É sobre a realidade das bolivianas que trabalham como empregadas domésticas que fala ao Observatório Jovem a pesquisadora do Programa de Investigação Estratégica da Bolívia (PIEB) Yara Katrina Peñaranda
Na Bolívia, jovens mulheres camponesas migram para a cidade e têm no trabalho doméstico a forma de se sustentarem e o sonho de se ascenderem socialmente. No campo, lidam com a discriminação de gênero. Pela mentalidade camponesa, apenas os homens precisam estudar para aprenderem a comercializar os produtos da agricultura.
Yara mostra como existe diferenciação entre as trabalhadoras domésticas migrantes e as originárias da cidade pertencentes a classes pobres. A pesquisadora comenta também sobre o governo de Evo Morales e as polêmicas acerca das políticas implementadas pelo presidente indígena.
Yara Katrina Peñoranda é psicóloga, professora da Universidad de Aquino e da Universidad del Valle. Veio ao Brasil a convite do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE) em novembro de 2006, quando concedeu entrevista ao Observatório Jovem.
Observatório Jovem (OJ) - O que é o PIEB?
Yara Peñaranda (YP) - É uma fundação. O objetivo é realizar pesquisas estratégicas e produzir base para a realização de ações para a solução de problemas em nível social. As pesquisas são feitas por pesquisadores juniores e seniores e todas são publicadas.
OJ - Você participou pelo PIEB da pesquisa “Representaciones sociales de la trabajadora del hogar asalariada en la ciudad de Sucre” sobre as trabalhadoras domésticas na Bolívia...
YP - Pesquisamos as condições das trabalhadoras domésticas mulheres porque a maioria são mulheres, tanto de pollera, quanto de vestido, e também as empregadoras mulheres, porque a trabalhadora doméstica se relaciona mais com a patroa e são elas que administram a casa, não os homens. Essas empregadoras pertencem a classes econômicas médias porque apenas a partir desse nível econômico se tem possibilidades de contratar os serviços da trabalhadora doméstica.
OJ - Qual a diferença entre as mulheres de Pollera e de Vestido?
YP - As trabalhadoras domésticas não apenas se identificam pelo gênero, pelo fato de serem mulheres, elas também têm uma raiz étnica. A maioria é de jovens, migrantes do campo e com baixos níveis de instruções. Quando falamos em pollera nos referimos a uma vestimenta típica das pessoas do campo. Quando vão para a cidade essas pessoas continuam usando essa vestimenta, que data do período colonial. No princípio era uma vestimenta espanhola, mas posteriormente começou a ser usada pela população indígena. Essas mulheres chegam à cidade e não conhecem os modos urbanos de vida e começam a trabalhar como empregadas domésticas porque é a única opção de trabalho que têm. Assim, elas estão mais sujeitas à exploração por parte das patroas. As trabalhadoras de vestido ou são aquelas que sempre viveram na cidade, mas têm baixos recursos econômicos, ou são migrantes do campo que mudaram a vestimenta especialmente devido à influência urbana. Há duas diferenças entre esses grupos, a primeira diferença é que as trabalhadoras domésticas de vestido tendem a menosprezar as trabalhadoras domésticas de pollera. As primeiras têm níveis de instrução mais altos e vêem as trabalhadoras de pollera como mais submissas e mais ingênuas.
OJ - Os dois tipos de trabalhadoras domésticas vivem na casa da patroa?
YP - Existem os dois tipos de trabalhos, o que chamamos de cama adentro, que é quando a empregada vive na casa da patroa, e cama afuera, quando a trabalhadora termina o expediente às 18h. Geralmente as trabalhadoras que vem do campo não tem onde viver, então, necessitam de um trabalho que também lhes garanta um teto.
OJ - Você disse que as trabalhadoras de vestido têm um grau maior de instrução. Qual o nível de escolaridade dessas mulheres?
