Acervo
Vídeos
Galeria
Projetos


warning: Creating default object from empty value in /var/www/www.observatoriojovem.uff.br/public_html/sites/all/modules/views/includes/handlers.inc on line 657.

Artigos de opinião

Artigos de opinião

1968: a experiência de um movimento nacional

1968: a experiência de um movimento nacional

Introdução:

Pouco se sabe sobre a experiência da UNE de 1968. Os depoimentos sobre o ano mais importante do movimento estudantil brasileiro, em geral fazem referências de algumas manifestações regionais que ganharam grande significado, em particular a passeata dos 100.000 no Rio e as manifestações de São Paulo. A importância dessas mobilizações é inegável, visto a concentração de Universidades nestes dois estados e o grande número de estudantes existentes. Mas o que talvez tenha sido mais importante para a sobrevivência quase exclusiva na memória social é o papel político destes estados e a existência neles de uma imprensa de caráter “nacional” que de certa forma lhe deu espaço e divulgação. Ao contrário, são desconhecidas, por outro lado, importantes manifestações regionais como a mobilização massiva dos estudantes secundaristas baianos, em 1967, que de certa forma foi a “escola” de onde a diretoria da UNE e as entidades regionais tiraram as experiências que impulsionaram para a generalização das mobilizações nacionalmente. Também são praticamente desconhecidas as manifestações estudantis de Minas Gerais que foram importantes atores na reorganização da UNE mantendo erguidas as bandeiras da UNE no pós 64 e onde a repressão foi feroz. Do mesmo modo mobilizações importantes ocorreram em Curitiba, Fortaleza, Recife e Rio Grande do Sul, Pará, por exemplo, para citar apenas algumas, que praticamente não aparecem e não são comentadas (ou o são apenas rapidamente) nos livros e publicações que falam da UNE de 1968. Não se fala também da ação organizada da UNE e de sua diretoria, que foi decisiva na extensão das mobilizações a todo país e em sua coordenação. Neste artigo, falamos um pouco sobre isto. Nossa intenção é apontar alguns elementos e pistas para várias iniciativas de pesquisadores que procuram recompor a experiência do movimento estudantil em todas suas cores.

1968: a experiência de um movimento nacional

Pouco se sabe sobre a experiência da UNE de 1968. Os depoimentos sobre
o ano mais importante do movimento estudantil brasileiro, em geral
fazem referências de algumas manifestações regionais que ganharam
grande significado, em particular a passeata dos 100.000 no Rio e as
manifestações de São Paulo. A importância dessas mobilizações é
inegável, visto a concentração de Universidades nestes dois estados e o
grande número de estudantes existentes. Mas o que talvez tenha sido
mais importante para a sobrevivência quase exclusiva na memória social
é o papel político destes estados e a existência neles de uma imprensa
de caráter “nacional” que de certa forma lhe deu espaço e divulgação.
Ao contrário, são desconhecidas, por outro lado, importantes
manifestações regionais como a mobilização massiva dos estudantes
secundaristas baianos, em 1967, que de certa forma foi a “escola” de
onde a diretoria da UNE e as entidades regionais tiraram as
experiências que impulsionaram para a generalização das mobilizações
nacionalmente. Também são praticamente desconhecidas as manifestações
estudantis de Minas Gerais que foram importantes atores na
reorganização da UNE mantendo erguidas as bandeiras da UNE no pós 64 e
onde a repressão foi feroz. Do mesmo modo mobilizações importantes
ocorreram em Curitiba, Fortaleza, Recife e Rio Grande do Sul, Pará, por
exemplo, para citar apenas algumas, que praticamente não aparecem e não
são comentadas (ou o são apenas rapidamente) nos livros e publicações
que falam da UNE de 1968. Não se fala também da ação organizada da UNE
e de sua diretoria, que foi decisiva na extensão das mobilizações a
todo país e em sua coordenação. Neste artigo, falamos um pouco sobre
isto.

Diversos fatores estão na origem das manifestações estudantis de 68 no Brasil.

É inegável que elas parte de um fenômeno de abrangência mundial já que
foram simultâneas às mobilizações estudantis na França, no México, nos
EUA, na Alemanha e no Japão, para citar apenas algumas das mais
importantes.

Alguns fatores contribuíram para elas ocorressem. Por um lado elas
estão relacionadas a uma certa fatiga, que começava a se sentir, do
processo do crescimento econômico do pós-guerra. Este crescimento tinha
criado uma realidade econômica nova, mas se mostrava incapaz de
promover uma distribuição de renda e resolver problemas sociais,
frustrando as expectativas que tinha gerado. Por outro lado, a “revolta
estudantil”, como chegou a se chamar, era estimulada pela emergência de
novas alternativas de esquerda em escala internacional, estimuladas
pela vitória e consolidação da revolução cubana e pelo sucessos da luta
revolucionária no Vietnam e na Indochina, além da criação da
Organização Latinoamericana de Solidariedade (OLAS) com sua bandeira de
“criar um, dois, três Vietnãs...”

Estes fatores encontraram uma massa estudantil em crescente em número
(pela ampliação do número de universidades e escolas) e desapontada com
a educação em crise e com uma sociedade “moralmente enferma”.

A educação tradicional, em geral, e a universidade arcaica com
chamávamos na época, não era capaz de responder nem mesmo as
necessidades de formação técnica de mão de obra colocada pelo
capitalismo em desenvolvimento, muito menos satisfazer os objetivos
humanistas e sociais que se esperava da educação.

Por outro lado o desenvolvimento dos meios de comunicação e a
concentração urbana tornavam visíveis a “dupla moral” da sociedade,
onde se pregava uma moral que já não era praticada. A sociedade
capitalista com sua incitação aos “prazeres” do consumo, a liberdade
individual, entrava em contradição com a moral conservadora. Se a
contradição não era percebida para os mais velhos habituados a esta
dupla moral, para os jovens não tinha nenhum sentido este tipo de
hipocrisia. Isto os levava a desconsiderar ambas e constituir sua
própria moral, dando espaço praticamente por toda a parte para as
minorias mais diversas, para o “direito a experiência”, para bandeiras
contra qualquer tipo de opressão (“é proibido proibir”) e por liberdade
sexual.

Do ponto de vista particular em nosso país, passávamos um momento onde
a pequeno-burguesia em particular, começava a manifestar timidamente
seu descontentamento estimulado por um movimento estudantil cuja
vanguarda centrava suas ações em manifestações políticas de rua
desafiando a Ditadura. Isto abria uma discussão das classes dominantes
e inclusive dentro dos militares sobre dois possíveis caminhos: o de
buscar a institucionalização da Ditadura abrindo alguns canais
democráticos (redução da Censura, maior espaço para o jogo político,
etc.) para tentar atrair e neutralizar as camadas médias; ou
endurecer...

Foi neste ambiente que se processou a mobilização estudantil de 1968 no
Brasil. As condições eram favoráveis as mobilizações. Mas faltava uma
variável capaz de favorecer a sincronização das iniciativas estimuladas
por este ambiente, e a sua construção como um movimento nacional. E
esta variável, apesar de todas divergências que existiam entre as
lideranças, foi sua capacidade de estabelecimento de uma unidade de
ação na prática. E para isto a UNE e suas estruturas de organização
(Executiva Nacional, Congresso, Conselhos, UEEs, DCEs e Grupos de
Trabalho) tiveram um papel fundamental.

A Une antes de 68

Uma intensa luta política e ideológica se desenvolveu na vanguarda
estudantil no período posterior ao golpe de 1964. Nesta luta política
esta vanguarda colocou em cheque a chamada “esquerda reformista” como
era então caracterizada a política do PCB e formou o que passou a ser
chamada de “esquerda revolucionária”.

No período imediato posterior a 1964 a hegemonia da Ação Popular, com
seu “Movimento contra a Ditadura” (MCD), era inconteste. Nesta época,
até pela grande repressão, mas principalmente pelo privilégio quase
exclusivo dado as ações políticas de rua, a mobilização era
praticamente de setores de vanguarda. Na oposição a esta posição se
encontrava principalmente o PCB que propunha o privilégio quase
exclusivo das lutas específicas estudantis. A Política Operária e o
Partido Comunista do Brasil, na luta política contra o “reformismo” do
“Partidão”, terminavam por se aliar a AP.

Em 1966/1967 começa uma modificação da correlação de forças com a luta
interna dentro do PCB que termina por levar a ruptura dos setores mais
importantes de suas bases estudantis, particularmente em São Paulo, Rio
de Janeiro, Rio Grande do Sul e Minas Gerais, influenciados pelo
surgimento internacional de uma esquerda revolucionária formada sob o
impacto da revolução cubana, do Vietnam e da OLAS, e no país pela
Política Operária, PC do B e pela AP. Nesse período as mobilizações são
basicamente de vanguarda e co raras exceções não passam de algumas
centenas de estudantes os que fazem passeatas, sempre reprimidas, e
confrontam a repressão

Em agosto de 1967, se realiza em um convento de padres na cidade de
Valinhos, Estado de São Paulo, o 29o Congresso da UNE. A diretoria
eleita foi uma composição de esquerda revolucionária, com presidente e
3 diretores da AP, 3 diretores da Política Operária (PO) e 3 das
Dissidências Internas Regionais (DIs) do PCB (1 do RJ, 1 de SP e 1 do
RS).

No Congresso foi aprovada a “Carta Política da UNE”, dedicada a uma
análise da situação internacional, da situação nacional e ao
estabelecimento de um programa geral. A modificação que o XXIX
Congresso provocou foi o resgate da bandeira das lutas específicas,
tentando retirá-las daqueles que procuravam dar-lhes um conteúdo
legalista e reformista.

“Era necessário lutar também contra aqueles que diziam que a ‘luta
específica é reformista e a luta política é revolucionária’. Era
necessário compreender que tanto a luta política quanto a específica
poderiam ter uma condução reformista ou revolucionária. E o Congresso
procura então representar uma alternativa de condução das lutas
específicas, de modo da vinculá-las a uma luta política contra a
Ditadura Militar” (História da UNE, 1980: 66-70)”.

