O Observatório Jovem entrevistou Gaudêncio Frigotto, pesquisador das relações entre trabalho e formação humana e políticas públicas em educação profissional, técnica e tecnológica. Gaudêncio é professor do Programa Interdisciplinar de Pós-graduação em Políticas Públicas e Formação Humana (UERJ) e professor titular colaborador do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFF
Observatório Jovem (OJ): Recente estudo coordenado pelo economista e presidente do Ipea, Márcio Pochmann, mostra que existem 424.083 trabalhadores disponíveis no comércio para 430.833 vagas existentes, o que dá uma sobra de 6.750 postos. Na indústria, o número de trabalhadores disponíveis soma 329.035, para 445.628 postos, o que representa um déficit de 116.594 trabalhadores. Segundo Pochmann, é paradoxal que faltem trabalhadores qualificados em um quadro de excedente de mão-de-obra. As análises decorrentes dos dados apontam, então, para a necessidade de se repensar a política de emprego no Brasil, isso incluindo o investimento na qualificação de novos trabalhadores através do ensino técnico.
(fonte: O GLOBO - RJ - 8/11 - Só 18% dos que buscam emprego têm qualificação).
O aumento da qualificação profissional dos jovens trabalhadores resolveria o problema? Não faltariam vagas, caso houvesse uma qualificação em grande escala? O que é verdade e o que é mito neste debate?
Gaudêncio Frigotto: No atual debate sobre esta questão estamos diante de uma aparente contradição. Por um lado faltam jovens qualificados como mostram os dados acima, mas, por outro, como evidencia em entrevista recente o mesmo Márcio Pochmann, o Brasil perde anualmente cerca de 160 mil trabalhadores, a maioria de jovens que migram para países dos centros hegemônicos do capitalismo. Estes jovens são os melhores qualificados. Na expressão de Pochmann trata-se do biscoito fino no olho gordo do mundo. A explicação desta aparente contradição ou deste paradoxo não é alcançada pelo pensamento liberal de viés linear, fragmentado e funcionalista. Somente uma análise histórica, que nos é dada por autores como Caio Prado Junior, Florestan Fernandes, Francisco de Oliveira, Leda Paulani, entre outros, permite entender que isto resulta do tipo de projeto societário pelo qual burguesia brasileira optou. Um projeto de desenvolvimento desigual e combinado onde, como assinala Francisco de Oliveira, o analfabetismo, a pouca e fraca escolaridade, a lata informalidade do mercado de trabalho, etc, não são entraves a esse tipo de opção, mas a sua condição de ser. Uma sociedade que produz a desigualdade e se alimenta dela.
As reformas neoliberais da década de 1990 acabaram por radicalizar esta opção assumindo de forma ainda mais enfática as mazelas apontadas por Caio Prado: o mimetismo ou cópia, o endividamento externo e a assimetria predatória e absurda entre os ganhos do capital e dos trabalhadores. É deste processo que resulta, como analisa Leda Paulani, a reiteração de um projeto societário rentista e financista e que, na divisão internacional do trabalho, afirma a opção dominante pelo trabalho simples e de baixo valor agregado.
A sobra é dos melhores qualificados que, tanto por razões de preconceito com o trabalho técnico, sobretudo da "classe média", resultante do estigma escravocrata, quanto pela remuneração, preferem migrar para países onde remuneram o trabalho simples igual ou mais que o trabalho complexo aqui no Brasil. Aos jovens filhos de trabalhadores historicamente lhes é negada escolaridade básica em quantidade e qualidade. Com efeito, apenas 46% dos jovens têm acesso na idade normal ao ensino médio e destes 60% fazem em horário noturno de forma precária. Por outro lado, o Sistema S, que ganha compulsoriamente do fundo público cerca de 5 bilhões de reais ao ano, a partir de meados da década de 1980, de forma aberta e em certo sentido cínica, optaram por se transformar em unidades de negócio vendendo cursos que a maioria dos jovens não podem pagar.
Quem optou e produziu o apagão educacional e de qualificação foi a burguesia brasileira e não os jovens da classe trabalhadora e seus pais. A reclamação da falta de escolaridade e de qualificação dos empresários, políticos e intelectuais da classe dominante brasileira é profundamente cínica.
OJ: "Profissionalização de alunos em nível médio" ou "Direito à qualificação técnico-profissional de jovens trabalhadores"? Qual o real destino do ensino técnico? Pensar de uma maneira ou de outra faz diferença?
Gaudêncio: Sem educação básica, isto é, aquela que fornece os fundamentos para entender a vida social, cultural política e, ao mesmo tempo, a física, a química, a matemática, a biologia, etc, não se tem profissionalização de qualidade. Tem-se adestramento. E, também, não se tem cidadania real. Tanto a educação básica, quanto, integrada a esta, a educação profissional são um direito social e subjetivo e uma necessidade para acompanhar e analisar as mudanças que os próprios seres humanos introduzem nos processos produtivos e na vida social, cultural e política.