YP - A pesquisa mostrou que a média de estudos delas fica entre a 3ª e a 5ª séries primárias. Uma das razões que fazem as jovens migrarem do campo para a cidade é o estudo. No campo, as taxas de analfabetismo são muito mais altas e a escolaridade das mulheres é menor do que a dos homens devido à discriminação de gênero. Os homens são incentivados a estudar porque, como ajudam no cultivo da terra, precisam aprender a comercializar os produtos. Já para as mulheres, não há sentido em estudarem, segundo a mentalidade camponesa; assim elas não estudam ou apresentam taxas de abandono muito mais altas que os homens.
OJ - Na cidade, essa diferenciação entre homens e mulheres acerca da necessidade do estudo é menor?
YP - Sim. As oportunidades são mais eqüitativas entre homens e mulheres em comparação com as zonas rurais.
OJ - Essa migração das jovens do campo para a cidade é definitivo ou muitas vivem entre a casa onde trabalham na cidade e a casa dos pais?
YP - No grupo das trabalhadoras domésticas essa migração tende a ser mais definitiva. Na Bolívia há dois tipos de migração, total e parcial. A migração parcial se dá quando os jovens geralmente migram nos três meses que não há colheita, porque depende dos fatores climáticos. As jovens, em geral, não se dedicam tanto à agricultura como os homens, então a tendência é de uma migração definitiva. Elas migram para a cidade com expectativas de trabalho e de melhorar sua qualidade de vida e, de certa maneira, também conseguirem uma maior ascensão social. O primeiro trabalho é o de empregada doméstica assalariada e, posteriormente, suas expectativas são de passarem a cozinheira, de cozinheira a lavadeira e de lavadeira a estudarem e passarem a professoras ou enfermeiras. Mais ou menos é essa a trajetória.
OJ - Nessa pesquisa, vocês citam o desconhecimento das empregadas domésticas sobre a lei 2.450, que lhes garante direitos. A lei, então, não é cumprida?
YP - Não. O estudo demonstrou que 84% das trabalhadoras domésticas não conhecem a lei e 95% dos empregadores também não. É claro que o não cumprimento da lei não é culpa somente do desconhecimento por parte da população em geral, mas da representação que os empregadores têm das trabalhadoras domésticas e da relação que une os dois setores. Essa relação reflete a essência da estrutura social boliviana, então, é mais que tudo o pensamento social discriminatório que leva a uma resistência à lei, e isso também explica 12 anos de luta para que se aprove essa lei. Há mais de três anos de sua aprovação continua sendo descumprida. Não há força social suficiente para pressionar pelo cumprimento da lei.
OJ - Há sindicatos das trabalhadoras domésticas assalariadas?
YP - Sim. Existe a Federação das Trabalhadoras Domésticas Assalariadas, com sede em La Paz, que tem três executivas e existem também quinze sindicatos nos nove departamentos da Bolívia.
OJ - Como é a participação das trabalhadoras assalariadas jovens nos sindicatos?
YP - A forma como os sindicatos atraem as trabalhadoras é por meio de cursos de capacitação – cuidado de crianças, computação, cozinha nacional e internacional.. A maioria das afiliadas são jovens porque também a maioria das trabalhadoras domésticas estão com idade entre 15 e 35 anos.
OJ - Quantas são as trabalhadoras domésticas assalariadas na Bolívia?
YP - Pelos dados de 2002, do último censo de população e domicílios, havia 114 mil trabalhadoras domésticas. Considerando a economia do país, é uma porcentagem muito alta de gente que conta com uma trabalhadora doméstica.
OJ - Ao final da pesquisa, vocês sugerem algumas ações para que a lei 2.450 seja cumprida. Essas ações estão em curso?
YP - Não. Nós levantamos propostas para políticas públicas. Fizemos encontros com instituições envolvidas na temática de trabalho doméstico ou gênero e as executivas da federação e os sindicatos locais das trabalhadoras domésticas para tentar incentivar acordos e também comprometer instituições com a implementação de políticas públicas, como o Ministério da Educação, por exemplo. Depois desses encontros, foram firmados convênios, no entanto, as políticas públicas não estão sendo colocadas em prática como deveria. Não é que não haja dinheiro para implementar as políticas, o problema é que os sindicatos não estão suficientemente organizados para fazerem um acompanhamento rigoroso do cumprimento da lei.