Os eleitos para a nova diretoria foram como presidente Luiz Gonzaga
Travassos da Rosa (AP-SP), e como vices Nilton Bahlis dos Santos (DI -
Rio Grande do Sul) José Roberto Arantes de Almeida (DI - São Paulo),
Luís Raul Machado (AP - RJ), Jacques Zajdsznajder (DI - Rio), José
Carlos Mata-Machado (AP - Minas Gerais), José Carlos Moreira (AP -
Pernambuco), Peri (PO - Bahia), Jari Cardoso (São Paulo) e Edson (Minas
Gerais). Como já foi dito, “um presidente e nove vices, um grupo de dez
pessoas que passou a utilizar nomes frios, dirigentes de uma entidade
sem sede, sem patrimônio, sem arquivos e sem infra-estrutura, a não ser
aquela das entidades estaduais” (Sanfelice, José Luís. Movimento
Estudantil: a UNE na resistência ao golpe de 64. São Paulo: Cortez:
Autores Associados, 1986).
.
Ainda em Valinhos, foi feita uma rápida reunião de articulação da
Diretoria, e se decidiu que os novos diretores se dividiriam e iriam
“levar as decisões do 29º Congresso às bases estudantis de todo o
país”. Depois de passar um mês, dando informes sobre as decisões do
29.o Congresso em reuniões mais ou menos massivas nas principais
universidades do país, os 10 diretores se encontraram em sua primeira
reunião, durante dois dias no Rio de Janeiro, para organizar a
diretoria e planejar a sua ação na gestão que se iniciava.

Apesar das divergências de posições políticas e de que o deslocamento
dos diretores se dava em grande parte por iniciativa de suas tendências
estudantis, a direção da UNE de 1967/1968 conseguiu na maior parte da
gestão de maneira coordenada e com decisões tomada por decisão da
maioria.

Já nos primeiros meses, quando seus diretores ainda se apresentavam
pelo país, esta diretoria viveu sua primeira grande experiência de
mobilização de massas. E elas aconteceram na Bahia, onde estudantes
secundaristas começaram uma luta contra a Lei Orgânica. Uma intensa
agitação começou a se desenvolver praticamente em todas as escolas.
Esta mobilização de milhares de estudantes foi ganhando as ruas dos
bairros e da cidade, e luta que começara em torno de questões
tipicamente estudantis foi ganhando um conteúdo político a partir de
sua própria dinâmica no confronto com a política educacional e a
repressão da Ditadura.

A preparação das mobilizações de 1968

Apesar das mobilizações secundaristas na Bahia não terem sido
convocadas pela UNE, dois de seus diretores (Luis Raul e Peri)
terminaram por participar na liderança do movimento. A experiência
destas mobilizações foi intensamente discutida na direção da UNE e
entre as lideranças estudantis, nas discussões de preparação do
Conselho Nacional da entidade que se realizou em fevereiro de 1968, com
representantes de UEEs e DCEs.

A Ditadura Militar estava dando sua resposta a crise da Universidade,
que não respondia as necessidades de formação de mão de obra para o
mercado. Com o Acordo Mec-Usaid, ela propunha a privatização da
Universidade. Para criar uma opinião favorável a aceitação de sua
política a Ditadura corta verbas do ensino, aprofundando a crise e
praticamente levando o sistema educacional à falência, começa a cobrar
Anuidade dos estudantes (inicialmente de caráter simbólico para criar o
hábito) e restringe as vagas nos vestibulares criando a figura dos
excedentes (que passavam no vestibular mais não tinham vaga).

A UNE também oferece sua resposta. A experiência da Bahia mostrava na
prática que se manifestando, de forma independente, na luta por suas
reivindicações, os estudantes podiam assumir uma dinâmica de luta
contra a política educacional do governo que se desdobrava em uma luta
política contra a Ditadura e a repressão.

O Conselho da UNE de início de 68 define assim, como centro da
mobilização, a luta contra a política educacional do Governo e contra o
Acordo Mec-Usaid, Suas resoluções apontava o caminho das luta por
reivindicações específicas centradas em 3 bandeiras: Mais Vagas, Mais
Verbas para a Universidade, e contra as Anuidades. Por outro lado
define a necessidade de uma estruturação e massificação do movimento
estudantil em torno de suas entidades e em Grupos de Trabalhos (GTs)
como organizações de base para a mobilização dentro das Universidades e
nas lutas de rua, permitindo mantê-las apesar da repressão com
processos de dispersão e reagrupamento.

Esta estratégia, nos meses seguintes, leva a um processo de
sincronização do movimento, favorecendo que as entidades estudantis
ganhem um caráter massivo, e que se crie um ambiente de intensa
agitação nas universidades. A intensificação das mobilizações, em graus
e ritmos diversos, se desenvolve então em todo o país, com picos ora
numa ou em outra região. As mobilizações estudantis que explodiam por
toda a parte no mundo, nesta mesma época, vêm ainda estimular o seu
desenvolvimento.

Mas este crescimento começa a colocar novos problemas. A radicalização
política do movimento estudantil, atuando de forma independente e
atraindo camadas da pequena burguesia, começa a chegar em um impasse,
já que ele não tinha capacidade de derrotar a Ditadura. O movimento
estudantil atraindo professores e funcionários, reivindicando a
autonomia universitária e criando comissões paritárias de estudantes,
professores e funcionários, disputa o poder dentro da Universidade. Por
outro lado o crescimento das mobilizações em muitos lugares consegue
conquistar as ruas e neutralizar a repressão, que fica acompanhando a
distância e apenas intervindo às vezes, quando a manifestação já estava
se dispersando.

Mas o movimento estudantil não tem condições de impor sua vontade.
Nestas condições reaparecem com força as divergências entre as
diferentes alternativas das tendências: alguns apontam o caminho da
radicalização das lutas de rua contra a Ditadura, com a expectativa de
acumular forças para derrubá-la; outros apontam o caminho da violência
armada de vanguarda ou de massas; outros ainda propõem a radicalização
da luta disputando o poder dentro da Universidade e buscando contribuir
para uma embrionária reorganização das lutas operárias que começavam a
se manifestar nas Greves de Osasco e Contagem e na organização das
oposições sindicais. Do mesmo modo, do outro lado, aparecem
divergências no interior do bloco de poder: liberalizar ou endurecer.

Enquanto ainda se desenvolviam manifestações em diversas regiões do
país, a diretoria da Une em meados do ano de 68, se reúne para
organizar o XXX.o Congresso e coloca nele as esperanças de resposta
para a continuidade do movimento e de reorganização de sua Unidade.

O Congresso da Une

O XXXo Congresso da Une foi concebido em quatro fases:

1) Debate nas escolas e eleição dos Delegados diretamente na Base;
2) Congressos Regionais de amadurecimento das discussões;
3) Congresso Nacional fechado realizado em São Paulo;
4) Apresentação das Resoluções às Bases.

A estrutura do congresso demonstra já uma mudança em relação aos
congressos anteriores realizados na clandestinidade. O que se pretende
agora é consolidar a UNE enquanto uma representação estudantil de
caráter massivo com a base estudantil participando diretamente
nasdiscussões das teses apresentadas ao congresso e nas decisões.

A orientação da diretoria da UNE era de, onde fosse possível, organizar
a discussão das propostas políticas do congresso em assembléias abertas
e massivas nas Universidade, e escolher os delegados com representação
proporcional a participação e posicionamentos. Onde isto não era
possível se deveria no mínimo se eleger os delegados em reuniões
fechadas e nos GTs, organização da vanguarda estudantil nas escolas.

Esta concepção aprovada unanimemente pela diretoria refletia a
compreensão que a UNE entrava em uma nova fase onde ela não era mais o
“prêmio” de uma disputa e negociações entre tendências de caráter
político-partidário, mas uma entidade realmente de massa apesar
colocada na ilegalidade pela Ditadura.

Julgávamos que com as mobilizações massivas de 68 criáramos as
condições para dar este passo e que ainda que realizássemos a fase de
reunião nacional fechada, poderíamos garantir a representatividade dos
estudantes nas fases anteriores. O que não compreendemos naquele
momento e só percebemos com a dinâmica do congresso, é que a UNE já não
cabia mais em um Congresso fechado. Que o número de delegados,
conhecidos e eleitos abertamente, com a representatividade que ganharia
o congresso cresceria tanto que não seria mais possível manter qualquer
caráter conspirativo.

Os diretores tinham ido para as bases para organizar o congresso junto
com as entidades locais e de base; as assembléias e debates se
multiplicavam e de repente o número de delegados já passava de 800.
Algumas discussões ainda são feitas entre diretores sobre a
possibilidade de fazermos a fase do congresso nacional aberta, no
CRUSP. Mas a engrenagem já estava em marcha e dificilmente
conseguiríamos consenso para uma mudança de rumo. Se tentássemos
poderíamos quebrar a entidade...

... e nos reunimos no Congresso com a esperança de que a Ditadura não
encontrasse um consenso para reprimi-lo e prender um número tão grande
de lideranças estudantis.

A queda do congresso e as repercussões da prisão de quase 1000
lideranças estudantis mostravam o impasse da co-relação de forças
apresentava. As manifestações dos delegados dentro da prisão (que
fizeram greve de fome para quebrar a incomunicabilidade), dos
estudantes que explodiram em manifestações por todos o país, e a
mobilização de outros setores populares ajudaram a apressar a
libertação de quase todos os presos de Ibiúna. A ditadura manteve
presos apenas menos de uma centena de estudantes, àqueles mais
evidentes, lideranças regionais como Vladimir Palmeira, José Dirceu,
Jean Marc entre outros e os diretores nacionais da entidade.

Escaparam, graças a fuga e uso de identidades falsas apenas três
diretores da UNE: o Luis Raul, o Arantes e eu. Por acaso de três
posições diferentes e na reunião de diretoria, foram apresentadas três
propostas de como eleger a nova diretoria. O Luis Raul propunha um novo
congresso clandestino com a mesma configuração de antigamente; o
Arantes propunha eleger a diretoria em congressos regionais e somar os
votos nacionalmente; e eu, propunha uma “fuite en avant” (fuga para a
frente), um processo de eleição direta nas escolas o que colocaria a
defesa da UNE diretamente nas mãos da base estudantil e obrigaria a
repressão a se dispersar.

As propostas decorriam de posições políticas e avaliações diferentes do
quadro político que se apresentava na vida do país. A corrente do
Arantes começava a ver a possibilidade de responder ao endurecimento do
regime militar pela luta armada; a minha tendência julgava ser possível
oferecer uma resposta pelo aprofundamento da organização e
representatividade do movimento[2], para manter as mobilizações mesmo
com um endurecimento do regime, e acumulando forças para desdobramentos
futuros; por último, para a corrente do Luis Raul, o movimento
estudantil devia continuar ido as ruas e continuar golpeando a
Ditadura, apoiando-se na pequena burguesia.

O Conselho da UNE, chamado a tomar a decisão sobre isto, deliberou pela
posição de Arantes. E quase na clandestinidade, sem representatividade
e conhecimento dos estudantes, foi eleita uma nova diretoria,
praticamente desmantelada e dizimada pela repressão em pouco tempo.