Como assinalei acima, a burguesia brasileira historicamente negou a escolaridade básica e, como conseqüência, a formação profissional efetiva à maioria dos jovens e adultos trabalhadores. Além disso, sempre lutou por uma educação unidimensional - a que serve ao mercado e ao capital. Uma educação ou adestramento, polivalente, cujo objetivo é formar trabalhadores, como lembra Carlos Paris, que façam bem feito o que se lhes manda fazer e que pensem que a eles não compete discutir política, cultura arte, etc.
Para os trabalhadores e educadores que atuam nos deferentes espaços da sociedade e na escola e que têm uma visão crítica às relações sociais capitalista compete lutar, no plano teórico e da prática, por uma educação que desenvolva todas as dimensões do ser humana. A isso denominamos uma educação omnilateral ou politécnica. Por isso, pensar de uma maneira ou de outra faz uma diferença radical. Ou seja, de reproduzir e legitimar a exploração e alienação ou de combate-la e, de dentro desta sociedade, buscar superá-las.
OJ: Muitos jovens que se encontram no ensino técnico associam as atividades acadêmicas do curso com um trabalho remunerado. As razões para isso estão relacionadas à busca do aumento de renda familiar, assim como de autonomia financeira e maior liberdade para o jovem. Essa aproximação dos estudos com o mundo do trabalho traz que conseqüências? É saudável ou proveitoso para o jovem trabalhar e estudar?
Como sinaliza a questão, estes jovens buscam precocemente inserir-se no mercado de trabalho por que necessitam. E necessitam não só economicamente, mas também por razões culturais e psico-sociais. Mas isso representa uma dupla violência e mutilação. Primeiro porque acabam fazendo uma educação básica truncada e de baixa qualidade. Segundo porque são explorados no mercado de trabalho. Seria mais justo e econômico para a sociedade, como aponta uma vez mais Márcio Pocmann, dar a esses jovens uma renda mínima em forma de bolsa. Justo porque a educação básica plena é constitucionalmente garantida e com efeitos positivos duplos na economia. Empregaria perto de seis milhões de adultos no lugar destes jovens e estes, ao se integrarem ao mercado de trabalho responderiam às exigências técnicas do sistema produtivo. Mais que isso, se integrariam como cidadãos com bases para discutir o destino da sociedade.
Mesmo na negatividade desta inclusão precoce, todavia, estes jovens têm vantagens em relação aos jovens que crescem, na expressão de Antônio Gramsci, como mamíferos de luxo. A luta, entretanto, é na direção de uma sociedade que onde o vínculo com o trabalho se dê na perspectiva do trabalho como principio educativo e não pelo trabalho alienado. Vale dizer também que permitir que toda a criança e jovem possam socializar-se é um dever da sociedade, assim como o direito ao trabalho. A sociedade de classes mutila e lesa, de forma diversa, a uns e a outros. Aos filhos dos trabalhadores pela negação a escolaridade integral e pela exploração e, aos mamíferos de luxo,mediante uma socialização que os aliena e os produzem seres humanos que naturalizam a exploração. Humanamente, por mais que pareça paradoxal, perdem menos os filhos da classe trabalhadora.
OJ: É comum se falar que os jovens de hoje vivem num mundo no qual a identidade profissional está em crise. A exigência de capacidades para assumir múltiplas funções profissionais e a falta de herança profissional nas famílias é visto como um problema. Qual o lugar do Ensino Técnico nesse contexto?
Gaudêncio: A identidade profissional efetivamente está em crise e esta crise está associada às mudanças dos processos produtivos e as formas organizacionais daquilo que a literatura crítica denominou de produção flexível. Este novo contexto de crescente incorporação de ciência e técnica aos processos produtivos (capital morto), agora sob uma nova base tecnológica digital-molecular exacerba o desemprego estrutural e desloca a concepção de qualificação e de profissão. Conseqüentemente também fica combalida a identidade profissional. As noções de competência e de empregabilidade expressam esta metamorfose conceitual e encontram sua expressão concreta no ideário de trabalhador polivalente e flexível. Também, no plano ideológico, se busca apagar a identidade de classe ou de categorias profissionais vinculados ao sindicato. O empregável é o indivíduo portador de um conjunto de competências lidas pelo mercado como desejáveis. Uma espécie de trabalhador just-in-time que tem que fazer bem feito aquilo que se lhes pede. E o que se lhes pede não é somente formação técnica adequada, mas também adesão afetiva à empresa. O tempo de permanência na empresa é até que responda à necessidade daquele processo produtivo. Para os não empregáveis resta-lhes o ideário do empreendedorismo ou a busca de ser patrão de si mesmos. Produz-se uma situação de provisoriedade permanente. Como aponta Richard Sennett, elimina-se a possibilidade de planejar o longo prazo.
