Rapazes que espancaram doméstica, no Rio, são obedientes às leis ditadas por uma sociedade que endeusa a falta de limites
Antes de mais nada, como já se notou, existe o viés social.
De um lado existem “jovens” que ocasionalmente cometem atos delinqüentes. É o caso de Júlio, Leonardo e seus colegas, espancadores da Barra. Inspiram-nos cuidado semelhante ao que dispensamos aos nossos filhos. Tentamos compreender: o que aconteceu? (Psicólogos são chamados a justificar.)
E existem os outros, os que já são bandidos antes de chegar (quando chegam) diante do juiz.
A execução sumária confirma, a posteriori, o veredicto que a imprensa divulga sem questionar: A polícia matou 18 "suspeitos” em confrontos com supostos “bandidos”... Ninguém persegue o resultado das investigações sobre as tantas chacinas que caem no esquecimento.
O que distingue uns dos outros é o número do CEP: na Barra, nos Jardins, no Plano Piloto vivem os jovens.
Os outros, adultos anônimos desde os 14, vêm de bairros que não figuram no mapa: "Periferia é periferia em qualquer lugar".
Qualquer delegado de bom senso percebe na hora a diferença. Se a cor da pele confirmar o veredicto, melhor. A sociedade, representada pelo Dr. Ludovico Ramalho, pai de Rubens Arruda, se tranqüiliza: as travessuras dos “jovens”, adultos infantilizados das classes A e B, não ameaçam a segurança da gente de bem.
Espancaram uma doméstica, mas pensavam que fosse prostituta. Ah, bom.
Nos bairros onde vivem os jovens não há solidariedade com os chacinados das favelas, com os executados a esmo em Queimados, com os meninos abatidos na praça do Jaraguá, em SP. Os movimentos “pela paz” nunca se manifestam por eles.
Ninguém de fora
Mas, quanto mais o Brasil maltrata seus pobres, quanto mais a polícia sai impune dos excessos cometidos contra os anônimos cujas famílias não protestam por temor de represálias, quanto mais o país confia na lógica do “nós cá, eles lá”, mais o gozo da violência se dissemina entre todas as classes sociais.
Para pacificar o país, seria preciso redesenhar o mapa do respeito e da civilidade de modo a não deixar ninguém de fora.
Uma sociedade que assiste sem se chocar, ou sem se mobilizar, ao extermínio dos pobres — bandidos ou não — está autorizando o uso da violência como modo de resolução de conflitos, à margem da lei.
Tomemos o ato de delinqüência cometido pelos meninos “de família” da Barra, no Rio. Que a culpa seja dos pais, vá lá. As declarações do pai de Rubens Arruda são reveladoras. Não que ele não transmita valores a seu filho.
Mas serão valores relacionados à vida pública? Não terá o Dr. Ludovico educado seu filho para “levar vantagem em tudo”? Esse pai não admite que o filho seja punido pelo crime que cometeu.
Há aqueles que não admitem que a escola reprove o jovem que tirou notas baixas, os que ameaçam o síndico do condomínio que mandou baixar o som depois das 22h etc.
Olham o mundo pela ótica dos direitos do consumidor: se eu pago, eu compro. Entendem seus direitos (mas nunca seus deveres) pela lógica da vida privada, como fizeram as elites portuguesas desde a colonização.
Quem disse que os jovens não lhes obedecem? Obedecem direitinho. Param em fila dupla, jogam lixo nas ruas, humilham os empregados — igualzinho a seus pais.
Vez por outra, quando os pais precisam impor alguma interdição, já não se sentem capazes. O que nos coloca a pergunta: que valores, que representações, no imaginário social, sustentam o exercício necessário da autoridade paterna? Em nome de que um pai ou uma mãe, hoje, se sentem autorizados a coibir ou mesmo punir seus filhos?
A autoridade não é um atributo individual das figuras paternas. A autoridade dos pais — e da escola, que também anda em apuros (quem viu “Pro Dia Nascer Feliz”, de João Jardim?) — deriva de uma lei simbólica que interdita os excessos de gozo.
Uma lei que deve valer para todos. O pai que “tem moral” com seus filhos é aquele que também se submete à mesma lei, traduzida em regras de civilidade, de respeito e da chamada boa educação.
Cliente especial
Mas em nome de que, no imaginário social, a lei simbólica se transmite? Já não falamos em “Deus, pátria e família”, significantes desmoralizados em nome dos quais muitos abusos foram cometidos, sobretudo no período de 1964 a 1980 [regime militar].
No lugar deles, no entanto, que outros valores ligados à vida pública foram inventados pela sociedade brasileira? Em nome de que um pai que diz “não pode” responde à inevitável pergunta: “Não posso por quê”?
Ocorre que a palavra de ordem que organiza nossa sociedade dita de consumo (onde todos são chamados, mas poucos os escolhidos) é: você pode. Você merece. Não há limites pra você, cliente especial.
Que o apelo ao narcisismo mais infantil vise a mobilizar apenas a vontade de comprar objetos não impede que narcisismo e infantilidade governem a atitude de cada um diante de seus semelhantes — principalmente quando o tal semelhante faz obstáculo ao imperativo do gozo.
O que queriam os rapazes que espancaram Sirlei Dias de Carvalho Pinto? Um celular usado? Um trocado para comprar mais um papel? Descontar a insegurança sexual? “No limits”, diz um anúncio de tênis. Ou de cigarro, tanto faz. E os meninos obedecem. No fundo, são rapazes muito obedientes. Se a ordem é passar dos limites, pode contar com eles.
(*) Psicanalista, autora de "Ressentimento" (Casa do Psicólogo). Colaborou Paulo Fernando Pereira de Souza.
Publicado originalmente no caderno Mais! da Folha de S.Paulo, de 1º/07/07.
Durante o II Fórum de Estudantes de Origem Popular (Feop), no Rio de Janeiro, foram lançados argumentos favoráveis ao acesso de pessoas de classes menos favorecidas e grupos étnico-raciais às universidades públicas. André Brandão, pesquisador do Laboratório de Políticas Públicas da Uerj, chama à atenção: “a cota é importante para pretos e pardos, é importante para a universidade e para o país”. Saiba porquê
Nos dias 25 e 26 de junho, foi realizado o II Fórum de Estudantes de Origem Popular (Feop) na Unirio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro) – Campus Urca. Atuando como um movimento social, o Feop está empenhado na defesa de uma universidade pública de qualidade e na elaboração e no acompanhamento de políticas públicas que possibilitem a inserção e a permanência de pessoas de classes menos favorecidas e de grupos étnico-raciais nesses espaços acadêmicos. Um bom exemplo é a discussão sobre a política de cotas que ainda não atende a todas as universidades públicas.
O Feop foi idealizado pelo presidente do Observatório de Favelas, Jaílson de Souza, como um dos braços do programa Conexões de Saberes: diálogos entre universidade e comunidades populares, parceria entre o MEC/Secad (Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade) e o Observatório de Favelas. O Programa é desenvolvido em 33 instituições federais de ensino do Brasil. A proposta é que, em cada uma das regiões onde ocorre, favoreça a consolidação por estudantes de um fórum estadual, fortalecendo a idéia do Fórum Nacional de Estudantes de Origem Popular.
Durante o II Feop, foram apresentados dados e opiniões com relação à situação das ações afirmativas e das cotas em nosso país. André Brandão, professor da UFF (Universidade Federal Fluminense) e pesquisador do Laboratório de Políticas Públicas da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), apresentou resultados da última pesquisa Quatro anos de políticas de cotas: a opinião dos docentes, realizada pelo laboratório em quatro universidades públicas, pioneiras na adoção de cotas no Brasil. Foram ouvidos(as) 557 professores(as) da Uerj, Ufal (Universidade federal de Alagoas), UnB (Universidade de Brasília) e Uneb (Universidade do Estado da Bahia). Além disso, André Brandão destacou a sua mais recente participação em um trabalho de pesquisa, que resultou na publicação do livro Cotas Raciais no Brasil.
O professor argumenta: “É fundamental a diversidade racial nas universidades, porque você melhora a qualidade da discussão. Sujeitos com contextos de vida e históricos diferentes compartilhando a sala de aula geram um debate maior, um conhecimento maior. E isso é importante para a sociedade. Você passa a ter um estoque de profissionais com todos os perfis raciais assumindo cargos, seja no setor público ou no setor privado”.
Dessa forma, André Brandão defende que o sistema de cotas não pode ser visto somente como algo positivo para negros(as): “No Brasil, se generalizou a idéia de que cota é algo positivo para pretos e pardos. O discurso deveria ter sido outro: a cota é importante para pretos e pardos, é importante para a universidade e para o país. Afinal, quando você amplia a diversidade racial nas universidades, você amplia a qualidade da educação”.