Aqueles estudantes que se mobilizaram por toda à parte levantando suas
bandeiras específicas, disputando o poder no interior da Universidade,
indo as ruas por suas lutas específicas e garantindo sua mobilização
apesar da repressão da Ditadura, não conseguiam garantir a
sobrevivência orgânica de suas entidades. Mas aquelas mobilizações
permaneceram na história do país e na memória de sua vanguarda até
serem retomadas quase uma década depois. Significaram também a
formação, a educação política e a experiência de organização de uma
geração de brasileiros que continuaram lutando de várias formas na
clandestinidade e que depois ofereceram sua experiência para a
reorganização das lutas e a democracia no país.

[1] Quando Otávio Luiz Machado me convidou a escrever este artigo ele
me perguntou sobre o livro História da UNE. Comentei que não via
importância neste livro, apesar de ter conseguido depoimentos de vários
dirigentes da década de 60. Apesar dele ter uma tiragem de 3000
exemplares, pensava que pouco impacto ele tivera já que não via
referências ao livro nas notícias e artigos sobre 68 que eu tomava
conhecimento. Posteriormente a sua pergunta, fiz uma pesquisa na
Internet e descobri que vários pesquisadores e livros sobre a UNE fazem
referência ao livro, já que ele é um dos poucos documentos que traziam
depoimentos de dirigentes de várias gestões da UNE em uma época que
eles não davam entrevistas em jornais e televisão. Mudei então de
opinião: acho que ele cumpriu seu papel.
O livro sobre a UNE foi uma das formas de colaboração que estabeleci
com as diretorias que reorganizaram a UNE nos anos 1979/1982 a partir
de uma solicitação, aos ex- Diretores da entidade que estavam no
exílio, feita por Rui César em um Congresso da Anistia realizado em
Roma no início de 1978. Ele solicitou que voltássemos para ajudar na
reorganização da entidade e eu retornei às vésperas da eleição da
Diretoria da UNE, no final de 1979.
Fiz então inúmeras palestras e percorri, com lideranças da época, salas
de aula falando da História do Movimento Estudantil e da UNE. Estas
atividades me levaram a organização do livro em colaboração com a
entidade.
Na época participei também da ocupação simbólica do prédio da UNE como
resposta às ameaças do Governo de reprimir as eleições da diretoria da
entidade. Era um pouco a mistura de duas épocas. Após as eleições
participei da primeira reunião da nova diretoria e propus que ocupassem
definitivamente o prédio da entidade. Os diretores me ouviram e ficaram
de discutir o assunto. Minha idéia era que a diretoria e um grupo de
estudantes ocupassem e se entrincheirassem no prédio chamando os
estudantes para se incorporar e garantir a ocupação.
Esperava que isto acontecesse a qualquer momento. Passaram-se, no
entanto alguns meses e não tive retorno da proposta ou percebi qualquer
movimentação com este objetivo até o momento quando os jornais
estamparam notícias que os estudantes reunidos em um conselho da UNE na
Bahia tinham decidido retomar o prédio da entidade. Alguns dias depois
a polícia ocupou o prédio e o mais rapidamente possível começou a
demolição.
[2] Minha tendência se chamava Universidade Crítica e o fato de ser sua
principal levava o pessoal de outras tendências a brincar me chamando
de “Reitor da Universidade Crítica”.
A Universidade Crítica se constituiu como tendência formal no bojo de
alguns movimentos estudantis de 1968 no Brasil que propunham a
organização de comissões paritárias de estudantes, funcionários e
Professores para disputar poder no interior da Universidade e
desenvolver uma crítica ao conteúdo de ensino. Sofríamos, também, uma
certa influência dos movimentos estudantis de maio na França que
contestavam o próprio sistema educacional e da Universidade Crítica de
Berlim que colocavam sobre crítica, paradigmas da ciência e da
sociedade capitalista industrial.

Publicado em 21 de Setembro de 2007
Autor: Nilton Bahlis dos Santos – Vice-presidente da UNE em 1967/1968,
Organizador do livro “História da UNE”, publicado em 1980 pela Editora
Livramento[1].

Cientista da Informação e Pesquisador da FIOCRUZ, especializado em sistemas complexos e na Internet

Estado apóia um único projeto:o monopólio da UNE

 A 1ª Conferência Nacional da Juventude apontou forte preocupação com a
participação política. Mas, no dia-a-dia, há um abismo para a
construção ou o fortalecimento de espaços de participação, capacitação,
informação e mobilização da juventude.

A difículdade é a União Nacional dos Estudantes ( UNE), pois há cerca
de dez gestões que não há revezamento em sua direção (sob o comando do
PCdoB), o que dificulta as ações e iniciativas de entidades de base das
universidades que buscam atuar em concomitância com as entidades
regionais e nacionais de representação dos estudantes.

Alguns pontos a considerar: a) a sede da UNE deveria estar localizada
numa cidade como Feira de Santana, na Bahia, facilitando a presença dos
líderes estudantis nas reuniões e nas atividades da entidade todos os
meses; b) a concentração das verbas públicas na UNE, como os R$ 2,3
milhões utilizados e a solicitação de outros R$2,2 milhões, não condiz
com a própria história da UNE e muito menos com o movimento estudantil
brasileiro; c) o lobby da UNE em Brasília pretende forçar o Estado a
construir um prédio de 13 andares na praia do Flamengo, no Rio de
Janeiro, cuja valor não sairá por menos de R$10 milhões; a nova sede é
injustificável, bastariam um monumento e um auditório para dotar o
terreno histórico de atividades e sentido para o movimento estudantil..

O próprio presidente Lula disse dias atrás que o Estado tem uma dívida
enorme com a juventude brasileira. Muitas outras autoridades
manifestaram o desejo de que nossa juventude participe da discussão das
mais diversas questões políticas. A comunidade de estudantes envolvida
com a Conferência Nacional da Juventude concordou com o que foi
verbalizado pelas autoridades políticas.

Mas o pagamento dessa dívida, com incentivo ao envolvimento dos
estudantes com as questões políticas, não deveria necessariamente
passar pela UNE, mas pelo conjunto das entidades estudantis
brasileiras, que não possuem estrutura e muito menos recursos
financeiros,para financiar suas atividades, tendo apenas a vontade de
contribuir para o desenvolvimento do país.

A exclusividade seria uma distorção e uma grande injustiça com a nossa
juventudes,,principalmente como aqueles jovens que estão ocupando
reitorias, lutando por direitos ou participando de projetos culturais e
sociais voltados às camadas populares.

Quando o Estado apóia o pensamento único e concentra suas políticas num
único projeto político, sem olhar o que está acontecendo à sua volta,
mobiliza recursos de toda a sociedade para beneficiar apenas a um grupo
político, cedendo às bajulações e pressões de seus membros. Se isso
ocorre, as práticas democráticas deixam de ser regra e caminhamos para
o obscurantismo.

Mas ainda há tempo de comunicar à nossa elite política sobre o erro que
estão cometendo do ponto de vista do interesse público se não atenderem
igualmente às demandas de todas as entidades da nossa juventude
estudantil.

Publicado em: 08/05/2008
Pelo jornal O Tempo.
Por Otávio Luiz Machado.

Pesquisador da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)

Depoimento sem Dano, para quem?

Devido principalmente às dificuldades enfrentadas para o desfecho de alguns processos judiciais que envolvem crianças e adolescentes que se supõem serem vítimas de abuso sexual alguns profissionais do Direito vêm propondo a inquirição daqueles por meio do chamado Depoimento sem Dano. A sugestão se dá a partir da alegação de que há situações para as quais não se têm testemunhas, sendo a palavra dos envolvidos – crianças e adolescentes – a principal prova possível de ser produzida

Devido, principalmente, às dificuldades enfrentadas para o desfecho de alguns processos judiciais que envolvem crianças e adolescentes que se supõem serem vítimas de abuso sexual, alguns profissionais do Direito vêm propondo a inquirição daqueles, por meio do chamado Depoimento sem Dano. A sugestão se dá a partir da alegação de que há situações para as quais não se têm testemunhas, sendo a palavra dos envolvidos – crianças e adolescentes – a principal prova possível de ser produzida. 

Além disso, alertam para o fato de que a insuficiência de provas nesses casos acarreta, conseqüentemente, baixo número de condenações. Justificam também que, nas audiências realizadas nas Varas da Infância e da Juventude e nas Varas de Família, o depoimento aconteceria em ambiente inapropriado para crianças e adolescentes, que podem ser solicitados a narrar, para diversas pessoas estranhas, fatos que lhes são constrangedores, situação que poderia lhes acarretar danos psíquicos. Da mesma forma, reconhecem que, no curso do processo, tal solicitação geralmente acontece mais de uma vez, revitimizando crianças e adolescentes. Como solução, acenam para a possibilidade de se colocar em prática o Depoimento sem Dano, indicando psicólogos e assistentes sociais como os profissionais que deveriam colher tal testemunho, na medida em que estes saberiam como formular perguntas às crianças e aos adolescentes. Nota-se assim que, mais uma vez, busca-se método objetivo, preciso, incontestável, seguro, para se colher um testemunho, prova que sustente a apuração do fato e posterior condenação do réu.

Segundo o modelo proposto, crianças e adolescentes devem ser ouvidos nas dependências do Fórum em sala especialmente projetada para esta finalidade, retratada como aconchegante, com móveis, brinquedos e material preparado para o atendimento destes, além de ser equipada com câmeras e microfones para se gravar o depoimento. O psicólogo ou o assistente social que irá colher o depoimento deve informar a criança, ou o adolescente, sobre a existência de câmeras. Durante a inquirição, o profissional permanece com um fone no ouvido para que o Juiz possa indicar questões a serem formuladas, sendo que o psicólogo ou o assistente social deve transmitir as crianças e adolescentes perguntas que estes possam entender. O Juiz, o Ministério Público, os advogados, o acusado e servidores judiciais assistem ao depoimento por meio de um aparelho de televisão instalado na sala de audiências. Com a gravação do relato, uma cópia é anexada ao processo, o que torna desnecessária a repetição da inquirição.

Há destaque, assim, para o fato de que a criança ou adolescente não precisa depor diversas vezes, sendo possível obter um material gravado de qualidade, baixo custo, moderno e de fácil acesso a todos. Outra vantagem é a valorização da palavra dos mesmos.

Magistrados justificam que outros países vêm utilizando técnicas similares, citando os modelos argentino, espanhol e francês. Assim, saúdam o Projeto de Lei 7.524/2006, que propõe esta como a forma preferencial de inquirição de crianças e adolescentes no contexto jurídico nacional. Para tal, o citado Projeto justifica a necessidade de alteração no Código de Processo Penal Brasileiro, cujo artigo 530 passaria a ter a seguinte redação:

Art. 530-A. Far-se-á a inquirição judicial de crianças e adolescentes, como vítimas ou testemunhas, na forma prevista neste capítulo (…)

Os que defendem a inovação alegam que o processo penal estaria se modificando devido ao reconhecimento da importância de interdisciplinaridade, atribuindo-se aos avanços das ciências humanas a notoriedade desses depoimentos no âmbito jurídico.