Neste contexto o ensino técnico tem sido alvo de um intenso embate na sociedade brasileira, mormente nas últimas quatro décadas. Um ensino técnico adaptativo a esta lógica destrutiva do sistema capitalista ou, de dentro dela a luta para dar aos jovens elementos de formação técnica, social e política de sorte que os prepare para entender esses processos e, na mediada de sua organização e disposição de luta, reduzir os processos de exploração e alienação. O balanço que várias pesquisas apontam sobre o tema e, dentre estas, quatro projetos que coordenei sobre o tema, nos indicam uma relação orgânica do Estado com os interesses imediatos do mercado e das organizações empresariais. Todavia, estas mesmas pesquisas assinalam que quando se têm projetos educativos que buscam uma formação técnica, social e política integral, os jovens têm maiores chances de inserção no mercado de trabalho e, também de lutar pro seus direitos.
Na verdade a grande luta é para que todos os jovens, independente de sua origem social, possam ter uma educação básica (fundamental e média) que, ao mesmo tempo articule o específico ao geral, o técnico ao social, cultural e político. A isso que denominamos de educação e/ou formação unitária, omnilateral, integral, politécnica ou tecnológica.
OJ: Os jovens que ingressam no Ensino Médio Técnico, quando comparados com seus colegas que cursam o Ensino Médio propedêutico, parecem ter outra relação com a expectativa de cursar o ensino superior. Em alguma medida as aprendizagens e experiências tidas no ensino técnico favoreceriam a construção de uma mentalidade com outras prioridades que não a formação em nível superior.Você concorda com esta percepção?
Gaudêncio: Somos uma sociedade que tem na sua estrutura constituinte a cultura do coronel e do bacharel. Ambas herdeiras da cultura escravocrata. A primeira reitera a violência direta e truculenta com o trabalhador e a segunda pelo desprezo com o trabalho manual e técnico. Estas duas marcas se reforçam e fazem com que a classe média busque para seus filhos as escolhas que melhor preparam para o ingresso no ensino superior. Se estas escolas forem , como tem sido no Brasil, a Federal de Ensino Técnico e tecnológico,disputam estas vagas, não para buscar os empregos técnicos, mas para ter mais chances de ingresso na Universidade nos cursos de maior prestígio social. Este ideário também atinge os jovens da classe trabalhadora, embora, sem dúvida com menor intensidade , pois a necessidade os empurra ao mundo do trabalho precocemente. A busca do ensino superior para estes se vincula, entre outras razões, não só pelo prestígio mas porque o acesso ao ensino fundamental e médio não garantiu para estes jovens o seu déficit de escolaridade, cada vez maior, mesmo para ocupações que um nível superior não seria necessário.
As mudanças de prioridade podem estar ocorrendo mas certamente de forma lenta. Várias reformas de ensino, como aponta Luiz Antônio Cunha em suas pesquisas, tiveram nitidamente a intenção de retenção à demanda por ensino superior. O decreto 2.208/97, já extinto, tinha claramente esse objetivo.
OJ: Os CEFETs são, inegavelmente, escolas de ensino técnico de excelência no Brasil. Entretanto, os dados indicam que negros e pobres são minoria nessas escolas públicas que reproduzem a desigualdade de acesso à educação pública e de qualidade que encontramos no nível superior. Não estaríamos diante da necessidade da formulação de políticas de ação afirmativa também para os CEFETs?
Gaudêncio: Para quem acompanha há três décadas as mudanças no ensino técnico federal certamente tem a sensação de um processo contínuo de elitização por um lado e, por outro, reforçando o primeiro, de abando-no progressivo do ensino médio. Assim é que paulatinamente a Rede de Escolas Técnicas Federais que representavam, junto com outras poucas escolas públicas, o reduzido ensino médio público de qualidade, foram se transformando em Centros Federais de Educação Tecnológica. A forma que se deu este processo é emblemática para demonstrar nossa postura de culto ao bacharel . Inicialmente foram sancionadas três Escolas Técnicas ao nível superior. Tratava-se das escolas melhor estruturadas e com mais larga tradição. Mas no governo José Sarney, usando de sua prerrogativa de Presidente da República, alçou Escola Técnica Federal do Maranhão a Centro Federal de Educação Tecnológica (CEFET). Essa medida foi o sinal verde às pressões políticas que desembocaram na transformação, por decreto, de todas as Escolas Técnicas Federais, em Centros Federais de Educação Tecnológica. Aos poucos o ensino médio foi secundado e foram se desenvolvendo cursos de licenciatura de nível superior, muitos deles de duvidosa qualidade como mostram várias avaliações
No Governo Fernando Henrique Cardoso, foi dado golpe de misericórdia ao ensino técnico de nível médio pelo Decreto 2.208/97, acima mencionado, mediante o qual separava a educação média propedêutica do ensino técnico de nível médio. Este último poderia ser feito como pós-médico ou concomitante. A pressão para reduzir e paulatinamente extinguir o ensino médio integrado.