O professor também critica o tratamento das cotas como favorecimento: “O acesso diferenciado é algo que a pessoa não deve se envergonhar, pelo contrário, é uma possibilidade de crescimento para o país”.
Além de André Brandão, estavam presentes Regina Guimarães, coordenadora da região Sudeste do Fórum de Pró-reitores de Extensão, e Fernando Pinheiro, representante do Pré-vestibular para Negros e Carentes (PVNC) e pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Reflexão e Memória Afro-descendente (Nirema), que fez uma defesa das cotas apresentando conceitos históricos embasados, principalmente, em teorias e práticas militantes.
Os três defenderam que quaisquer ações afirmativas nas universidades brasileiras devem ser encaradas como um avanço no quadro político educacional do Brasil. Mesmo com as dificuldades encontradas durante o processo, pode-se perceber que é possível pensar um modelo de democracia com base na reconfiguração do perfil das pessoas que se inserem na universidade.
“Ação afirmativa é necessária para que se estabeleça um novo perfil, não só de universitários, mas de pessoas que vão pensar soluções para o Brasil. Universitários de espaços populares, futuramente, estarão pensando soluções inovadoras, o que muitas vezes pode causar tensão e conflito, mas isso é inevitável. A igualdade é cercada de tensão e conflitos, afinal, a igualdade só pode ser desejada se a gente não concorda com o que existe”, analisa Fernando Pinheiro.
Breve histórico de luta
Sabemos que as desigualdades raciais, expressas, entre outros fatores, nas estatísticas de acesso às universidades, não serão resolvidas apenas com cotas. Porém, é necessário começar por algum lugar. Do contrário, todo o contexto histórico de lutas e conquistas seria deixado de lado.
Na década de 1970, inicia-se forte pressão dos movimentos negros para a implementação de políticas que combatessem atos discriminatórios. Algumas pequenas ações foram postas em prática. Era o começo da implementação de um novo modelo para pensar politicamente as questões da segregação racial, construídas desde a criação da identidade nacional brasileira.
Desde 2001, o Brasil vem fortalecendo, a cada dia, a discussão relacionada à temática das políticas de ações afirmativas. Nesse ano, o então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, iniciou uma série de ações voltadas para a população negra brasileira, pressionado, principalmente, pelos movimentos negros. As cotas vão além do ingresso nas universidades públicas, são estímulo para o debate sobre as questões raciais nas salas de aula e em todo o Brasil. Debate que chegou com um século de atraso.
Publicado em 28/6/2007, no endereço http://www.ibase.br/modules.php?name=Conteudo&pid=1856 (PORTAL IBASE)
Jornal O Estado de São Paulo - Domingo, 1 julho de 2007/Metrópole
Crimes não têm relação simples de causa e efeito, diz psicanalista
No curto período de uma semana, o País viu um garçom ser assassinado em São Paulo por um grupo de oito amigos dispostos a brigar por qualquer motivo, uma empregada doméstica ser atacada no Rio por cinco jovens que imaginavam bater em uma prostituta, uma professora de Suzano apanhar de um estudante que se sentiu rejeitado, um aposentado morrer na Bahia após ser espancado por um homem que furou a fila de um banco. Quatro crimes, uma pergunta: por quê?
Os casos chamam a atenção tanto pela repercussão e indignação que criaram quanto pela falta de explicações. Os criminosos, na maioria jovens, poderiam estar em qualquer outra seção dos jornais. Não nas páginas policiais. Perguntas sobre o motivo desses crimes não faltam. Drogas? Falta de controle? Desleixo da família? Escola ausente? O que fazer diante de tanta violência gratuita?
“Precisamos de uma causa, de uma resposta ao porquê da violência. Só assim a gente consegue diminuir a nossa angústia social”, diz o psicanalista Jorge Forbes, membro da Escola Européia de Psicanálise. “O problema é que, nesses roteiros, a explicação foge ao que a gente está acostumado até hoje. A relação causa e efeito, simples e rápida, não existe mais.” Apesar disso, segundo especialistas ouvidos pelo Estado, a sociedade ainda exige soluções rápidas, palpáveis. A seguir, alguns argumentos para iniciar um debate que hoje não existe:
A violência, a corrupção, a impunidade levam à sensação do vale-tudo.
“Permitimos que entrem no Morro do Alemão e matem 19 sem saber quem eram essas vítimas. Como passar ética às novas gerações?”, indaga a socióloga Miriam Abramovay, membro do Conselho Nacional da Juventude. “É uma sociedade que dá muitos maus exemplos.” O mundo contemporâneo é violento e não permite o tempo da elaboração, acrescenta a psicanalista Cleusa Pavan, do Instituto Sedes Sapientiae. “Muitos não conseguem escapar ao imperativo do sucesso, do faça-se não importa como, do consumismo generalizado”, diz ela. A amarração social ocorre pela violência nas suas várias formas e atinge a todos. Nessa lógica e com uma sociedade onde violência, corrupção e impunidade são moeda corrente, ocorre a institucionalização da violação dos direitos humanos. “O outro se torna objeto, não é preciso interagir com ele.”
Consumir álcool e drogas justifica os atos brutais, como afirmou o pai de um dos agressores da empregada doméstica.
Não há comprovação científica que relacione consumo de álcool, cigarro ou drogas ilícitas com atos violentos. Nenhum deles é uma fábrica artificial da violência, assegura Dartiu Xavier da Silveira, professor do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo. Ele lembra que é na juventude que muitas pessoas têm seus primeiros contatos com o álcool e as drogas e a maioria não sai por aí batendo nos outros ou matando.
Quando se vêem com o problema do alcoolismo ou dependência, os pais inicialmente negam que haja um problema dentro de casa. Depois ou agem complacentemente ou passam a controlar demais a vida do jovem. E muitos atribuem ao uso de psicotrópicos a alteração do comportamento dos filhos, mas a relação é a inversa. “Os que se tornam dependentes é porque têm problemas familiares”, afirma Silveira. O que não se pode confundir é consumo com tráfico de drogas, este marcado por ações criminosas e violentas.
A sociedade está mais violenta do que no passado.
O único consenso é que as pessoas estão mais individualistas e consumistas. “O que se vê são pessoas destituídas de espírito público”, diz o antropólogo da Universidade Federal do Rio Gilberto Velho, que há 30 anos trabalha com adolescentes. “Não há mais barreira moral, e sim desprezo, competição e indiferença um pelo outro. Não há espaço para um diálogo mais amplo entre as pessoas.”
Para o psiquiatra forense Guido Palomba, a falta de respeito ao próximo se revela nos menores atos do dia-a-dia. “De ultrapassar o farol vermelho a gritar com o outro motorista, ou mesmo chegar ao ponto de agredir alguém, é tudo uma questão de não respeitar o próximo”, afirma. “Isso cria uma cultura de indiferença, que no final das contas gera alguma forma de violência. E ninguém está sabendo lidar com isso.”
Pouquíssimos pais estão sabendo como educar os filhos de hoje.
Para o psicanalista Jorge Forbes, há um grande conflito de geração - os mais velhos simplesmente desconhecem os jovens de hoje, superinformados desde pequenos pela televisão e pela internet. “Os pais estão desarmados, porque os filhos parecem saber muito mais do que eles”, diz. “Os jovens tem informação de sobra. Mas não têm formação. Isso não quer dizer que seja ruim ou bom, é só diferente. Os adultos que não estão sabendo lidar com essa nova realidade. Eles precisam descobrir logo o que é música eletrônica, Second Life... Só assim para retomar o diálogo e diminuir a distância.”
Nas últimas décadas, é cada vez maior a tentativa de associar a juventude à violência, sobretudo em grupos fechados.
O jovem é e sempre foi gregário. Precisa conviver em turma. Por desconhecer a vida externa dos filhos e temendo que se tornem violentos, os pais acabam censurando, impondo controles. Em vez de diálogo, há proibição. “Os pais devem tentar entender o que é o grupo do filho, a sua simbologia. Todos os grupos estão na internet, é possível compreender seus sentidos”, sugere o educador Paulo Carrano, coordenador do Observatório Jovem, da Universidade Federal Fluminense. Daí, com informação, é hora de procurar uma linguagem comum. Abrir o diálogo e não recriminar um comportamento. “A sociedade se dá pela multiplicidade das tribos”, diz Jorge Forbes. “Evidente que os grupos têm influência no jovem. Mas os pais não querem se perguntar por que seus filhos resolveram entrar numa determinada tribo.”
Muitas famílias exigem que a escola sirva para educar seus filhos.
“A escola é um lugar fechado, que não aceita a participação dos pais, da sociedade nem dos alunos”, diz a socióloga Miriam Abramovay. “O jovem não vê a escola como o espaço dele. Por isso, há a pichação, a depredação, o roubo de computadores, a agressão.” Com isso, a juventude perde mais um espaço para o diálogo. “Frouxo ou rígido, esse modelo de escola não funciona nos dias de hoje”, diz o antropólogo Gilberto Velho. “É preciso não só transmitir informação, mas também passar valores. Só não dá para esperar que os educadores façam o trabalho sozinhos.”