Não é de se estranhar, portanto, que o citado Projeto de Lei venha acarretando acaloradas discussões entre os que compõem essas categorias profissionais, enfocando-se e analisando-se critérios éticos, teóricos, metodológicos e técnicos. Destacam-se, a seguir, diversos questionamentos que vêm sendo pontuados, convidando o leitor deste pequeno artigo a formular outras questões, dispondo-as no espaço destinado aos comentários.

Poderíamos perguntar se a não vitimização de crianças e de adolescentes, nesses casos, seria apenas não depor na frente do acusado e não ter que repetir seu depoimento para diversas pessoas em distintas ocasiões. A referência que vem sendo feita é em relação à escuta ou a uma inquirição? Estaríamos desconsiderando a menoridade jurídica de crianças e de adolescentes equiparando-se o direito de ser ouvido à obrigação de testemunhar? Qual o status atribuído à criança, ou ao adolescente, no processo judicial? O de testemunha? Crianças assumem o compromisso de dizer somente a verdade? Seria esta uma forma de proteção à criança e ao adolescente, de garantia de seus direitos? Os pais podem se opor e não permitir que seus filhos testemunhem? Ao se afirmar que a criança e o adolescente possuem direito de ser ouvidos, se estaria considerando seu direito de não ser ouvidos, ou esse direito seria, agora, uma obrigação?

Alega-se que este poderia ser um novo espaço de atuação para psicólogos e que, na técnica em questão, não se estaria realizando avaliação psicológica e sim uma entrevista investigativa. No entanto, despontam também as perguntas: psicólogos colhem depoimentos, fazem inquirição, conduzem oitivas? Com esta técnica se estaria ferindo a ética profissional ao se desconsiderar o dever de respeitar o sigilo nos atendimentos?

Destaca-se, ainda, que o fato de técnica semelhante existir em outros países não significa que tenha havido consenso para sua implantação. Na Argentina, por exemplo, a alteração do Código de Processo Penal para que os depoimentos de crianças e de adolescentes fossem possíveis suscitou árdua polêmica entre os profissionais, argumentando-se, dentre outros aspectos, sobre a fugacidade com que se pretende solucionar assunto tão complexo. A urgência para a tomada de decisões mostra-se clara ao se determinar que, em um único encontro, a questão deve ser elucidada, confundindo-se atendimento psicológico com a obtenção de depoimentos.

Na África do Sul, onde há mais de 10 anos se usa técnica aos moldes do Depoimento sem Dano, autores apontam algumas dificuldades que vêm ocorrendo, como o fato de os profissionais que fazem as perguntas serem, de certa forma, obrigados a reproduzir as questões tal como formuladas pelo Juiz, apesar de não ser esta a proposta original do trabalho.

A psicóloga Marlene Iucksch, em palestra proferida na Universidade do Estado do Rio de Janeiro em 2007, explicou que técnica semelhante ao Depoimento sem Dano é realizada na França por policiais, devidamente treinados, que auxiliam a instrução do processo. Marlene mostrou-se surpresa ao ser informada de que, no Brasil, há proposta para que psicólogos realizem esta tarefa. Além de compreender que esta não estaria de acordo com um trabalho psicológico, a profissional ressaltou que reconhecer a palavra da criança e do adolescente, ou o direito de se expressarem, é diferente de sacralizar a palavra destes.

Sem desconsiderar a difícil situação de crianças e de adolescentes que passam por reiterados exames ao longo do processo, entende-se – a partir da concepção que se tem da Psicologia – que, além de o Depoimento sem Dano não ser tarefa de psicólogos, a revitimização da criança pode ocorrer quando há ausência ou recorrência de intervenção, bem como intervenções inadequadas. Acredita-se, portanto, na necessidade de serem melhor avaliadas inúmeras questões implicadas no Depoimento sem Dano, a fim de que não se prejudique ainda mais a criança e o adolescente. Destaca-se, ainda, que o Conselho Federal de Psicologia encaminhou em 2007, ao Senado Federal, moção contrária à aprovação do projeto de lei que institui o Depoimento Sem Dano, o que não significa que o debate esteja encerrado.

* Leila Maria Torraca de Brito é Professora Adjunta do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Disponível no site: http://www.psicologia.ufrj.br/nipiac/blog/?p=84

Maioridade penal

Em artigo, o jornalista do jornal O Tempo, Oswaldo Antunes, comenta os paradigmas da maioridade penal
Segundo o  articulista, o que precisa ser corrigido é omissão dos poderes públicos e seus agentes com o que o Estatuto da Criança e do Adolescente determina

Na visão moral, o crime não compensa. Mas esse refrão, na prática, é controverso e permite aos aéticos cometer delitos graves, sem punição: as principais razões da criminalidade - falta de cultura, máeducação ou viciosa organização do Estado -, por serem mais da ordem social do que individual, acabam sendo aceitas como de inevitável perpetuação.

Em comentário anterior abordamos a hipócrita passividade liberal que permite legislar bem e executar mal. O caso do Estatuto da Criança e do Adolescente é exemplo pungente. Pretendeu-se dar aos menores a proteção integral, isto é, "assegurar-lhes com absoluta prioridade a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária". Para que todo bem se tornasse possível, a lei determinou que fosse dada às crianças todas e adolescentes a primazia de receber proteção e socorro e a precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; tanto quanto na formulação e na execução de políticas sociais. E privilegiou a destinação de recursos, o que também não é feito.

O que se vê na realidade são crianças abandonadas e adolescentes socialmente excluídos, fora também da proteção do Estado. E, além de vítimas do abandono, da falta de oportunidade para se educarem e profissionalizar, ficam à mercê do tráfico de drogas e da exploração da sua fragilidade por criminosos adultos. Quando, como conseqüência do desvirtuamento da lei, cometem pequenos delitos, o órgão encarregado pela sociedade de acolhê- los e zelar pelos seus direitos nada mais é do que uma prisão inadequada e cruel. Ali não há como proteger os de faixa etária menor e os primários. A natureza menos grave do fato causador da apreensão, que recomendaria uma recuperação educacional, não pode ser levada em conta. Os menores de 12 ou 13 anos, que agiram sem dolo, são colocados como aprendizes de criminosos prestes a atingir a maioridade e deles recebem orientação para o crime hediondo.

Por isso, e o mais que ocorre em razão da prevaricação dos responsáveis, a redução da maioridade penal não é solução para seu abandono. Pode ser feita como cataplasma, mas não resolve. Oque precisa ser corrigido é a antiga, constante e revoltante omissão dos poderes públicos e seus agentes. E verificar que essa omissão é conseqüência de desvios na ordem e nos recursos públicos; pune-se o furto de uma criança, mas os delitos privilegiados, como o grande estelionato, são consentidos.

A disputa do espólio de influente político falecido pode ilustrar bem essa inversão. No caso,o crime, apesar de suas nefastas conseqüências sociais, compensa a quemo comete. Prejudicada fica a nação, atingida na sua origem,, a infância. Enquanto herdeiros da batota a reivindicam perante a Justiça cega, à vista de todos é penalizada a criança do morro e da cracolândia.

Publicado originalmente em 04/04/2008
Pelo jornal O Tempo, por Oswaldo Antunes
  
 

A Educação técnica: Para que e para quem?

Em artigo para o Observatório Jovem, o Mestre em Educação Carlos Artexes Simões discute os desafios e a necessidade do estabelecimento de políticas de educação técnica para jovens num quadro global de desemprego estrutural e escassez de oportunidades. Carlos Artexes é pesquisador do Observatório Jovem e defendeu no ano de 2007, no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFF, dissertação de mestrado sobre a formação de jovens trabalhadores do Colégio Estadual Prof. Horacio Macedo/CEFET-RJ

No inicio do século XXI, o Brasil enfrenta grandes dificuldades de atender à sua população e, em particular, aos jovens nos seus direitos básicos de uma educação de qualidade para todos e de trabalho não alienado. O trabalho informal e o subemprego predominam nas relações de produção e a expansão quantitativa da escolarização tem se caracterizado como uma oferta degradada para os setores populares. Um grande contingente de jovens tem abandonado a perspectiva do estudo e do trabalho. Nesta realidade social, aqui vista como uma tensão entre a estrutura de um sistema capitalista e a estratégia utilizada pelos atores sociais, as propostas educativas e, em particular, da educação profissional assumem diversas perspectivas entre seus motivos declarados e o público a quem alegam atender. Neste cenário contraditório torna-se importante trazer alguns elementos que podem ajudar a desvendar para que serve e a quem se destina o ensino técnico no Brasil.

Na atualidade, configura-se uma realidade da educação da juventude em uma sociedade de grandes desigualdades sociais com profundas mudanças no mundo do trabalho. Constata-se a exclusão de muitos do acesso e da permanência na educação escolarizada, a baixa qualidade educacional e a difícil inserção social do sujeito como cidadão produtivo.

Segundo a OIT (Organização Internacional do Trabalho), o desemprego alcançou, em 2003, cerca de 88 milhões de jovens entre 15 a 24 anos, representando 47% do total global de desempregados. Haverá pelo menos um bilhão de pessoas que enfrentarão a ameaça do desemprego ou o subemprego nos próximos anos. Aproximadamente 40% da população mundial têm menos de 20 anos atualmente. E 85% dos jovens, muitos trabalhando em condições de pobreza, vivem em países em condições de pobreza agravada pela falta de oportunidades. A taxa de desemprego juvenil subiu de 11,7% para 13,8% na última década. Em média, os jovens têm três vezes mais possibilidades de estarem desempregados que os adultos.

Por outro lado, milhões de jovens não podem permitir-se o “luxo” de estarem desempregados e, por isso, trabalham durante longas jornadas em troca de salários muito baixos. A maior parte dos habitantes do mundo vive e trabalha no quintal da economia de mercado, isto é, na economia informal. São trabalhadores que encontramos no campo e nas ruas das cidades. Desprotegidos pela lei, se vêem obrigados a subsistir com suas famílias em condições precárias.

Em termos de trabalho e escolarização da juventude, os dados da Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios (PNAD/IBGE-2001) já revelavam que entre os jovens de 15 a 24 anos no Brasil: 24,7% - só estudavam, 18,7% - estudavam e trabalhavam, 32% - só trabalhavam, 5,2 % - estudavam e procuravam emprego, 5,9% - só procuravam trabalho e 13,5% - não estudavam, não trabalhavam, nem procuravam trabalho.

