma foto marcou os cidadãos cariocas,em especial aos cidadãos moradores de comunidades populares,a foto que correu o mundo de um tanque do exército apontado para uma comunidade popular,pois esta foi a política de enfrentamento da criminalidade.

*Fransergio Goulart é historiador e membro do Fórum de Juventudes do estado do RJ

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