Jovens pobres e ricos agem violentamente pelos mesmos motivos.
A juventude tem um leque de opções enorme e pela liberdade que conquistaram são responsáveis pelas escolhas. No passado, os pais participavam desse processo. Hoje, o jovem está só na hora de decidir pelo emprego, pela escola, pelo lazer, pelas amizades. Tem de caminhar numa estrada com várias bifurcações. Agressão gratuita, sim, pode ser um dos caminhos.
“Ricos passam a vida inteira num condomínio fechado e, no momento em que saem, estranham o diferente, são incapazes de reconhecer as diferenças”, diz o educador Paulo Carrano. No caso dos pobres, eles também vivem enclausurados, mas nos seus bairros sem serviços e onde as escolhas são limitadas. “Muitos crimes dos pobres são voltados pela sedução do consumo.” As ações violentas praticadas por jovens, independentemente da classe social, não têm uma explicação simples, como muitas vezes clama a sociedade, desesperada para ignorar o problema. “Esses atos são também apelos, um jovem gritando ‘Alguém cuide de mim, pelo amor de Deus’”, alerta a psicanalista Cleusa Pavan.
O Estado de S. Paulo (SP) – 25/06
Rose Nogueira: presidente do Conselho Estadual dos Direitos da Pessoa Humana Mediadora do debate entre estudantes e reitoria da USP diz que nenhum dos dois lados conduziu bem as negociações
Partiu dos alunos e não do governador José Serra ou da reitora Suely Vilela a iniciativa de abrir o diálogo para negociar o fim da ocupação da reitoria da USP. E por inexperiência deles é que a ocupação se arrastou por 50 dias, ao não saberem sair no momento certo e como vitoriosos
Quem faz essa análise é a jornalista Rose Nogueira, presidente do Conselho Estadual dos Direitos da Pessoa Humana. Presa e torturada na ditadura militar, por dar abrigo a Carlos Marighella e a frei Betto, Rose começou no dia 21 de maio a mediar o conflito a pedido dos alunos, a quem chama de “meninos”.
Paciente e bem-humorada, a jornalista chegou a se irritar com a série de idas e vindas até se chegar a um consenso entre os estudantes e vê positivamente os resultados da crise que ela ajudou a debelar.
“Estamos conhecendo uma juventude combativa e isso muda um país. Se tivessem saído no momento certo, iriam abalar as estruturas. Não abalam porque são meninos”, afirma.
Seu primeiro contato com os universitários foi quando acompanhou o encontro deles com o senador Eduardo Suplicy (PT-SP). Depois, por intermédio do advogado Idibal Pivetta, que fora chamado pelos universitários, foi convencida a atuar como mediadora.
A seguir trechos da entrevista ao Estado:
Como começou a negociação pelo fim da crise da USP?
Uns três ou quatro alunos sentaram comigo e disseram que queriam negociar com o governador e com a reitora. Com o governo discutiriam a questão dos decretos e se chegassem a um bom termo sairiam da reitoria. Não houve iniciativa do governo. Aí o José Serra mudou os decretos e os alunos não honraram o acordo. Na hora que um governador faz outro decreto dando aquilo que você está pedindo, é porque você tem força. Aí começaram a discutir picuinha com a reitora. Diziam que queriam mais.
Eles erraram?
A ocupação deveria ter acabado um dia depois que o Serra assinou o decreto declaratório. Se queriam ter vitória política, perderam a oportunidade.Quem teve a idéia do decreto declaratório?Foi o professor Fábio Konder Comparato que sugeriu, mas não com esse nome. Bastaria colocar uma linha a mais - “isso não vale para as universidades estaduais” - e assinar um decreto. Antes de publicar, o (secretário de Justiça, Luiz Antonio) Marrey, que sabe negociar e entende de política, me ligou e disse: ‘Avise aos meninos que o Serra vai assinar um decreto declaratório.’ Em primeiro lugar a maioria dos estudantes não acreditou ou não prestou atenção. Eles tinham essa coisa.
E por que a ocupação prosseguiu?
Eu disse a eles: isso aqui quer dizer ‘revogou’. Um aluno disse para nós que claro que esse povo sabe que o decreto já foi revogado, mas vai fazer de conta que não sabe. Eles tinham várias posições e vinham nos contar. Havia aqueles que queriam sair, mas diziam que não ganhavam (nas assembléias). Na segunda reunião com o Marrey, me deixaram quase louca. Me procuraram e disseram que faziam questão da presença da reitora. Chegamos lá, eles a viram e disseram que queriam negociar em separado, que com ela eram coisas da universidade. Fiquei muito brava. Para que eles queriam a reitora lá então?
Nas negociações, faltou pulso firme da reitora?
Ela não esperava. Eles me disseram que não foi só uma vez que tentaram marcar uma reunião e quando ela marcou não apareceu. Aí resolveram: vamos ocupar a reitoria. Numa das reuniões, ela me falou que não tinha mais o que falar, estava concordando com tudo. Estava muito brava, com toda razão, porque só soube dos condicionantes (para a desocupação) pelo blog deles.
Não havia líderes?
Eles tinham muita divergência. Me pareceu que, fora o pessoal de sindicato, que é mais politizado, os alunos estavam sem muita noção. Mas cresceram muito, de repente começaram a pensar no País, na sociedade, na universidade.
Dizem que a reitora não foi boa negociadora.
Não. Os meninos também não foram. Ela foi dura e eles, também.
Qual foi a razão da explosão?
Foi porque eles tentaram entregar as reivindicações para a reitora e ela não apareceu. Mas claro que havia coisa de partidos, em todo lugar tem.
Tudo era novo para os alunos?
Uns falavam em ‘instituinte’ (sic). Não tinham noção do que era um estatuto. Depois, exigiram que o resultado do Congresso fosse o novo Estatuto da USP. Ora, o resultado de um congresso não é um estatuto. Ou seja, não sabiam nem o que era congresso, nem estatuto. Até para negociar eles eram inexperientes...Percebi uma mudança enorme do primeiro para o segundo encontro com o Marrey. Na primeira reunião, um aluno chegou a falar para ele: eu quero falar com o Serra, não com você, quero falar com o governo. Aí o Marrey falou: ‘sou o representante do governador e do governo’. Perguntaram quem é que ia representar o governo. Eu disse que era o secretário de Justiça. Aí falaram: mas ele é da Justiça, como se fosse do Judiciário. Aí, falei: ‘Ah, menino, não enche o saco.’Daí os 50 dias...Foi uma loucura, fiquei doente. Dizia a eles: ou a comissão de negociação tem poder ou não tem. Ela vai lá, negocia e o máximo que pode trazer é uma proposta para a assembléia. ‘Vocês não sabem fazer’, disse para eles. Se ela (reitora) aceitou tudo isso, vão votar o quê? ‘Ah, não queremos que ela aceite’? Foi inexperiência total. No máximo era para levar a resposta para a assembléia. Se a outra parte aceitou tudo, vocês vão submeter a nova assembléia?
Como negociadora, o que sairá de positivo nesse episódio?
Estamos conhecendo uma juventude combativa e isso muda um país. Se tivessem saído no momento certo, iriam abalar as estruturas. Não abalam porque são meninos. Não acredito em novas ocupações, porque sabem que vai ser essa coisa sem saída. Agora perdeu o elemento surpresa, que foi fundamental.
Leia a íntegra da entrevista com Rose Nogueira
Partiu dos alunos e não do governador José Serra ou da reitora Suely Vilela a iniciativa de abrir o diálogo para negociar o fim da ocupação da Reitoria da USP. E por inexperiência deles é que a ocupação se arrastou por 50 dias, ao não saberem sair no momento certo e como vitoriosos. Quem faz essa análise é a jornalista Rose Nogueira, presidente do Conselho Estadual de Dos Direitos da Pessoa Humana. Presa e torturada na ditadura militar, por dar abrigo a Carlos Marighella e a frei Betto, Rose começou no dia 21 do mês passado a mediar o conflito a pedido dos alunos, a quem os chama de "meninos". Passou a admirá-los. Encontrou na Reitoria um movimento estudantil desorganizado, porém de perfil totalmente diferente do que já se viu no passado. Hoje são jovens filhos de trabalhadores, que precisam de ônibus e alimentação, moradia, salas de aulas com condições mínimas e professores para ensinar. E cobram por isso.
Paciente e bem-humorada, a jornalista chegou a se irritar com a série de idas e vindas necessárias para se chegar a um consenso entre os estudantes e vê positivamente os resultados da crise que ela ajudou a debelar. "Estamos conhecendo uma juventude combativa e isso muda um país. Se tivessem saído no momento certo, iriam abalar as estruturas. Não abalam porque são meninos", afirma.