Nesse quadro, encontra-se o dilema entre a tendência de garantir aos jovens um tempo maior de preparação na educação escolarizada, implicando, portanto, a suspensão provisória da inserção no mundo produtivo e, por outro lado, a necessidade concreta do trabalho dos jovens brasileiros como meio de aquisição das condições mínimas da cidadania. Do ponto de vista do trabalho, podemos falar de distintas formas de socialização profissional relativas aos diversos grupos de jovens, diferenciados pela sua origem social ou seu capital escolar. As trajetórias profissionais não são mais previsíveis e a responsabilidade da inserção no trabalho é dirigida cada vez mais para o próprio jovem e seus atributos de escolarização e formação. Novos significados em relação ao trabalho são construídos pelos jovens, ante a intensidade com que foram tocados pela incerteza e o desemprego juvenil. O trabalho aparece muitas vezes como uma referência central entre as opiniões, atitudes, expectativas e preocupações dos jovens e com significados diversos no imaginário juvenil, como valor, necessidade, direito ou mesmo como busca de aquisição de autonomia familiar e poder de consumo.

Por outro lado, a escolarização, além de um direito social básico, ainda representa uma estratégia dos setores populares para o seu desenvolvimento individual e coletivo. Entretanto, no Brasil, cerca de 17,7 milhões de brasileiros, em um universo de 182 milhões, tinham entre 15 e 19 anos (PNAD/IBGE-2004), faixa etária que corresponde à idade considerada adequada para cursar o Ensino Médio. No entanto, apenas 6,8 milhões (38%), nessa faixa etária, estavam matriculados neste nível de ensino (CENSO ESCOLAR 2005).

O Ensino Médio tem-se constituído ao longo da história da educação brasileira como o nível de mais difícil enfrentamento, em termos de sua concepção, estrutura e formas de organização, em decorrência de sua própria natureza de mediação e a particularidade de atender aos jovens. Sua ambigüidade confere uma dupla função de preparar para a continuidade de estudos e ao mesmo tempo para o mundo do trabalho, produzida dentro de determinadas relações sociais e, em particular, no projeto capitalista de sociedade. Nesse contexto, a Educação Técnica Profissional de Nível Médio, no Brasil, ocupou um lugar importante nos conflitos que atravessam o campo educacional.

Outros dados (CENSO ESCOLAR 2005) são relevantes nas matrículas do Ensino médio e na Educação Técnica no Brasil:

a) 9.031.302 matrículas no Ensino Médio; b) 707.263 matrículas na Educação Técnica de Nível Médio; c) No Brasil 48% da população é de raça/cor preta ou parda (PNAD/IBGE-2004) onde 43% dos alunos do Ensino Médio e, surpreendentemente, apenas 26% dos alunos da Educação Técnica declaram-se de raça/cor preta ou parda; d) São oferecidos, pela iniciativa privada, 11% das matrículas no Ensino Médio e 58% das matrículas na Educação Técnica; e) Os alunos na faixa etária de 15 a 19 anos correspondem a 75% das matrículas no Ensino Médio e a 32% das matrículas na Educação Técnica.

Os jovens têm hoje maior acesso à escola, permanecendo nela por mais tempo. Mas a expansão quantitativa também é preenchida por reprovações sistemáticas e abandono “físico” e “espiritual” que configuram uma realidade de uma inclusão excludente.   A relação da juventude com a educação institucionalizada tornou-se um grande campo de disputa de gerações, onde a potencialidade de conquista de autonomia confronta-se com o formalismo escolar e interesses políticos e econômicos distantes do processo de aprendizagem dos jovens.

Sabemos que a escola nasce com uma tendência onde não havia preocupação com a economia e a formação profissional. A escola republicana era impelida pelo projeto de instalar uma cidadania nova e pela legitimidade das suas instituições. O liceu burguês ficava centrado nas humanidades e reivindicava a gratuidade do saber contra os conhecimentos diretamente úteis e produtivos. Apesar de fortalecer a importante autonomia da educação frente ao setor econômico promoveu uma história de longa resistência ao Ensino Técnico e Profissional, de um relegar esse ensino para as carreiras desvalorizadas - um confinamento simbólico, do qual hoje temos muita dificuldade em nos desvencilhar. Isso não significa que jamais tenha havido um desejo de adaptação da formação aos empregos e às qualificações profissionais mas que essa função permaneceu sempre marginal. Porém, a marca essencial desse sistema era o dualismo escolar e o tipo de seleção das diversas clientelas.

No Brasil, a preparação para o trabalho foi inserida na educação escolar no século XIX, voltando-se para os órfãos e desvalidos da “sorte”, em funções que exigiam mais a atividade manual do que a atividade intelectual. Até então, o preparo para os ofícios se dava nos próprios locais de trabalho. Foi no início do século XX que a formação profissional escolar ganhou caráter regular, com as Escolas de Aprendizes e Artífices, no nível primário. Posteriormente, a industrialização do país elevou o status da formação profissional, com a criação dos cursos técnicos de nível médio, na década de 1940. Porém, até hoje, aparecem concepções e práticas diferentes e contraditórias da relação da formação profissional e a educação geral.

As características compensatórias dos programas educacionais e formação profissional para superar deficiências e alcançar a cidadania das pessoas, através da inserção no mundo do trabalho, estão relacionadas às especificidades do modo de vida e indícios desses mesmos indivíduos em estado de pobreza. Basta ver os destinatários de determinados programas de formação profissional para perceber uma evidente ligação entre os seus objetivos educacionais e de inserção social, no mundo produtivo com os grupos sociais mais pobres. O modo de identificar uma pessoa sujeita a esses programas de Educação Profissional está sempre muito mais referido a aspectos próprios, como membros que são desses grupos sociais, do que a evidência de suas características próprias individuais. Não se reconhece o sujeito, mas sua posição de classe social. Na verdade, o reconhecimento do jovem como "clientela" para participar de um programa educativo está, essencialmente, no fato deste morar na favela, ser negro, ou ser pobre. São esses os indícios explicitamente admitidos pela sociedade para a identificação dos participantes de tais programas.

O Ensino Técnico como prática educativa se insere de forma diferenciada, de acordo com os momentos históricos e a política vigente, adquirindo a natureza ora da educação tecnológica ligada ao saber escolar, ora da natureza de Qualificação Profissional mais imediatamente ligada ao mercado de trabalho. Nesse sentido, o Ensino Técnico é uma oferta educativa que representa, historicamente, no âmbito da educação, uma questão contraditória e com ambigüidades entre a Qualificação Profissional e a educação propriamente dita. Observa-se, curiosamente, que na sua relação com o Ensino Médio (secundário) dá-se uma disputa permanente entre orientações profissionalizantes e/ou acadêmicas, entre objetivos propedêuticos e econômicos.

Por outro lado, a palavra dos jovens trabalhadores, a lógica pela qual percebem o valor do trabalho e da educação técnica revela um conjunto de questões que indica a necessidade de rever concepções há muito tempo repetidas e que encobrem relações desconhecidas entre o jovem e o mundo da produção e da reprodução social. As velhas hipóteses segundo as quais a educação reproduz o sistema de produção social, ou é vista como um caminho de salvação dos jovens pobres não mais é suficiente para entender a realidade dos jovens e sua relação com a escola e o trabalho. Percebe-se a importância da educação técnica como estratégia dos jovens para alcançar não só os seus projetos de vida e objetivos educacionais, como, também, para a busca de inclusão social e de autonomia individual. Em síntese, a estratégia dos jovens de utilizar as oportunidades educacionais para sua emancipação social e desenvolvimento pessoal se estabelece dentro de uma contradição incorporada de negatividades e positividades.

O Ensino Técnico representa uma estratégia dos jovens trabalhadores, muitas vezes imperceptíveis para gestores e legisladores educacionais. Sua importância para os setores populares relativiza questões que, do ponto de vista teórico, representariam uma subordinação aos interesses do capital, mas que, por outro lado, evidenciam uma chance de fortalecer os jovens trabalhadores em sua emancipação e desenvolvimento pessoal e coletivo.

Nos depoimentos de jovens trabalhadores fica claro que a profissão de técnico favorece sua inserção mais favorável na sociedade, fortalece a autonomia e a capacidade de continuação dos estudos no Ensino Superior. A falta da profissão de nível médio para os jovens pobres pode não só interromper suas trajetórias de estudantes como, principalmente, suas implicar que a inserção no trabalho ocorra de forma precária e desvalorizada.  

Ensino Técnico articulado com o Ensino Médio, preferencialmente integrado, representa uma possibilidade que não só colabora na questão da sobrevivência econômica e inserção social dos jovens, como também aponta para uma proposta educacional que, na integração de campos do saber, torna-se fundamental na perspectiva do desenvolvimento pessoal e na transformação das realidades sociais nas quais os jovens estão inseridos. A relação e integração da teoria e prática, do trabalho manual e intelectual, da cultura técnica e da cultura geral representam um avanço conceitual e a materialização de uma proposta pedagógica mais avançada em direção aos interesses da juventude.
 

(*) Professor do CEFET-RJ, Engenheiro Eletrônico (UFRJ), Pedagogo (UFRJ) e Mestre em Educação (UFF).

Acesse o texto integral da dissertação de Carlos Artexes: Juventude e Educação Técnica: a experiência na formação de jovens trabalhadores do Colégio Estadual Prof. Horacio Macedo/CEFET-RJ

***

Leia também no Observatório Jovem

Entrevista com Marina Garcia e Guilherme Ferreira - estudantes da Escola Politécnica da Fiocruz

Os jovens e o ensino técnico

Comentário sobre a reportagem “Agente Jovem não funciona, diz pesquisa"

Geraldo Leão, professor do Programa de Pós-Graduação em Educação e pesquisador do Observatório da Juventude, ambos da UFMG, escreve para o Observatório Jovem comentando a síntese da avaliação nacional sobre o Programa Agente Jovem que foi objeto da reportagem “Agente Jovem não funciona, diz pesquisa” do jornal O Estado de São Paulo de 30/10/2007

Depois de comemorar o seu primeiro qüinqüênio o Programa Agente Jovem deve receber como positiva a iniciativa da sua avaliação realizada pelo Data-UFF. Como revelam os seus relatórios, ao articular abordagens quantitativas e qualitativas, há uma preocupação em aprofundar os dados coletados ouvindo os gestores, os profissionais envolvidos, as famílias e os jovens.

Temos presenciado recentemente, tanto no âmbito das universidades quanto dos governos, uma crescente preocupação em desenvolver pesquisas avaliativas dos programas sociais voltados aos jovens. Podemos dizer que esse fenômeno de certa forma era previsível. Tais pesquisas são os desdobramentos naturais da emergência e expansão de algumas iniciativas públicas de atendimento aos jovens que observamos mais timidamente a partir de meados dos anos 1990 e com mais força a partir dos anos 2000. A continuação de programas iniciados em outras gestões e uma maior preocupação com o seu aperfeiçoamento é sem dúvida uma atitude salutar tendo em vista a forma descontínua, improvisada e precária como tradicionalmente se constituem as políticas sociais no Brasil.