OJ - Há algum tipo de política a nível nacional no combate à opressão de gênero e étnica?
YP - Sobre a discriminação de gênero específica ou étnica não há nenhuma lei. O que existem são regulamentações, por exemplo, a lei contra a violência familiar – geralmente a mulher é a vítima. Existe também um projeto de lei contra a violência política contra as mulheres. Existem leis que de certa maneira tocam no tema de gênero e discriminação. Mas uma lei específica que regule uma discriminação étnica não existe. Sem dúvida, a presidência de Evo Morales, que tem significado uma marca na história da América Latina, está criando um certo encontro entre classes e um certo questionamento de ordem. A Bolívia, é muito marcada a discriminação social e étnica. É algo que se considerava natural, tanto pela classe oprimida, quanto pela classe dominante. A posse de Evo Morales, que é um representante indígena, fez mudar essa ordem estabelecida, é uma ordem que perpetuava os modelos de subordinação. Então, a classe dominante está perdendo força e a classe oprimida está ganhando mais força. E o medo da classe dominante é de que a situação se reverta. O choque cultural está mais forte nesse momento pela conjuntura que estamos vivendo.
OJ - Você já mencionou as iniciativas existentes que, de certa maneira, atuam contra a opressão da mulher, não há outras políticas do governo Evo Morales nesse sentido?
YP - Não. A não ser esse projeto de lei contra a violência política.
OJ - Haverá?
YP - No momento, o governo de Evo Morales está se dedicando mais a temas econômicos do que sociais. Está descuidando um pouco da parte social para centrar-se mais na parte econômica. No nível social está havendo uma reforma educativa, que tem o objetivo de conseguir uma educação mais próxima das necessidades indígenas, porque a educação era mais ocidentalizada. O que se quer resgatar é o sistema andino que está sendo perdido. A reforma educacional está andando um pouco por esse lado. Por outro lado, o que quer o governo Evo é fiscalizar toda a educação, quer que não haja colégios e universidades particulares, isso está causando muita controvérsia no país. Esse é um dos conflitos. Por exemplo, a matéria de religião, no sistema andino não existe Deus do ponto de vista católico. Segundo a constituição do Estado, é obrigatório para todas as entidades educativas, tanto públicas quanto particulares, oferecerem a matéria de religião. E nesta reforma educativa, se está acabando com essa matéria. Então, a classe urbana dominante tem criado muita resistência e a Igreja também. Segundo a constituição política do Estado, a religião oficial é a católica, isso está causando muita controvérsia.
OJ - Em nível geral, como está a aprovação ao governo Evo Morales?
YP - Evo Morales ganhou com 51% dos votos, que é algo único na história do país e da democracia jovem que temos. Levando em conta também que 70% aproximadamente da população boliviana é indígena, Evo tem maior apoio desse setor. Sem dúvida, na classe média há um pouco mais de oposição, eles usam padrões de avaliação diferentes dos que usariam com qualquer outro presidente. Ficam na expectativa de ver o que está fazendo e onde irá se equivocar, precisamente devido à sua raiz étnica. Uma conversa muito comum na Bolívia é que o presidente não sabe falar porque sua língua materna é Aimará. Tivemos um presidente anterior, Gonzalo Sánchez de Lozada, que também não sabia, falava inglês, mas nunca foi questionado. Ao contrário, Evo Morales é muito mais questionado. Qualquer reforma ou mudança causa muito mais controvérsia, porque se põe à prova tudo o que ele representa por suas origens étnicas. Então, há maior resistência da classe média. Há também que se entender os receios desta classe média que se constitui como força importante do país. Comentários gerais são de que “o presidente é mais presidente dos indígenas e não é nosso presidente”. Então, está havendo um fenômeno social muito interessante que não está sendo abordado e seria muito importante fosse.