Seu primeiro contato com os universitários foi quando acompanhou o encontro deles com o senador Eduardo Suplicy (PT-SP). Depois, por intermédio do advogado Idibal Pivetta, que fora chamado pelos universitários, foi convencida a atuar como mediadora do conflito. A seguir trechos da entrevista ao Estado:
Como começou a negociação pelo fim da crise da USP? Uns três ou quatro alunos sentaram comigo e disseram que queriam negociar com o governador e a reitora. Com o governo discutiriam a questão dos decretos e se chegasse a um bom termo sairiam da Reitoria. Não houve nenhuma iniciativa do governo. Aí o José Serra mudou os decretos e os alunos não honraram o acordo não saindo. Na hora que um governador faz outro decreto dando aquilo que está pedindo, é porque você tem força. Aí começaram a discutir picuinha com a reitora. Diziam que queriam mais.
Eles erraram?
A ocupação deveria ter acabado um dia depois que o Serra assinou o decreto declaratório. Se queriam ter vitória política, perderam a oportunidade. Eles teriam tido um avanço político, assumiriam a liderança do movimento estudantil. Não conseguiram compreender o significado de um governador voltar atrás. Tanto que quando os professores voltaram da greve, uma semana ou mais depois assinatura do declaratório, falaram como se tivessem sido vitória deles e não dos alunos. Não é. Toda negociação com o governo partiu dos alunos. Eu vi no jornal: ´Serra põe Marrey para negociar com estudantes´. Pô, quem escolheu o Marrey fui eu, porque o conheço, porque é mais fácil falar com ele.
Quem teve a idéia do decreto declaratório?
Foi o professor Fabio Konder Comparato, que sugeriu, mas não com esse nome. Bastaria colocar uma linha a mais, "isso não vale para as universidades estaduais", e assinar um decreto. Antes de publicar, o doutor (e secretário de Justiça, Luiz Antonio) Marrey, que sabe negociar e entende de política, me ligou e disse: ´Avise aos meninos que o Serra vai assinar um decreto declaratório.´ Em primeiro lugar a maioria dos estudantes não acreditou ou não prestou atenção. Eles tinham essa coisa.
E por que a ocupação prosseguiu? Eu disse a eles: isso aqui quer dizer "revogou". Um aluno disse para nós que claro que esse povo sabe que o decreto já foi revogado, mas vai fazer de conta que não sabe. Eles tinham várias posições e vinham nos contar. Havia aqueles que queriam sair, mas diziam que não ganhavam (nas assembléias). Eles queriam tudo... Na segunda reunião com o Marrey, me deixaram quase louca. Me procuraram e disseram que faziam questão da presença da reitora. Chegamos lá, eles a viram e disseram que queriam negociar em separado, que com ela eram coisas da universidade. Fiquei muito brava. Para que eles queriam a reitora lá então?
Nas negociações, faltou pulso firme da reitora?
Ela não esperava. Eles me disseram que não foi só uma vez que tentaram marcar uma reunião e quando ela marcou não apareceu. Aí resolveram: vamos ocupar a reitoria. Entraram e agora? Numa das reuniões, ela me falou que não tinha mais o que falar, estava concordando com tudo. A reitora estava muito brava, com toda razão, porque os condicionantes (para a desocupação) ela só tomou contato pelo blog deles.
Foi pega de surpresa, então?
O decreto (estadual) é deste ano, mas quem é que disse que essa situação da USP não vem de mais tempo. E ninguém percebeu isso, a reitoria, os professores. Agora foram obrigados a perceber. A juventude é igual a filho, ele tem que falar que cresceu, fazer as coisas, porque você não percebe. Mas notei uma coisa muito interessante na reitora que foi o carinho com os alunos. E também pela USP. Ao mesmo tempo que dizia que tinham de sair de lá, era muito maternal. E foi também super severa, no começo. É como a mãe que não sabe que o filho cresceu, de repente leva um susto.
Como definiria os estudantes da ocupação?
Os que estavam lá não eram os alunos clássicos que têm seus carrinhos. São filhos de trabalhadores. Tinha os da USP Leste. A questão das cotas também mudou. Havia muitos mulatos, negros, coisa que nunca tinha visto na USP. Em 1968 era repórter e cobria o movimento estudantil. Anos depois entrevistei um antropólogo e ele falou que aquele negócio de 68 na USP ninguém percebeu o outro lado. Era a primeira geração de filhos de imigrantes. Até então os alunos vinham de famílias quatrocentonas. Aconteceu a mesma coisa agora: filhos de negros e de trabalhadores, com outra história e outra memória histórica. Estar na USP e transformar e conquistar a sociedade tem um significado muito maior.
E por que não havia líderes?
Não havia lideranças, eles tinham muita divergência. Me pareceu que, fora o pessoal de sindicato que é mais politizado, os alunos estavam sem muita noção. Mas cresceram muito, de repente começaram a pensar no País, na sociedade, na universidade. De início, tinham uma percepção menor do movimento.
É um novo movimento estudantil?
Me chamou muita atenção que não havia lá dentro namorico. A juventude hoje tem muito mais liberdade, não precisa de namorar escondido. É uma nova geração. A anterior não precisava conquistar nada, é o cara de classe média alta, que estudou no Colégio Bandeirantes, Santa Cruz. Estes, não. Tinham libido solta para a política, para conquistar um espaço, pela moradia, pela falta de professores, contra a goteira no teto da História, pelo ônibus noturno, o café da manhã e as refeições no fim de semana. O aluno não tem como comer num restaurante fora no fim de semana e muito menos sem ônibus. Por quê? Porque senão só pode estudar na USP quem tem carro. Eles tiveram essa amplidão.
E exigiram isso da reitora?
Os apartamentos, segundo eles, estão apinhados de gente. Há quanto tempo não se constrói moradia? Não é legal alguém questionando isso? Em vez de questionar estacionamento, estão cobrando ônibus. Alguma vez alguém questionava isso? Não. O cara dava um jeito de carona, o pai se matava e dava um Fusquinha. Esses caras não têm como ir de carro num restaurante de Pinheiros. Necessitam do café da manhã, do almoço do bandeijão. Eles têm muita razão.
Mas houve muita dificuldade para negociar?
Dizem que a reitora não foi boa negociadora. Não. Os meninos também não foram. Ela foi dura e eles, também. O movimento estudantil teve um hiato muito grande. No mínimo 25 anos sem ter esse tipo de "problema", discussão. Foi a primeira juventude crítica. Pobre do país que não tem uma juventude crítica. Repare naqueles estudantes que corriam fazendo exercícios e passavam ao lado da reitoria, bem pertinho, sem ter nada a ver com isso.
E existiu, de fato, a participação de partidos politicos?
Eles não suportavam partidos. Claro que a gente sabia que nas assembléias esta ou aquela posição ganhava e era uma posição partidária. Perguntei umas 20 vezes, dizia que quem pensa assim é partido. Eles respondiam: não queremos o papo de partido. Qual foi a razão da explosão? Foi porque eles tentaram entregar as reivindicações para a reitora e ela não apareceu. Mas claro que havia coisa de partidos, em todo lugar tem. Essa ocupação ensinou a eles muita coisa na área de política. Na Secretaria de Justiça, eu falei para os alunos, na frente do secretário (Marrey): ´Ó, daqui a 15 anos vocês vão estar neste nosso lugar, nesta mesa. Vocês é quem vão ser o secretário, o promotor ou o defensor público, o militante de direitos humanos. Vocês vão dirigir a sociedade.´
Tudo era novo para os alunos?
Uns falavam em "instituinte" (sic). Não tinham noção do que era um estatuto. Num dia perguntei o que era "instituinte". Será que a gente é burra e não sabe, será que estamos mal informados. Ah, estatuinte. Aí brinquei que devia ser uma coisa de morder o outro, instinto. Instituir o instinto (risos). Teve até isso. Depois, exigiram que o resultado do Congresso fosse o novo Estatuto da USP. Ora, o resultado de um congresso não é um estatuto. Ou seja, não sabiam nem o que era congresso, nem estatuto.
Até para negociar eram inexperientes...
Percebi uma mudança enorme do primeiro para o segundo encontro com o Marrey. Na primeira reunião, um aluno chegou a falar para ele: eu quero falar com o Serra, não com você, quero falar com o governo. Aí o Marrey falou: sou o representante do governador e do governo. Perguntaram quem é que ia representar o governo. Eu disse que era o secretário de Justiça. Aí falaram: mas ele é da Justiça, como se fosse do Judiciário. Aí, falei: ´Ah, menino, não enche o saco.´
Daí os 50 dias...