Seria importante analisar os dados da pesquisa realizada pela Universidade Federal Fluminense – FEC/Data UFF -  sobre o Programa Agente Jovem com maior atenção, procurando captar o que ela nos ensina e evitando as conclusões precipitadas. No afã de dar respostas aos dados os gestores podem tomar decisões que supostamente reformulam os programas avaliados, mas que não passam de uma mera reprodução de ações já realizadas e igualmente problemáticas. Outro aspecto a se levar em consideração é que a mera (re) formulação de ações não garante a sua plena realização, tendo em vista o seu caráter processual e o fato de que as políticas públicas constituem-se em um campo de disputa no interior do Estado por verbas, equipamentos, concepções, etc.

O Agente Jovem é um programa sócio-educativo para jovens pobres. Tem como objetivo a “inclusão social” dos “jovens em situação de risco social”, principalmente por meio da elevação da escolaridade dos seus beneficiários. O programa assume como eixo metodológico prioritário o desenvolvimento de ações que promovam o “protagonismo juvenil”.

Os termos “inclusão social”, “jovens em situação de risco social” e “protagonismo juvenil” são utilizados entre aspas em vista da falta de consenso em torno deles. Eles revelam um olhar sobre os futuros beneficiários do programa e uma escolha política em torno da melhor alternativa para os problemas sociais que afetam a esses jovens. Desta forma, tanto a condução das ações dirigidas a eles, como a reação provocada pelas suas avaliações, seja no interior dos governos e na sociedade civil (a mídia aí incluída), revelam um modo de olhar a juventude contemporânea e seus problemas que não é isenta.

A pesquisa do Data-UFF

Gostaria de comentar alguns pontos contidos nos relatórios da pesquisa e ressaltados na reportagem do jornal O Estado de São Paulo de 30/10/2007. Não vou ater-me aos problemas de gestão do programa (precariedade, formação dos educadores, acompanhamento de egressos, desarticulação com outras ações, etc.) que remetem a problemas históricos das políticas sociais no Brasil. Essas são questões importantes e devem ser consideradas, mas no curto espaço deste artigo prefiro enfatizar outros aspectos que dizem respeito aos seus propósitos centrais.

Um primeiro aspecto reforça o que temos verificado em outras pesquisas sobre programas sócio-educativos para jovens: há, em geral, uma avaliação positiva do programa que permite ter contato com outros jovens, participar de atividades de lazer e cultura e ampliar o acesso a informações. Isso demonstra a importância da ação do Estado na promoção de programas públicos como esse, uma vez que as desigualdades econômicas e sociais interferem fortemente no acesso à cultura e ao lazer. É também positiva a orientação do programa quanto a promover a participação, embora isso ocorra de forma muito diferente entre os seus vários núcleos.

Por outro lado, assim como vários outros programas sociais para a juventude, o Agente Jovem torna-se de alcance limitado tendo em vista o curto tempo em que o jovem permanece a ele vinculado. Alguns municípios estenderam esse período para até três anos, o que é positivo. No entanto, mesmo nesse caso, a vinculação é interrompida compulsoriamente assim que os jovens completam 18 anos, sendo um presente de aniversário às avessas.

Talvez por isso, a grande demanda dos ex-beneficiários tenha sido a criação de mecanismos de profissionalização e inserção no mercado de trabalho de forma que pudessem construir gradativamente a sua desvinculação do programa. Por outro lado, tal constatação pode nos levar a acreditar em falsas soluções para a questão do desemprego e do trabalho precário entre os jovens. O caso do baixo impacto do Programa Primeiro Emprego, revelado nos números divulgados pelo próprio Ministério do Trabalho, nos obriga a desconfiar desse tipo proposta. As políticas de combate ao desemprego juvenil parecem reféns de políticas de desenvolvimento que tenham como foco a geração de trabalho decente.

A pesquisa do Data-UFF revela que os participantes do Agente Jovem são mais ativos na preparação para o trabalho e na busca por emprego. No entanto, não há diferenças significativas em relação ao trabalho sem carteira assinada entre jovens que participaram do Agente Jovem e aqueles que não foram beneficiários do programa. Além disso, constata-se a presença de trabalho informal e bicos entre as atividades dos jovens. Devemos continuar insistindo com programas que favorecem as condições de oferta da força de trabalho juvenil sem que na ponta da demanda essas condições sejam alteradas? Vamos insistir em fazer falsas promessas aos jovens?

Proposta controversa entre educadores e gestores, a demanda pela introdução da formação profissional no Agente Jovem é fruto da dificuldade dos jovens no Brasil para construírem um percurso seguro e em condições adequadas de transição para a vida profissional. Não contamos com políticas que articulem a formação geral no Ensino Médio, a formação profissional específica e o encaminhamento ao mercado de trabalho. Depois de uma trajetória escolar atribulada nossos jovens concluem o Ensino Médio e se vêem à porta do mercado de trabalho com poucas alternativas, a maior parte ocupada em trabalhos precários. Esta realidade é fruto da persistência das desigualdades sociais e educacionais no Brasil e sem dúvida não será alterada por um programa social isoladamente.

Outro ponto que devemos considerar no relatório refere-se à relação dos pais com o programa. Segundo os dados foi recorrente entre eles a insatisfação com a baixa participação das famílias na condução do programa. Considero esse aspecto muito importante, tendo em vista a importância da família na produção de disposições e valores que estimulem o desempenho dos filhos na escola e também nos programas sociais. Esse dado pode ser uma das justificativas para o Ministério do Desenvolvimento Social anunciar a reformulação do Agente Jovem vinculando-o ao Programa Bolsa Família. Cabe-nos perguntar se essa mera vinculação garante efetivamente a participação dos pais.

O impacto quanto à escolaridade

Sem dúvida, uma das grandes dificuldades do programa refere-se à escolarização dos jovens. É necessário reconhecer que o impacto escolar para os jovens nem sempre é fácil de ser medido. Alguns jovens manifestam que no plano individual melhoraram a relação com a escola, o que se refletiu no desempenho escolar. Mas, em geral, as pesquisas conseguem captar impressões genéricas dos beneficiários, dos seus familiares e professores sobre a experiência escolar sem que fique muito clara qual a interferência efetiva do programa na melhoria do desempenho escolar.

Como relata a pesquisa do Data-UFF, os índices são mais favoráveis quanto a aspectos subjetivos como a importância de estudar. Por outro lado, como projeto de vida a continuidade dos estudos não se diferenciava para os jovens que participaram do programa em relação aos jovens não-beneficiários.
É significativa a distância entre o programa e as escolas dos jovens. A integração entre as ações é um problema antigo no campo das políticas sociais no Brasil. Assim como outras pesquisas já revelaram, não há uma interação efetiva entre a instituição escolar e os projetos sociais nos quais nossos jovens estão inseridos.

Por outro lado seria ilusório imaginar que, criando programas sociais que funcionam nos finais de semana ou em contra-turno escolar, a interação entre os dois ambientes aconteça. As escolas têm uma imensa dificuldade para acompanhar e interagir com os projetos sociais porque não encontram suporte nas políticas educacionais que possibilite isso. Além da precariedade quanto ao funcionamento e às condições de trabalho dos profissionais da educação, a organização pedagógica da escola não foi pensada para se articular com outros espaços e tempos da comunidade.

O sucesso das crianças e jovens na escola é fruto da combinação de vários elementos que variam do capital social e cultural dos pais à construção de um sentido pelos estudantes para a sua trajetória escolar. É significativo que os ex-beneficiários do Agente Jovem não se diferenciem em relação aos outros jovens quanto a não pretender continuar os estudos. Parece que o programa foi eficiente ao exigir dos beneficiários a freqüência escolar, mas parece-me que falhou quanto a interferir positivamente na própria relação dos jovens com seus percursos educativos.

Os novos ventos do Programa Agente Jovem

Está em discussão avançada no âmbito do MDS a reformulação do Agente Jovem que passará a se denominar ProJovem Adolescente. A grande mudança do programa parece ser a sua vinculação ao Programa Bolsa Família, que passa a ser subordinado aos CRAS (Centro de Referência da Assistência Social). Segundo o novo desenho o programa seria realizado em dois anos, com uma carga horária de 600h/ano. Entre os conteúdos propostos surge como novidade a “Formação Técnica Geral” com 240 horas de inclusão digital. Com a reformulação em estudo no MDS a bolsa, que é baixíssima (65 reais) e nunca foi reajustada, passaria a ser de 30 reais por jovem, limitado a um número máximo de dois jovens por família.
Além das possíveis tensões que estas medidas poderão gerar entre jovens, educadores e técnicos, me parece que essas reformulações não têm capacidade para responder aos principais impasses do programa. Sabemos que o modo como o Agente Jovem é implantado e  o seu desempenho variam muito de acordo com o município e com a entidade executora. Quanto à formação profissional, por exemplo, o próprio ProJovem enfrenta grandes dificuldades pois não encontra nos municípios uma estrutura adequada para ofertar uma formação profissional de qualidade.

Outra questão é se a transferência de renda feita diretamente aos pais ou responsáveis vinculados ao Programa Bolsa Família surtirá efeitos positivos. Para os jovens esse recurso é muito importante, pois permite ter acesso a alguns bens de consumo juvenil, favorece a sociabilidade e estimula o aprendizado da autonomia financeira. Seria aconselhável a sua transferência aos pais privando os jovens de decidirem livremente como usarão esse recurso? Para o Estado sem dúvida é positivo, pois favorece a utilização racional dos recursos e induz a um compromisso dos pais com os objetivos do programa. Mas para os jovens pode significar a ampliação do espaço da tutela, em detrimento do estímulo à capacidade de ação autônoma dos jovens como sujeitos de direitos.

***

Serviço do Observatório Jovem:

Acesse aqui a matéria do Jornal o Estado de São Paulo e as sínteses da avaliação nacional sobre o Programa Agente Jovem

Ocupação de uma reitoria: Tomada 1 – Juventude e Movimento Estudantil na novela da Globo

Foto da página da novela Duas Caras - Rede Globo“Eu acredito é na rapaziada
Que segue em frente e segura o rojão,
como é que não...”