Ainda no governo Fernando H. Cardoso se montou o primeiro projeto de Universidade Tecnológica do CEFET do Paraná . Em 2005 o CEFET Paraná foi alçado a Universidade tecnológica. Na mesma lógica e dentro da cultura do bacharel, começo uma pressão enorme para a criação de várias universidades tecnológicas. Por diferentes razões, dentre elas econômicas, mas não só, o governo assinalou que apenas alguns CEFETs teriam condições de efetivamente concorrer a esse pleito. O caminho da pressão política e corporativa foi de ir pelo atalho criando os IFETS, Institutos Federais de Educação Tecnológica, equivalentes à universidade. O grifo é para perguntar: por que já não Universidade Tecnológica simplesmente? Mais uma vez a artimanha política que tirara do governo a obrigação de dar estrutura de universidade, mas garante ao dirigente máximo o título de Reitor equivalente.
Mostrei este processo para evidenciar de que o ensino médio técnico nesta rede será ínfimo onde quer que permaneça, se permanecer... E depois a burguesia brasileira reclama do o apagão de técnicos qualificados.
Por isso penso que inicialmente cabe uma pressão para que esta rede não só priorize o ensino médio técnico integrado, o amplie e se constitua em base de apoio para as redes Estaduais e Municipais de Educação. O próprio governo tem exemplos de como isto poderia mudar o perfil da formação técnica. A Escola Técnica Joaquim Venâncio, da FIOCRUZ, faz ensino médio técnico integrado de excelência, coordena e apóia nacionalmente redes de escolas técnicas na área de saúde. Concomitantemente, sem dúvida, a disputa é para quem tem prioridade freqüentar estas escolas. Nesse particular, várias têm experiências de acesso que dão prioridade aos alunos de escolas públicas . Trata-se de assumir isso como uma política pública afirmativa e ampliá-la.
OJ: Em linhas gerais, como você avalia as atuais políticas públicas do Governo Federal e dos Estados para o ensino técnico no Brasil?
Gaudêncio: Nos primeiros três anos do atual governo, junto com vários colegas de Universidade, participei diretamente da discussão dos rumos do ensino médio técnico. O primeiro movimento foi de dar base para a revogação do Decreto 2.208/97 e promover uma nova medida legal para restaura o ensino médio integrado. O leitor que queira se aprofundar no entendimento desse processo pode consultar o pequeno livro organizado por mim, Maria Ciavatta e Marise Ramos: Ensino médio Integrado: concepção e contradições. São Paulo, Cortez, 2005. O Decreto 2.208/97 foi revogado e em seu lugar veio do Decreto 5154/04 restaurando o ensino médio integrado. Esta restauração, todavia, que poderia ser uma travessia para uma reformulação mais profunda da legislação educacional, pelo fato do governo não assumir o projeto longamente discutido ao longo da década de 1990 pelos educadores e suas organizações, caiu no vazio e as mudanças se tornaram pífias por um duplo movimento. Primeiramente o governo delegou ao Conselho Federal pensar a regulamentação do Decreto 5154/04. O que ocorreu é que o legislador deste Decreto foi o mesmo do Decreto 2.208/97. Assim deixou-se em aberto para que se continuasse como estava ou se mudasse. Como o governo nem mesmo induziu a rede federal a retomar o Integrado, o que prevaleceu foi a manutenção do status quo. A tendência da Rede Federal de CEFTs ou IFETS, ou Universidades Tecnológicas é de priorizar o ensino superior e a pós-graduação.
Nos Estados, fora daqueles que já tem uma larga tradição de educação técnica profissional, apenas o Paraná assumiu, com recursos próprios, a restauração do ensino técnico profissional integrado. Um dos campos que o atual governo esta ampliando á criação de novos Centros de Educação Tecnológica. Esse esforço é, na minha avaliação importante. Todavia, se não se lhe der direção política de projeto filosófico e pedagógico, esse esforço será refém da esperteza política e do espírito corporativo. As últimas mudanças que têm ocorrido na Secretaria de Educação Tecnológica parecem apontar nesta direção. Lamentavelmente, a despeito de avanços que se possa perceber, o atual governo é refém da falta de um projeto societário mais claro que afirme, além das políticas distributivas e compensatórias, reformas estruturais. A política educacional é caudatária desta ausência.
***
Leia também no Observatório Jovem
Entrevista com Marina Garcia e Guilherme Ferreira - estudantes da Escola Politécnica da Fiocruz