Foi uma loucura, fiquei doente. Dizia a eles: ou a comissão de negociação tem poder ou não tem. Ela vai lá, negocia e o máximo que pode trazer é uma proposta para a assembléia. Vocês não sabem fazer, disse para eles. Se ela (reitora) aceitou tudo isso, vão votar o quê? Ah, não queremos que ela aceite? Foi inexperiência total. No máximo era para levar a resposta para a assembléia. Se a outra parte aceitou tudo, vocês vão submeter à nova assembléia? Vocês são loucos, perguntava.
A inexperiência e o desgaste foram de todos?
Houve inexperiência de ter que, de repente, viver uma situação como essa. Não acho que a reitora negociou mal, nem o governo Serra. Ninguém esperava por isso. A universidade estava anestesiada, como tem sido os últimos 20 anos na universidade? Em brancas nuvens. A sociedade não toma conhecimento, a juventude não é crítica. O governo achou que podia passar por cima. Quer dizer, talvez já estivessem acostumados, porque diziam que no tempo do Geraldo Alckmin e do Claudio Lembo já era assim. Só que o Serra é especial. Ele tem um passado histórico muito importante para os alunos. Eles gostam do Serra. Ainda brinquei, Vocês votaram nele? Ninguém respondeu. Eles sabem que o Serra tem um passado e ia honrá-lo. Esperavam uma atitude de honra, que foi o que aconteceu, com paciência total, de pai e de mãe.
E se evitou a invasão da Tropa de Choque?
Seria um horror. Eles teriam necessariamente de ser criminalizados. Lá em Araraquara (invasão da reitora da Unesp desocupada pela Polícia), o caso foi para o fórum, virou inquérito. Lá foi flagrante, o delegado tinha de cumprir uma ordem do juiz. Isso foi evitado na USP.
Como negociadora, o que sairá de positivo nesse episódio?
A gente só vai ver isso a médio prazo. Em primeiro lugar estamos conhecendo uma juventude combativa e isso muda um país. Se tivessem saído no momento certo, iriam abalar as estruturas. Não abalam porque são meninos. Não acredito em novas ocupações, porque sabem que vai ser essa coisa sem saída. Agora perdeu o elemento surpresa, que foi fundamental. Acho que vai se abrir um debate democrático na USP. Não é panela de pressão. Eles foram chamados de baderneiros, porque está na moda criminalizar os movimentos sociais. Aquelas pessoas todas são muito boas. Eles querem um mundo melhor. E são a elite pensante, daqui a pouco vão mandar. Isso é muito sério. A ditadura não sabia, ela achava que era dona da vida e da morte. A democracia sabe, e o Serra sabe.
Correio Braziliense (DF) – 26/06 - políticas sociais
Estudo do Banco Mundial estima que o país perde R$ 300 bilhões, anualmente, por causa da exclusão de jovens do mercado de trabalho e das salas de aula. Taxa de analfabetismo é maior que a de nações vizinhas
Se todos os jovens brasileiros estudassem e fossem incorporados ao mercado de trabalho, o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro poderia aumentar R$ 300 bilhões, de acordo com o estudo Jovens em situação de risco no Brasil, divulgado ontem pelo Banco Mundial (Bird). Do total de 50,5 milhões de jovens de 15 a 29 anos de idade, 9,5 milhões estão fora da escola e do mercado de trabalho. E 4,5 milhões não fizeram nem mesmo o ensino fundamental. Todos estão em situação de risco.
O relatório mostra dados preocupantes: os jovens violentos custam R$ 33 milhões para a economia brasileira e R$ 5 bilhões para suas famílias. O abandono da escola, os leva a perder R$ 297 bilhões em salários ao longo de suas vidas.
O estudo, que analisa também diversas outras questões, como consumo de drogas, tem o objetivo de estimular o governo a investir em políticas para a Juventude. Atualmente, a União investe por ano R$ 1 bilhão em políticas para os jovens em situação de risco. “Algumas idéias o governo já vem fazendo”, disse Wendy Cunningham, coordenadora do estudo, que traça um quadro desanimador. Os jovens de 15 a 24 anos respondem por 47% do desemprego e por 40% dos homicídios no país. Para o Banco Mundial, jovem em situação de risco é o que assume comportamentos danosos para si mesmo e para a sociedade, com o abandono dos estudos, ociosidade, uso de drogas, comportamento violento, iniciação sexual precoce e práticas sexuais arriscadas. São normalmente de famílias mais pobres.
Na área educacional, o estudo ressalta que o Brasil está em penúltimo lugar entre os 41 países que participam do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes. Só ganhou do Peru. A taxa de analfabetismo entre os jovens do sexo masculino é o dobro da registrada em outros países da América Latina. Além disso, um em cada quatro brasileiros de 15 a 19 anos de idade concilia o estudo com o trabalho, uma proporção três a cinco vezes superior à de outros países. Mais de 60% dos jovens trabalham sem carteira assinada ou nem recebem remuneração pelo trabalho. De acordo com o estudo, 55% dos trabalhadores sem remuneração estão na faixa de 10 a 14 anos de idade.
Assassinatos
O estudo chama a atenção também para o problema dos homicídios, que superam a taxa de 100 por 100 mil habitantes, considerando a faixa etária de 15 a 29 anos. Na América Latina, somente Colômbia e El Salvador, que têm sérios problemas de violência institucionalizada, superam a taxa brasileira de homicídios.
A situação dos jovens varia de acordo com regiões e cidades brasileiras. O estado de Santa Catarina e o Distrito Federal, segundo o Bird, “estão no topo do índice de bem-estar juvenil”, devido ao bom desempenho escolar dos jovens e à forte conexão com instituições locais. Pernambuco e Alagoas estão em último lugar.
Segundo o estudo, jovens com comportamento de risco tendem a ter baixa auto-estima, baixos níveis de espiritualidade, sofrem abusos físicos e sexuais, vivem na pobreza e não confiam nas instituições. O estudo ressalta a importância de políticas para a Juventude em situação de risco para o bem-estar do próprio jovem e também para a sociedade, porque o jovem em situação de risco, além de não produzir, gera despesa para o setor público. O estudo estima que os benefícios perdidos variam entre 12% e 21% do PIB.
No Brasil, há “uma imensa quantidade de programas para jovens”, mas ninguém sabe se funcionam. São 49 programas em 16 ministérios e outros tantos nos estados e municípios. Não são suficientes e “parte da Juventude brasileira encontra-se num caminho perigoso”. “Para desenhar uma estratégia séria de investimento, é importante saber quais programas funcionam com mais eficácia”, aponta o relatório.
Atualmente, 70% dos gastos sociais do Brasil são feitos com a população com mais de 61 anos de idade. Os jovens ficam com apenas 6% desses recursos, percentual que cai a quase zero se forem descontados os investimentos com o ensino universitário. “Essa estratégia equivocada de investimento tem sérias implicações para o crescimento econômico, social, cultural e político do Brasil”, afirma.
O secretário Nacional da Juventude, Beto Cury, que também participou da divulgação, diz que a política para jovens só foi implantada no Brasil em 2005, com a criação da secretaria e do Conselho da Juventude. Segundo Cury, nos próximos dias o presidente Lula vai anunciar uma ação em benefício dos jovens. Ele ressaltou que o investimento real é bem mais alto, porque os jovens são beneficiados também por outros programas de governo, como o Programa Universidade para Todos (ProUni), Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) e Programa de Desenvolvimento da Educação (PDE), além de projetos do Ministério da Saúde para evitar as doenças sexualmente transmissíveis e de prevenção da gravidez.
RADIOGRAFIA
Emprego
Fatores que dificultam conseguir emprego: Ser afro-brasileiro; Não ter estudo; Ser pai ou mãe; Estar grávida Ter deficiência física; Ser homossexual.
Fatores favoráveis à obtenção de emprego: Ser solteiro; Ser branco; Ser heterossexual; Ser alfabetizado ;Ter educação completa ;Ter curso profissional completo; Saber trabalhar com computador .
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Dica do Observatório Jovem:
"As escolas estão trabalhando desta forma: quando os alunos chegam à sala de aula, eles têm que deixar o mundo do lado de fora", Pier Cesare Rivoltella
De janeiro de 2005 a junho de 2006, universidades, governos e associações de nove países europeus – Bélgica, Dinamarca, Estônia, França, Grécia, Itália, Polônia, Portugal e Inglaterra – realizaram uma megapesquisa para conhecer o consumo ‘midiático’ dos jovens. Foram entrevistados 7.393 adolescentes, dos 12 aos 18 anos. Uma das principais conclusões do estudo é a de que a juventude européia está cada vez mais distante da televisão, ocupando boa parte de seu tempo com a internet.