A apropriação da música de Gonzaguinha não poderia ser mais indevida. Ao escrever a música, o autor pretendia elogiar e se colocar ao lado da juventude que luta, principalmente a organizada no movimento estudantil. Entretanto, a forma como a novela “Duas Caras”, de Aguinaldo Silva, que tem a música de Gonzaguinha como tema de abertura, vem tratando essa juventude não é nada elogiosa

Para contextualizar o que aconteceu nos episódios da semana de 5 a 9 de novembro, vejamos o resumo oferecido pelo próprio site da novela:

Invasão vira caso de polícia
Entoando gritos de guerra e segurando cartazes, os estudantes, comandados pelo aluno Rudolf, começam a engrossar a manifestação pela escolha do reitor por voto direto. Branca [personagem de Suzana Vieira, que assume o lugar de seu falecido marido como presidente do conselho de administração de uma universidade particular, a Universidade Pessoa de Moraes] reage com dureza e diz que os protestos não são legítimos. Os professores, principalmente Heriberto e Ignácio Guevara, fazem jogo duplo: ao mesmo tempo em que fingem estar ao lado dela, incitam os alunos. [...] Com tantos impasses, o protesto começa a ganhar grandes proporções. Os alunos e outras pessoas chamadas para agregar a multidão decidem invadir a reitoria. Reviram gavetas e armários, destroem livros, fazem uma verdadeira baderna.

A Globo vem, já não é de hoje, construindo o discurso de que movimento social trata-se de baderna, crime. O específico aqui é a forma como se retrata a juventude organizada no movimento estudantil.

Como que se dá isso? Como visto na sinopse, os alunos são incitados pelos professores Heriberto e Ignácio Guevara (personagem que remete à Lula e a Che). A construção dos personagens dos alunos, principalmente do personagem Rudolf remete a figuras absolutamente unidimensionais, de forma que o jovem líder do movimento se mostra incapaz de pensar, quase tudo que diz são bordões e frases feitas. Assim, não há um momento em que consiga reagir de forma apropriada a uma situação que se apresente. Dessa forma, a representação social que se pretende passar é que esses jovens de movimento estudantil são manipulados por professores esquerdistas mal-intencionados.

Além de tudo, os jovens são baderneiros, afirma a novela que mostra jovens estudantes como caso de polícia. Eles entoam “cantos de guerra”, rasgam livros, picham paredes, queimam pneus. A construção é feita de tal maneira que a chegada da polícia é considerada bem-vinda e, por mais que os estudantes se abram para o diálogo, a personagem Branca se recusa a fazê-lo, exigindo que a polícia retire aqueles que ela considera criminosos. Em dado momento, a personagem afirma: “Invasão de propriedade privada é crime! Não vou compactuar com isso, nem ser cúmplice de um crime em que a vítima sou eu. Não tem diálogo, meu irmão.” O recado é claro: por que ela, Branca, rica, adulta, haveria de ter de negociar com  jovens estudantes se pode mandar a polícia bater neles? Posteriormente, ela afirma, inclusive, que poderia ter negociado, mas precisava manter sua autoridade naquele momento. Ou seja, que mal há em alguns jovens apanharem se é para reforçar a autoridade estabelecida?

Quem conhece a realidade do movimento estudantil sabe que a imagem mostrada na novela não é correspondente ao que ocorre. Quando há ocupações, as lideranças orientam para se tomar cuidado com o patrimônio, principalmente porque têm ciência que a grande mídia sabe como pegar um caso isolado, mesmo que acidental, para alardear como se fosse o usual.

Após a desocupação, feita com violência pelo Batalhão de Choque da PM, os jovens encontram-se perfilados, cabeças baixas no corredor e ouvem a lição da pessoa mais velha (no caso, Branca), que vem lhes ensinar que não devem perder seu tempo com besteiras como aquela e sim estudando. Nesse momento, fica explícita a opressão etária, representada pela imposição da autoridade de Branca sobre os jovens, como que dizendo que seguir a seus colegas os levará a destinos ruins, enquanto ouvir a ela lhes dará o bom caminho.

Em dado momento, o autor grita sua orientação política através de sua personagem. Quando Branca vê os livros rasgados no chão, ele afirma: “eles rasgam livros! Se isso é ser de direita, então eu sou de direita!”. Em outra, um determinado professor chora pela destruição de sua pesquisa, numa tentativa de remeter à destruição de um laboratório de pesquisa sobre transgênicos da Aracruz Celulose pelo MST. Finalmente, quando os estudantes reunidos avaliando a ocupação, o personagem Rudolf afirma “às vezes é preciso recuar um passo para avançar dois, como diria o camarada Lênin”. Nisso, Aguinaldo, digo, Branca irrompe e diz: “Lênin não passa de uma múmia empoeirada!”

Analisando alguns comentários na comunidade “Duas Caras” no Orkut (http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=26182832), pode-se perceber que a Globo consegue, em algum nível, a construção da representação social desejada. No tópico “Aluno que provoco a rebelião dos alunos (Odeio)”, todas as opiniões (quatorze, no total) condenam a rebelião dos estudantes. Eis algumas delas (todos os comentários foram copiados ipsis literis, com as formas de linguagens comuns da internet e erros em relação ao português formal):

· “rebelde sem causa.”

· “retardadisse mental.. isso eh eles aprovaram q saum 100% débis  !”

·  “eu achei desnecessario aquela rebelião toda só por que os alunos não vão votar pra eleger um reitor, isso foi um exagero”

 “A rebelião foi ridícula msm e pela 1º vez, tenho q admitir: A Branca arrasou!!!!!!!!!! passou por cima daqueles bardeneiros que no fim de tudo, eh bem capaz de terem q pagar mais caro pela unirvesidade e pelos livros q eles msms destruíram. Aff, eh com atitudes assim q a educação no Brasil vai pro fundo do barril.”

Realmente, não é de se estranhar que a Globo queira construir esta dada representação social. Afinal, trata-se da empresa que tem o histórico que tem. Ela sabe do que é capaz a juventude, principalmente quando organizada. Construir uma opinião de que jovem organizado é baderneiro e está obedecendo algum adulto com outras intenções, em poucas palavras, lhe é positivo. E o faz com absoluta questão de dar um tapa na cara, usando a música que tantas vezes os jovens utilizamos como hino, expropriando-o. Cabe aceitar o desafio e recuperar o que é da juventude: hino e verdade.

“Eu ponho fé é na fé da moçada
Que não foge da fera e enfrenta o leão...”

***

As idéias e opiniões expressas nos artigos são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões do Conselho Editorial do Observatório Jovem do Rio de Janeiro/UFF

Serviço do Observatório Jovem:

Assista os trechos da novela sobre o tema do artigo: 

Branca encara os alunos
 
http://video.globo.com/Videos/Player/Entretenimento/0,,GIM752107-7822-BRANCA+ENCARA+OS+ALUNOS,00.html
 
Estudantes invadem reitoria
http://video.globo.com/Videos/Player/Entretenimento/0,,GIM752118-7822-ESTUDANTES+INVADEM+REITORIA,00.html

Tráfico de seres humanos: jovens são vítimas no país

Uma das vertentes mais trágicas dos crimes ligados ao tráfico de seres humanos envolve os jovens na situação de vítimas. Esse problema, que em sua maior parte se inicia com questões sociais e de educação, vem sendo alvo de especial preocupação por parte de todos os envolvidos no combate e prevenção ao tráfico de pessoas

A atenção com as vítimas tem que ser ainda mais prioritária por se tratar de uma população especialmente vulnerável e, em muitos casos, por outras questões envolvendo a mídia, que reveste de glamour certos aspectos ligados à prostituição.

Os trabalhos desenvolvidos pelo Comitê Paulista de Combate e Enfrentamento ao Tráfico de Seres Humanos e a experiência no Balcão de Atendimento da Comissão Municipal de Direitos Humanos, permitem relatar que os problemas muitas vezes estão ligados à dificuldade que a sociedade tem em perceber o problema e mais em reconhecer a existência do tráfico de pessoas.

Por um lado, temos a família que não percebe mudanças de comportamento do jovem, como, por exemplo, os jovens de classe média passam a consumir certos itens que não possuem condições para compra. Isso tanto em grandes centros como em pequenos municípios.

Precisamos atentar para o fato de que o aliciamento ocorre em todas as classes sociais,  principalmente quando os jovens vivem em situações de vulnerabilidade. Não podemos deixar que a população continue acreditando que esse fato ocorre somente com a família alheia, essa visão faz com que os jovens continuem vulneráveis. O aliciamento para o fim de prostituição é crime e só conseguiremos combatê-lo com base na informação/educação.

De outro lado, temos os equipamentos públicos (ferramentas) – a escola e a polícia –, que muitas vezes e por uma série de fatores não estão atentos especificamente ao tema. Especialistas do Brasil e de países que têm atuado no combate a esses crimes apontam que é dever de toda a sociedade estar alerta e, por exemplo, a escola, que tem papel fundamental na prevenção desse crime.

Embora já exista uma sobrecarga dos professores, estes devem ir além de procurar observar  mudanças no comportamento de seus alunos, informando-os e educando-os no sentido de que não se tornem vítimas da rede do tráfico de seres humanos.

No caso da polícia, entendemos que os agentes devem passar por treinamentos específicos para poder detectar práticas de aliciamentos de jovens em situação de risco (nas cidades próximos de locais de grande circulação, como metrôs em regiões centrais, boates, rodovias que atravessam grandes centros, pontos e cidades turísticas, por exemplo).

Por se tratar de matéria federal, ocorre que os municípios, em especial os pequenos, não se encontram suficientemente informados do problema e, principalmente, das formas de prevenção e enfrentamento.

Um dos mais graves complicadores é o enfoque dado à prostituição pela indústria do entretenimento e pelo incentivo ao consumismo que, comprovadamente, afeta a percepção do jovem de si mesmo e do mundo ao seu redor. Deixa-se de lado qualquer reflexão e postura crítica e se incentiva a prática de venda do próprio corpo para auferir ganhos “fáceis” e obter status financeiro e padrão de vida elevado.

No caso de jovens com preferências sexuais diferenciadas da maioria (transexuais, por exemplo), a família atua como o primeiro complicador, pela não aceitação da diferença, agravado pelo preconceito social, que pode levar à prostituição e à sedução de aliciadores que prometem inclusive ajudá-los na mudança de sexo, com conseqüências devastadoras para a saúde física e mental do jovem. Ressaltamos que os jovens aliciados hoje são os futuros aliciadores.

Por fim, lembramos que, uma vez aliciadas e exploradas, as vítimas (tanto do gênero masculino como feminino, com também gays e transexuais) encontram grande dificuldade em denunciar os exploradores, na maioria das vezes por se sentirem ameaçados, por medo ou vergonha.

Seguindo as diretrizes da Política Nacional de Prevenção e Enfrentamento do Tráfico de Seres Humanos, entendemos que devemos fortalecer o tripé onde estão fundamentadas as ações: a prevenção, a punição dos criminosos com celeridade e justiça e, em especial, a proteção à vítima. Trata-se de uma questão prioritária para o resguardo dos direitos humanos e que requer a conscientização e empenho de toda a sociedade.