Em entrevista ao RIO MÍDIA, o professor Pier Cesare Rivoltella, um dos coordenadores da pesquisa, diz que a realidade dos adolescentes europeus não é tão diferente da dos jovens brasileiros dos grandes centros urbanos. À frente do recém criado Centro de Pesquisas em Mídia Educação da Itália (Cremit), Rivoltella destaca ainda que os governos dos países analisados estão longe de entender a real necessidade de apostar e de investir na formação de um novo profissional: o mídia educador.
Confira, a seguir, a entrevista que Rivoltella concedeu à equipe do RIO MÍDIA, na sede da MULTIRIO. No último mês de maio, o professor esteve no Rio de Janeiro participando de uma série de encontros na Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio), com a qual desenvolve projetos de intercâmbio de estudos.
Acompanhe:
RIO MÍDIA - Quais são os principais resultados da pesquisa?
Pier Cesare Rivoltella - Há dados interessantes. Por exemplo, quase todos os adolescentes europeus têm, pelo menos, um celular. De acordo com a pesquisa, 95% dos jovens, de 12 a 18 anos, têm o seu próprio aparelho. Na Itália, em média, as crianças são presenteadas com celular aos oito anos de idade. Observamos também que os jovens fazem uso da internet como uma forma de prolongar as relações sociais já estabelecidas no mundo real. Na prática, eles não vão para a web para conhecer outras pessoas. Normalmente, eles acessam à rede para dar continuidade às relações do presente. Percebemos ainda que os consumos midiáticos são bastante parecidos entre as meninas e os meninos. A única diferença significativa envolve os jogos eletrônicos: 55% dos meninos jogam habitualmente contra 43% das meninas. A ferramenta menos utilizada pelos jovens é o blog. A taxa é de 20%, exceto na Bélgica, que chega à casa dos 38%. E, a exemplo do que acontece aqui no Brasil, os jovens estão deixando a televisão de lado. A presença da TV ainda é significativa, mas há indícios de que ela já não mais ocupa todo o tempo livre dos adolescentes. Outro dado revelador é que a tecnologia está presente em todos os lugares. Sua presença é homogênea, seja nos grandes centros urbanos ou no interior dos países.
RIO MÍDIA - O acesso dos jovens às diferentes mídias é homogêneo nos países pesquisados?
Pier Cesare Rivoltella - De certa forma sim. O único país que está um pouco atrasado em termos de tecnologia, e portanto de acesso, é a Grécia. A Estônia, por exemplo, é um dos países com maior número de celulares conectados à internet. A Polônia também possui elevados índices. Há dez anos, Portugal estava um pouco à margem, mas hoje está na média dos demais. O fato que nos chamou a atenção foi a falta de informação da juventude inglesa. Cerca de 45% dos adolescentes afirmaram, por exemplo, que não sabiam o que era um blog. Ficamos bastante surpreendidos com este resultado. É impressionante. Afinal, a Inglaterra é vista e apresentada como um país que investe pesado na interface entre mídia e educação. Há 20 anos, o Estado desenvolve programas escolares sobre o tema.
RIO MÍDIA - Então a que se deve este fato?
Pier Cesare Rivoltella - Em geral, os governos só se preocupam com a oferta. Se preocupam apenas em oferecer acesso à mídia. As políticas públicas pensam apenas em colocar máquinas nas escolas, sem que os professores tenham formação específica na área, o que poderia contribuir na constituição de conhecimentos e valores dos jovens. Neste sentido, as ações do governo inglês espelham as de toda a Europa.
RIO MÍDIA - Sendo assim, as escolas...
Pier Cesare Rivoltella - Não fazem nada. Estão atrasadas. Na Itália, por exemplo, o Ministério da Educação proibiu o uso do celular na sala de aula. Há uma cesta na entrada da sala, na qual os alunos devem colocar seus aparelhos. Trata-se de uma medida pedagógica, com o objetivo de dizer para a população que o governo está cuidando das crianças e dos jovens. A decisão foi tomada em virtude de alguns estudantes terem gravado no celular cenas de sexo entre eles e divulgado na internet. Ou seja, em vez do Estado e das escolas trabalharem o uso do aparelho, até mesmo como ferramenta de ensino, proíbi-se o seu uso. As escolas estão trabalhando desta forma: quando os alunos chegam à sala de aula, eles têm que deixar o mundo do lado de fora.
RIO MÍDIA - Neste cenário, como os pais se colocam?
Pier Cesare Rivoltella - Os pais não estão interessados nos consumos midiáticos dos filhos. Se preocupam apenas com o tempo com que seus filhos passam com a mídia, passam na frente das telas. Os responsáveis não estão preocupados com os conteúdos. Na prática, observamos que os pais não estão sabendo lidar com a recepção que seus filhos fazem da mídia. Nas entrevistas que realizamos, os jovens falam que gostariam de ter relações significativas com os adultos sobre os consumos midiáticos que fazem. Gostariam de conversar, de trocar idéias...
RIO MÍDIA - No Brasil, discute-se muito se é dever do Estado promover uma classificação indicativa dos programas de TV, vinculando o conteúdo às faixas etárias e horárias. Este debate existe na Itália?
Pier Cesare Rivoltella - Na Itália, a classificação indicativa é compreendida como uma medida educativa, mas a questão é cheia de controvérsias e de amplos debates e problemas. A classificação indicativa é feita pela própria emissora, pelo programista, que tem como critério o código de auto-regulamentação elaborado pelos canais. Para fiscalizar, há uma agência reguladora do governo que avalia se as classificações atribuídas pelas emissoras estão condizentes com o código. Na TV italiana, há três tipos de classificação: sinal vermelho, programas para adultos; sinal amarelo, programas que podem ser vistos por crianças e jovens, desde que acompanhados; e sinal verde, programas livres.
RIO MÍDIA - Então a classificação indicativa também é um tema polêmico na Itália?
Pier Cesare Rivoltella - Sim, porque a autoclassificação e a fiscalização não são feitas por profissionais especializados. Este é o espaço que deveria ser ocupado pelo mídia educador. Defendo isso. As pessoas estão percebendo que a questão da mídia e educação não está mais limitada à escola. As emissoras, como qualquer empresa, deveriam ter em seus quadros um ou mais especialistas na interface mídia e educação.
Entrevista concedida a Marcus Tavares
Fotos - Alberto Jacob
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Publicado originalmente no Rio Mídia
O boletim Rede Jovem de Cidadania dessa semana é uma edição especial sobre associativismo juvenil na América Latina e dá destaque ao Fórum Latino-Americano de Juventude, que promoveu uma oficina sobre liderança e gestão política durante a 4ª edição da Universidade de Participação Cidadã, realizada no Uruguai entre os dias 18 e 21 de maio deste ano. Quem traz informações sobre essa articulação é Áurea Carolina, jovem que participou do evento como interlocutora do Fórum Nacional de Movimentos e Organizações Juvenis
Os esforços voltados para a efetivação de direitos fundamentais da juventude na América Latina nas últimas décadas estão fortemente atrelados à concepção de que os/as jovens devem ser tomados/as como agentes estratégicos/as e protagônicos/as do desenvolvimento da região. Isso se deve tanto ao peso numérico desse segmento populacional (os/as jovens na faixa etária de 15 a 24 anos representam, atualmente, cerca de um quarto da população latino-americana) quanto à sua situação específica de vulnerabilidade, tendo em vista que os/as jovens estão mais expostos à pobreza e a outras persistentes e graves desigualdades que caracterizam o padrão sócio-econômico de toda a região, não obstante as peculiaridades que diferenciam cada um dos países.
O estabelecimento do Ano Internacional da Juventude pela Organização das Nações Unidas, em 1985, impulsionou uma série de iniciativas inéditas ou ainda incipientes nesse sentido, sobretudo a realização de seminários e pesquisas sobre as condições de vida dos/as jovens latino-americanos e o delineamento primário de políticas públicas que pudessem responder às realidades diagnosticadas. Legitimado por uma demanda supranacional, aquele ano tornou-se um marco importante para o surgimento de redes não-governamentais em vários países e também para a gradual incorporação da questão juvenil nas agendas estatais. Não se pode deixar de lembrar que isso se passou numa conjuntura histórica pouco favorável, quando muitos países latino-americanos acabavam de sair de regimes ditatoriais, e marcada pela desestruturação da sociedade civil no continente.
Fórum Latino-Americano de Juventude
Nesse contexto, destaca-se a criação, em 1994, do Fórum Latino-Americano de Juventude (FLAJ), como resultado de um amplo processo de articulação iniciado ainda na década de 1980 e que envolveu a participação de diversas entidades vinculadas a jovens, outras formadas por jovens e organismos de cooperação internacional, em especial a UNESCO e o Conselho de Juventude da Espanha (CJE) http://www.cje.org. O FLAJ é uma instância não-governamental que busca se consolidar como espaço plural e de convergência de múltiplas expressões organizadas de juventude da América Latina, tendo como principal finalidade o desenvolvimento do tecido associativo e a participação dos/as jovens na construção de políticas públicas em seus respectivos países.
Atualmente, o FLAJ agrega 21 organizações juvenis internacionais, ONGs especializadas na área e plataformas nacionais de juventude, que se assemelham aos fóruns constituídos pela sociedade civil no Brasil. A única representação brasileira no FLAJ é do Movimento Infanto-Juvenil de Reivindicação (Mirim-Brasil http://www.mirimbrasil.org.br/), que integra o Movimento Internacional dos Falcões – Internacional Socialista para a Educação.
Universidade de Participação Cidadã
Outra importante iniciativa que veio incrementar, mais recentemente, o campo da mobilização juvenil na América Latina é a Universidade de Participação Cidadã (UPC), que é realizada no Uruguai desde 2004 pela ONG Foro Juvenil http://www.forojuvenil.org.uy/ e pela Asociación Cristiana de Jóvenes do Uruguai – ACJ http://www.acj-ymca.org/. A UPC é um instrumento de formação, cooperação e intercâmbio entre organizações juvenis e visa fortalecê-las por meio do diálogo intergeracional e do empoderamento dos/as jovens, baseada numa perspectiva humanista, integral, sustentável, socialmente eqüitativa e com respeito às diferenças.
A proposta da UPC é inspirada na experiência da Universidade de Juventude e Desenvolvimento, evento que acontece anualmente na cidade de Mollina, na Espanha, e reúne jovens ligados/as a organizações juvenis de todo o mundo para vivenciar formações e compartilhar conhecimentos em torno do tema “juventude e desenvolvimento global”.
A 4ª edição da UPC aconteceu de 18 a 21 de maio de 2007, nas instalações do Acampamento Artigas http://www.acj-ymca.org/campa.htm, que pertence à ACJ, e se orientou pelo eixo temático “educação, participação e liderança juvenil”. Durante os quatro dias, a maior parte da programação foi preenchida por atividades simultâneas distintas, como a oficina “Liderança e Gestão Política”, promovida conjuntamente pelo FLAJ e pelo CJE, e o encontro dos/as jovens participantes do projeto “Pintó Cuidarse” http://www.inlatina.org/pinto/, voltado para promoção da saúde e educação sexual de jovens no Uruguai.
Além das atividades específicas, houve momentos de interação entre todos/as os/as participantes em atividades unificadas, como a oficina “Aprendizagens em Educação Global”, coordenada por Nuno da Silva, da ONG internacional Youth for Exchange and Understanding http://www.yeu-international.org/, que provocou a aproximação de adolescentes e jovens mais velhos/as em jogos colaborativos. Também foram realizadas diversas atividades culturais ao longo da programação da UPC, como danças, brincadeiras e cantigas de roda.
Liderança e Gestão Política
Na oficina de Liderança e Gestão Política, especificamente, foram trabalhados conteúdos teóricos e relatos sobre participação social junto a 26 jovens da América Latina e da Espanha que tinham em comum a inserção em movimentos, organizações formais e/ou plataformas/redes de juventude em seus países de origem.
A formação buscou expandir as capacidades e habilidades dos/as participantes no que se refere à gestão associativa, abordando assuntos como eficácia no uso de recursos, interlocução junto a diversas instâncias e incidência das lutas e reivindicações políticas na sociedade. Um dos propósitos foi facilitar a visualização de desafios atuais no estabelecimento de prioridades temáticas e estratégicas para as mobilizações juvenis na América Latina.
Os enfoques teóricos, com o aporte conceitual sobre os temas enfatizados, e os vivenciais, com as contribuições trazidas pelos/as participantes, se complementaram na elaboração de sínteses que apontaram dificuldades muito semelhantes que suplantam as particularidades dos países e assumem um caráter estrutural para toda a região. Entre os itens avaliados, são enumeradas como debilidades comuns a instabilidade de coordenação e de comunicação interna e externa nas redes/plataformas juvenis, a falta de recursos financeiros, a descontinuidade dos processos de mobilização, a falta de uma estratégia de preparação permanente de lideranças e as distâncias geracionais dentro das próprias organizações.
Apesar do quadro desfavorável, foi debatido que algumas oportunidades podem se desenhar a partir de alianças estratégicas junto a agências de cooperação internacional e da consolidação de instrumentos próprios das redes/plataformas para capacitar suas lideranças, sistematizar suas experiências e aprimorar suas capacidades técnicas e políticas. Os/as jovens também avaliaram positivamente o empenho das sociedades civis nacionais de toda a região em prosseguir fomentando redes juvenis. O compromisso, a diversidade de temas e organizações, a legitimidade de base, o potencial de liderança e o grande alcance territorial foram percebidos como fortalezas animadoras que têm alimentado as redes.
No Brasil
A realidade brasileira faz parte deste contexto genérico da América Latina e obviamente apresenta traços mais específicos que devem ser analisados. Ao passo que em diversos países da região, como na Nicarágua, no Panamá ou em El Salvador http://redjuves.tripod.com/, onde existem plataformas juvenis minimamente consolidadas há quase dez anos ou mais, no Brasil a construção de uma plataforma nacional de juventude é mais recente e instável. O Fórum Nacional de Movimentos e Organizações Juvenis http://www.aic.org.br/rede/agencia/boletim_30.htm (FNMOJ), principal referência de articulação juvenil no país, tem enfrentado dificuldades para se manter e viabilizar os seus objetivos. Criado em 2004, o FNMOJ se propõe a reunir as diversas juventudes brasileiras num espaço plural e autônomo e fomentar suas lutas e bandeiras. Apesar de ser uma rede vasta e representativa, pois já contou com a participação de dezenas de entidades nos encontros e oficinas que realizou, sua força política é tímida e deve ser aprimorada e ampliada.
Em novembro de 2006, na oportunidade do Seminário do Conselho Nacional de Juventude, o FNMOJ realizou uma reunião paralela em que se discutiu a necessidade de promover um encontro para planejar sua própria atuação e firmar uma agenda de reivindicações ainda em 2007. Formou-se uma comissão de trabalho para elaborar o projeto do encontro, captar recursos e construir o site do Fórum. Para a concretização de tais encaminhamentos, a comissão tem enfrentado problemas de comunicação e financiamento.
A superação de tais desafios deverá englobar, entre outras ações estratégicas, a interlocução entre o FNMOJ e diferentes instituições que apóiam o associativismo juvenil no Brasil, na América Latina e no cenário internacional, de forma a fortalecer a rede brasileira, possibilitar a continuidade de seus trabalhos e conectá-la a outras articulações existentes. Por fim, a aproximação entre o FNMOJ e as redes juvenis da América Latina pode ser produtiva e enriquecedora para o intercâmbio e a integração desse continente que precisa encarar com mais vigor as injustiças e violências que sistematicamente atingem as juventudes que nele vivem.
* Esse texto foi escrito por Áurea Carolina, colaboradora da Associação Imagem Comunitária, tem 23 anos, é rapper e Secretária Executiva do Conselho Municipal de Juventude de Belo Horizonte. Participou da UPC 2007 como interlocutora do Fórum Nacional de Movimentos e Organizações Juvenis.
Contatos:
Áurea Carolina: (31) 96...
E-mail: aureacarolina@yahoo.com.br
Originalmente publicado em Boletim Rede Jovem de Cidadania, Belo Horizonte, 25 de junho de 2007 - Ano 04 #11
Com a ajuda da ciência derretem-se as negritudes biológicas para decretar não a morte da raça sociológica e sim das políticas de eliminação das desigualdades sociais fundadas na rejeição à raça ou à cor dos indivíduos. Quando combatemos o conceito de raça de costas para a história de desigualdade que ela produziu e permanece reproduzindo, estamos no mesmo paradigma imposto pelo racismo
Como o Brasil é uma persistente promessa postergada de futuro, preferimos ir de volta ao passado, pois as novas interpretações da vida e do mundo são o retorno a velhas teses que forjaram os mitos que somos, outra vez, convidados a cultuar em detrimento da realidade social. A novidade do momento é que raça não existe.
A constatação óbvia é repetida em certos veículos de comunicação como se a genética brasileira tivesse realizado um feito semelhante ao da descoberta da pólvora. Quando foi que raça existiu, a não ser como instrumento de exploração dos povos não-brancos que teve no racismo científico sua legitimação como doutrina teórica? Seria bizarro, não fossem as repercussões desse falso debate.
Com a ajuda da ciência derretem-se as negritudes biológicas para decretar não a morte da raça sociológica e sim das políticas de eliminação das desigualdades sociais fundadas na rejeição à raça ou à cor dos indivíduos. É o resultado político que parece ser buscado com a investigação da ascendência genética dos negros. Veja-se o caso dos gêmeos Alex e Alan, submetidos a perversa, e constrangedora exposição, sendo usados por meio da generalização de seu caso particular e peculiar para atacar a política exitosa da UnB de inclusão da diversidade racial.