*Presidente da Comissão Municipal de Direitos Humanos de São Paulo

Publicado originalmente em 12/11/2007 no endereço http://www.comunidadesegura.org/?q=pt/node/37069

O Biopoder

A descriminalização do aborto, uma bandeira histórica do movimento feminista nacional, encontrou nova e perversa tradução de política pública na voz do governador do estado do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral. O governador defende a legalização do aborto como forma de prevenção e contenção da violência, por considerar que a fertilidade das mulheres das favelas cariocas as tornam “fábrica de produzir marginais”

Uma reivindicação histórica dos movimentos de mulheres de efetivação dos direitos reprodutivos das mulheres e de reconhecimento do aborto como questão de saúde pública sobre a qual o Estado não pode se omitir é pervertida em proposta de política pública eivada de ideologia eugenista destinada à interrupção do nascimento de seres humanos considerados como potenciais marginais. No lugar do respeito ao direito das mulheres de decidir sobre a própria concepção, coloca-se como diferença radical de perspectiva a indução ao aborto, pelo Estado, como “linha auxiliar” no combate à violência.

São teses que aparecem com recorrência no debate público e que, embora com nuances, mantêm o mesmo sentido. Uma das mais célebres foi dada anteriormente no governo de Paulo Maluf, em São Paulo, no qual o GAP (Grupo de Assessoria e Participação do Governo do Estado) elaborou o documento “Sobre o Censo Demográfico de 1980 e suas curiosidades e preocupações”. Nele, é apresentada a proposta de esterilização massiva de mulheres pretas e pardas com base nos seguintes argumentos: “De 1970 a 1980, a população branca reduziu-se de 61% para 55% e a população parda aumentou de 29% para 38%. Enquanto a população branca praticamente já se conscientizou da necessidade de se controlar a natalidade (...), a população negra e parda eleva seus índices de expansão, em 10 anos, de 28% para 38%. Assim, teremos 65 milhões de brancos, 45 milhões de pardos e 1 milhão de negros. A se manter essa tendência, no ano 2000 a população parda e negra será da ordem de 60%, por conseguinte muito superior à branca; e, eleitoralmente, poderá mandar na política brasileira e dominar todos os postos-chaves — a não ser que façamos como em Washington, capital dos Estados Unidos, onde, devido ao fato de a população negra ser da ordem de 63%, não há eleições”.

O documento se tornou público graças a denúncia feita na Assembléia Legislativa de São Paulo pelo então deputado Luis Carlos Santos, do PMDB-SP, em 5.8.1982. Trouxe à luz essa concepção de instrumentalização da esterilização como política de controle de natalidade dos negros denunciada internacionalmente pelo Relator Especial sobre Racismo da ONU, após sua visita ao Brasil em 1995.Se o governador Sérgio Cabral ocupou-se em explicitar que as mulheres das favelas devem ser objeto de uma política eficaz de controle da natalidade via facilitação do aborto pelo Estado, o seu secretário de Segurança Pública, José Mariano Beltrame, tratou de estabelecer a diferença do valor de cada vida humana no Rio de Janeiro, o que provavelmente estabelece nessa lógica nefasta quem pode viver e quem deve morrer, ou nem mesmo chegar a viver. Em comentário sobre o fato de que os traficantes das favelas das zonas Oeste e Norte do Rio estariam se deslocando para as favelas da Zona Sul como reação às ações que vêm sendo realizadas pela polícia naquelas áreas, o secretário vê, nesse deslocamento dos traficantes, dificuldade adicional para o seu combate. Segundo ele, “é difícil a polícia ali entrar, porque um tiro em Copacabana é uma coisa. Um tiro na [favela da] Coréia, no complexo do Alemão [nas zonas Oeste e Norte, respectivamente], é outra (...). Uma ação policial em Copacabana tem uma repercussão muito grande, porque as favelas e os comandos estão a metros das janelas da classe média”.

Ora, se nas zonas Oeste e Norte, as favelas e os “comandos” estão em janelas frentes umas às outras, ou lado a lado, isso pode significar que são partes integrantes de um mesmo todo e o favelado civil e o traficante seriam indistinguíveis para efeito da repressão e violência policial. Tanto bandidos como policias sabem o que o civil favelado — nem policial nem traficante — vale: nada! Pode ser abatido como mosca por ambos os lados. Ir para a Zona Sul como estratégia de sobrevivência ou redução da letalidade dos confrontos entre bandidos e policiais é uma prerrogativa que apenas o bandido tem. O favelado civil, ao contrário, não tem para onde ir, está condenado a ser o “efeito colateral” dessa guerra insana.

Michel Foucault demonstrou que o direito de “fazer viver e deixar morrer” é uma das dimensões do poder de soberania dos Estados modernos e que esse direito de vida e de morte “só se exerce de uma forma desequilibrada, e sempre do lado da morte”. É esse poder que permite à sociedade livrar-se de seus seres indesejáveis. A essa estratégia Michel Foucault nomeou de biopoder, que permite ao Estado decidir quem deve morrer e quem deve viver. E o racismo seria, de acordo com Foucault, um elemento essencial para se fazer essa escolha. É essa política de extermínio que cada vez mais se instala no Brasil, pelo Estado, com a conivência de grande parte da sociedade.

foto de Alan Rodrigues, publicada no endereço http://www.terra.com.br/istoe/1668/educacao/1668_passo_adiante.htm

Jovens mulheres trabalhadoras pela legalização do aborto

28 de Setembro é o dia de Luta pela Legalização do Aborto na América Latina e Caribe. Esta data marca a luta de uma das bandeiras históricas do Movimento Feminista, a legalização do Aborto

O dia 28 de setembro foi marcado por atividades em diversos estados no Brasil, aqui no Rio de Janeiro foi lançado o Comitê Estadual pela Legalização do Aborto, composto por diversos movimentos e organizações feministas, de mulheres e partidários.

O Lançamento do Comitê aconteceu com um ato no Largo da Carioca, onde estávamos todas distribuindo materiais informativos, estatísticas sobre o número abortamentos clandestinos que são realizados em  nosso país. E, ainda uma enquete sobre o tema com as(os) transeuntes, encenação teatral e a batucada feminista da Marcha Mundial das Mulheres.

O Núcleo de Mulheres Jovens da Casa da Mulher Trabalhadora participou da manifestação e realizou com as jovens que o integram, um encontro para discutir as situações de aborto vivenciadas pelas jovens no Rio de Janeiro.

Este Núcleo realiza ações com mulheres jovens em Campo Grande (Zona Oeste) e São João de Meriti (Baixada Fluminense) entende que a ilegalidade do aborto não inibe a sua prática e coloca as mulheres, dentre elas muitas jovens, em situações de risco de vida.

Os dados apresentados através do Ministério da Saúde, mostram que apesar da legislação brasileira, só permitir a  realização do aborto em gravidez decorrente de estupro e risco de vida para a mãe, a prática de aborto, em condições ilegais e inseguras, é a quinta maior causa de internações entre as jovens e adolescentes no Brasil.  Estima-se que 1 milhão de abortos  clandestinos sejam realizados por ano em nosso país, destes cerca de 400.000 são realizados por mulheres jovens. 

Estes números demonstram que é necessário abrir a discussão sobre o tema e pensarmos sobre o que leva um número tão expressivo de jovens brasileiras a realizarem aborto e em que condições.

Apesar dos inúmeros avanços das mulheres em relação a sua liberdade sexual, a sexualidade continua sendo um tabu em nossa sociedade, principalmente quando o tema deve ser tratado com adolescentes e jovens do sexo feminino. Em casa ou na escola o tema é pouco comentado ou fingi-se que não faz parte da educação, ignorando o fato de que as (os) jovens estão iniciando a vida sexual cada vez mais cedo. Contrapondo-se a este silêncio a respeito do sexo, a mídia e a publicidade apelam cada vez mais para a erotização do corpo, principalmente das mulheres. O que acaba por acarretar um baixo nível de informação sobre o uso CORRETO dos métodos contraceptivos e da camisinha  entre as(os) jovens.

Estes fatores somados a outros, como por exemplo, a idéia de que “comigo não acontece” e as armadilhas do machismo, que ainda colocam as mulheres em situação de desigualdade na hora de negociar o uso da camisinha, engrossam as estatísticas de gravidez não planejada e muitas vezes indesejada pelas jovens. Dado que contraria a diminuição da taxa de fecundidade que vem ocorrendo entre as mulheres brasileiras de outras idades. 

E ao se verem grávidas as adolescentes  e jovens se deparam com vários questionamentos .... Como será a reação das mães e pais? O pai da criança vai assumir? Como continuar estudando? Como sustentar a mim e a uma criança? Como conseguirei um emprego? Eu sei cuidar de uma criança? E, os meus planos?

Seja por medo de contar a mãe e o pai  e/ou  por abandono do parceiro, muitas vezes as jovens acabam ficando sozinhas na hora de escolher se levarão ou não adiante a gravidez,  tornando a opção por um aborto ainda mais perigosa, pois além de ilegal, as jovens precisarão fazê-lo escondido e provavelmente com menos recursos. Levando as jovens, principalmente das classes mais baixas, a realizarem a interrupção da gravidez através da ingestão de chás e remédios, inserindo remédios na vagina, perfurando o útero, dentre outras formas. Resultando na passagem de milhares mulheres de jovens, em sua maioria negras e pobres, todos os anos pelo SUS com complicações decorrentes de abortamento cladestino, como hemorragias, perfurações uterinas e outras complicações. ( Dados DATASUS/Ministério da Saúde)

Este quadro poderia ser bem diferente se o aborto fosse legalizado e oferecido gratuitamente na rede publica de saúde, a exemplo de outros países, como Alemanha e Cuba, por exemplo,  onde não é crime, o aborto é garantido pelo Estado de forma segura e as mulheres não ficam com seqüelas ou perdem suas vidas.

Não defendemos o aborto como um método contraceptivo, queremos que o Estado Brasileiro, garanta informações e acesso aos métodos contraceptivos e camisinha gratuitamente, atendimento ginecológico que atenda as especificidades das mulheres nas diferentes etapas da vida, acompanhamento e atendimento quando optarmos pela realização do aborto e ao decidirmos ter filhas(os) atendimento de qualidade no pré-natal e parto seguros.

Nós mulheres jovens defendemos a legalização do aborto para que nós, as mulheres, possamos decidir se, e quando, queremos ser mães, sem criminalização, julgamentos moralistas e sem precisarmos arriscar nossas vidas.  Queremos ter direito ao nosso corpo, queremos a legalização do aborto!

 

Núcleo de Mulheres Jovens da CAMTRA
Casa da Mulher Trabalhadora
www.camtra.org.br/
mulheresjovens@camtra.org.br

Divulgar conteúdo