Quando combatemos o conceito de raça de costas para a história de desigualdade que ela produziu e permanece reproduzindo, estamos no mesmo paradigma imposto pelo racismo, na medida em que a negação da realidade social das raças hoje coopera para a permanência das desigualdades que ela engendra como construto social e cultural.
É por isso que, fora dos laboratórios dos cientistas, a vida segue como ela é. Uma mulher negra aprovada em primeiro lugar para trabalhar como atendente comercial no último concurso dos Correios, na região do ABC paulista, recebeu da gerente da agência em que fazia treinamento alguns conselhos. Disse a chefe que os Correios pedem que os funcionários do atendimento apresentem boa aparência para "transmitir segurança aos clientes", quando vão postar suas cartas e encomendas.
O foco em questão era o cabelo de Mara, com dreads, chegando a gerente a propor fossem cortados; que se Mara fosse carteira ou operadora de triagem, não teria problemas com a aparência. E ainda fez uma série de perguntas do tipo "por que você usa o cabelo assim?" "Como lava?", afirmando em seguida: "Eu também tenho um pé na senzala".
Se fosse uma negra famosa, Mara teria sido convidada a submeter-se a um teste de DNA que provavelmente comprovaria que ela tem em torno de 40,8% de ascendência européia, assim como Daiane dos Santos. O problema está em conseguir convencer o empregador dessa branquitude presente e latente em seu DNA que não foi capaz de escorrer seus cabelos.
Talvez uma contribuição concreta que geneticistas poderiam dar nesses casos fosse seus institutos ofertarem um certificado de ascendência européia a todos os que parecem negros mas, segundo a genética, não são. Poderia ser uma espécie de crachá no qual viriam descritas as porções, sobretudo a européia, de cada um de nós, a ser apresentado junto com os demais documentos exigidos nos processos de seleção das empresas ou nas revistas policias e demais situações sociais em que, por engano, sejamos tratados como negros.
Isso talvez tivesse evitado, por exemplo, a humilhação sofrida por Daiane dos Santos com a piada divulgada por certa atriz, na qual ela era chamada de macaca, ou as vezes em que o cantor Djavan foi parado pela polícia em São Paulo com seus 30,1% de europeidade no DNA.
Conhecido geógrafo, aguerrido combatente contra as cotas raciais e o Estatuto da Igualdade Racial, em entrevista a um jornal de São Paulo, disse: "É importante que o Brasil mostre para o mundo que é um país de miscigenação -- um país que não é uma democracia racial, mas quer ser". O Fashion Rio acaba de dar ao mundo um exemplo dessa democracia racial "que se quer". O inglês Michael Roberts, que estava fotografando o Fashion Rio para a revista Vanity Fair, considerou "uma vergonha" não encontrar negras desfilando. "Estou surpreso (...) Negros são fantásticos, assim como índios e orientais. O Brasil deveria aproveitar sua diversidade."
Segundo a imprensa, Felipe Velloso, responsável pela escolha de modelos, explicou que "adoraria ter negras na passarela, mas há poucas na profissão. Veja a TV: você não vê negros em comerciais de pasta de dente" . Como se vê, como raça não existe, os negros desapareceram da paisagem (ou melhor, das passarelas) e, de roldão, foram consigo orientais e índios. Deu branco!
Sueli Carneiro é Doutora em filosofia da educação pela USP, é diretora do Instituto da Mulher
Negra(Geledés)
Originalmente publicado no jornal Correio Braziliense em 13/6/2007
Na maioria das vezes, trata-se de meninas obrigadas a lavar, passar e cozinhar ou cuidar de crianças menores do que elas
No Brasil, cerca de 3 milhões de crianças e jovens de até 16 anos trabalham, de acordo com a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Na maioria das vezes, trata-se de meninas obrigadas a lavar, passar e cozinhar ou cuidar de crianças menores do que elas. Era o que ocorria com Thaine Silva, 13 anos, moradora do município de Serrinha, na Bahia. Ela conta que já trabalhou como babá para ajudar no sustento da mãe e dos cinco irmãos.
Ela é um das 872 mil crianças que atualmente são atendidas pelo Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti). "Antes, era muito ruim porque eu trabalhava, às vezes as mulheres não me pagavam, andavam me enrolando, mas depois que entrei para o Peti, recebo o dinheiro do programa, que também ajuda muito, e aprendo muitas coisas lá", afirma Thaine Silva.
O Peti paga à família R$ 40 por cada criança que deixe de trabalhar e volte aos estudos. A criança também deve participar de uma atividade no horário em que não estuda, a chamada jornada ampliada. Os municípios recebem ainda R$ 20 por criança para ajudar no projeto.
Se a família estiver cadastrada no programa Bolsa Família, o valor sobe para R$ 95. Isso porque, no ano passado, o cadastro do Peti foi integrado ao do Bolsa Família, que é mais completo e fornece mais informações sobre a situação dessas crianças. A meta do governo é retirar, até o final do ano, 1,5 milhão de crianças do trabalho infantil.
Hoje, Dia Mundial de Combate ao Trabalho Infantil, o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) começará a veicular na televisão, nas rádios e nos jornais uma campanha para ajudar a identificar a situação de trabalho infantil e denunciar.
A secretária executiva do ministério, Márcia Lopes, lembra a importância de que a sociedade também seja responsável pela erradicação do trabalho infantil. Para isso, alerta que a Constituição Federal proíbe qualquer tipo de trabalho para menores de 16 anos, exceto como aprendizes a partir dos 14 anos.
"Mudar essa cultura depende da vigilância, depende da disposição das pessoas de denunciar, sair do individualismo e de fato ter uma participação cidadã, coletiva, nessa dinâmica da nossa sociedade", explica Márcia.
A denúncia de trabalho infantil deve ser feita pelo telefone 0800-707-2003. Segundo a secretária, "a orientação é para que qualquer cidadão que observe, que identifique uma criança no trabalho infantil, encaminhe e denuncie aos conselhos tutelares, conselhos da Criança e do Adolescente, conselhos de assistência social, à própria escola, a uma unidade básica de saúde, aos agentes do programa Saúde da Família, ou ao Ministério Público".
Publicado originalmente http://noticias.terra.com.br/
São Paulo, domingo, 10 de junho de 2007 - Folha de S.Paulo/Ilustrada
Permite-se tudo, desde que, no final, qualquer traço de rebeldia real seja apaziguado
O CLIMA é de luto entre os fãs de seriados: foi ao ar nesta semana o último episódio da última temporada de "Gilmore Girls". Juntando com o final de "The O.C.", algumas semanas atrás, isso significa que está vago o lugar do seriado adolescente.
Os requisitos básicos são os mesmos desde "Dawsons Creek". Em primeiro lugar, é preciso ser o mais cool possível: gente linda e "perfeita", roupas legais, referências espertas à cultura pop, um tantinho de neurose em grau suficiente para tornar tramas e diálogos atraentes e divertidos... Em segundo lugar, há que ser, por mais tortuoso que o percurso até lá queira parecer, profundamente moral.
Funciona assim: ao mesmo tempo em que exibem modelos moderninhos, inclusive de comportamento, no final reitera-se a centralidade da família (ainda que tenha que se admitir famílias não tradicionais), os valores competitivos nos estudos e no trabalho e, sobretudo, a alegria do conformismo.
Permite-se tudo, desde que, no final, qualquer traço de rebeldia real, de angústia verdadeira e de experimentação existencial autêntica seja devidamente apaziguado.
"Gilmore Girls" era uma espécie de achado, porque era um seriado com duas protagonistas "adolescentes": uma no papel de filha e outra no de mãe. Ou seja, Lorelai engravida na adolescência e, com 30 e poucos, é uma mãe de uma adolescente; Rory é a filha muito madura dessa mãe muito jovem.
Em outras palavras, dois tipos contemporâneos típicos: jovens amadurecidos a fórceps e adultos eternamente presos à sua juventude. À esperteza sociológica do argumento, some-se que, de cara, há um erro -o de ter se tornado mãe ainda adolescente- a reparar e um -o de impedir, a todo custo, que a filha siga o mesmo caminho- a evitar. Para um projeto moralista, nada mais apropriado.
Todo o seriado consistia nessa tensão, da adequação dos que, em algum momento, parecem inadequados. A jovem mãe prova aos pais que, apesar do erro de juventude, é capaz de ser uma empresária de sucesso (e regular a sexualidade da filha), e a doce Rory, cerebral e sensível, é um modelo de aluna, filha, neta, amiga, namorada etc.
O pulo do gato é operar essas trajetórias, no fundo exemplares, como se fossem críticas e não convencionais. Em "Gilmore Girls" isso se fazia com diálogos muito ágeis e espertos -mãe e filha tinham quase que uma linguagem própria- e um timing cômico invejável.