O que faz o jovem permanecer no campo? Se por um lado a juventude camponesa vai para a cidade em busca de melhores condições de vida, por outro existe um número significativo de jovens engajados em movimentos sociais rurais. É o que explica, em entrevista ao Observatório Jovem, a professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Elisa Guaraná
O que faz o jovem permanecer no campo? Se por um lado a juventude camponesa vai para a cidade em busca de melhores condições de vida, por outro existe um número significativo de jovens engajados em movimentos sociais rurais. É o que explica, em entrevista ao Observatório Jovem, a professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Elisa Guaraná. Ela é doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autora da tese "Entre Ficar e Sair: uma etnografia da construção social da categoria jovem rural" (444p.), disponível em nossa seção de documentos.
Observatório Jovem (OJ) - Podemos fazer uma diferenciação entre o jovem da cidade e o jovem do campo?
Elisa Guaraná (EG) - Acho que não dessa forma. Se trabalharmos com uma construção homogênea de juventude rural e juventude urbana acabamos caindo no mesmo problema de construções como jovens violentos e jovens de periferia. Em um primeiro plano temos que seguir a mesma dinâmica para pensarmos a juventude de um modo geral, ou seja, tentar trabalhar com uma categoria social, que tem suas diferenciações internas, que tem diferentes formas de construção de identidade. Eu acredito que tem elementos que atravessam essa categoria e fazem com que ela hoje seja de fato uma categoria social e não só uma categoria analítica como já foi em determinada época. Quando lemos textos do começo do século que tratam sobre juventude definitivamente não é a mesma compreensão de juventude que a sociedade e que as próprias pessoas que se identificam como jovens têm hoje. Mas eu não gostaria de trabalhar com se estivéssemos criando classificações: juventude urbana, juventude rural, mulheres ou homossexuais. O que caracteriza a idéia de juventude rural é termos identidades que estão se apresentando como tal e está forte isso, se apresentando nos espaços de organização dos movimentos sociais e também no cotidiano dos espaços rurais. Se formos trabalhar com uma fronteira rural-urbana isso está cada vez mais confuso, mas há construções de identidades rural e urbana que ainda são muito fortes. Há uma identificação forte da sociedade sobre o que seria um mundo rural. Às vezes, muito mais no imaginário e que vai gerar reações de estigmatização, de diferenciação na relação com o poder público, do que de fato ter uma diferença entre aquele jovem que mora no campo e aquele jovem que mora na cidade. Por exemplo, quando falamos em juventude urbana vamos ouvir determinadas questões que nem sempre são as mesmas que estão colocadas no meio rural. Quando estamos falando de juventude rural, vamos ouvir muito a questão da terra que evidentemente não está colocada no espaço da juventude urbana. Mas o olhar sobre a categoria social juventude hoje, o olhar que a juventude vem construindo e o que essa categoria nos permite perceber são relações de poder e nesse sentido eu acredito que atravessa tanto o espaço rural como o urbano. O que eu sinto que é possível pescar de interessante a partir da categoria juventude é justamente que ela mostra a existência de relações de hierarquia na sociedade que envolvem a identificação de jovens. O fato de você ser jovem na sociedade te identifica e te coloca numa determinada posição de hierarquia na sociedade, que via de regra tem sido uma posição de subalternidade.
OJ – Essa posição de subalternidade da juventude se dá tanto na sociedade urbana quanto na rural?
EG - Sim. Na sociedade rural talvez isso apareça no âmbito da família de uma maneira mais forte porque o espaço da família e o do trabalho estão muito próximos, quando não são o mesmo. Os jovens vivem em uma comunidade onde a relação interna é muito intensa. O pai que está na associação dos produtores é o mesmo pai que está organizando a produção na terra dele, que é o seu pai. No espaço urbano, na maioria das vezes, o espaço do trabalho é separado do espaço da casa. O seu patrão no trabalho não é o seu pai, em alguns casos até é, mas em grandes metrópoles geralmente não. Mas a colocação do problema da subalternidade, dos problemas serem percebidos com uma lógica que desvaloriza, que desacredita o discurso, a fala e a ação do jovem vai aparecer tanto no espaço urbano, quanto no espaço rural.
OJ - Você falou em jovens rurais que se tornam visíveis por meio de movimentos ou no próprio cotidiano do ambiente rural. Como se dá essa relação?
EG – Juventude é uma categoria que tem muitas entradas, muitas construções, não é linear, não há uma mesma percepção de juventude de quem se identifica como jovem e de quem não se identifica como jovem, os adultos, por exemplo. É importante percebermos e não é um fenômeno novo, já aconteceu em outras épocas, em outros países, mas no Brasil apareceu com muita força nos últimos anos, o fato dessa categoria estar sendo apropriada por indivíduos, por coletivos, por movimentos. Essa identidade está forjando formas de organização social, de organização dentro dos movimentos sociais. Uma forma que age sobre diversas questões. Age sobre a questão rural como um todo, é uma identidade que tem aglutinado jovens que estão preocupados com a questão agrária, por exemplo. E estão preocupados também com qual vai ser a situação deles como próxima geração que vai enfrentar esse mundo rural em conflito, desigual, ainda tão distante do acesso de bens e serviços e um mundo rural distante de uma reforma agrária e todas as conseqüências que isso traz. Para uma geração que viveu o Plano Nacional de Reforma Agrária, o primeiro grande projeto no país que se apresenta como um projeto de reforma agrária, com todas as suas limitações, a pergunta é: o que vai acontecer daqui a 20 anos? E eles estão se perguntando isso. O que antes lhes era cobrado individualmente passou a ser colocado como uma questão coletiva, primeiro para os jovens, mas também para os movimentos. Eu acredito que muito em função da ação dos próprios jovens. A identidade juventude rural está sendo acionada, dentro dos movimentos sociais, como uma forma de auto-organização para reivindicar questões que são gerais para a reforma agrária hoje, mas também questões específicas. O que eu acho muito interessante na pesquisa que a gente está fazendo agora é ver as coordenações de juventude dos movimentos sociais indo diretamente negociar com os ministérios, diretamente com o Presidente da República, isso é uma diferença muito grande.
OJ - Esses jovens atuam enquanto movimento?
EG - Sim e como parte de movimentos maiores. No caso da Pastoral da Juventude Rural é diferente porque eles não são um movimento social, são uma organização pastoral. Mas, de qualquer forma, também se apresentaram como um ator social e negociaram diretamente com o Presidente da República uma pauta de reivindicações. Os outros movimentos sociais, da agricultura familiar, os que se definem como produtores ou como camponeses, estão hoje se organizando enquanto juventude e se apresentando enquanto um ator que vai fazer a interlocução direta com o poder público. Acho também que é uma identidade muito acionada hoje dentro dos movimentos sociais como uma forma de auto-organização para fazer frente aos problemas, conflitos e tensões dentro dos próprios movimentos. As relações de hierarquia e poder que eu considero que essa categoria apresenta como parte das relações que envolvem ser jovem na sociedade hoje, se reproduzem dentro dos movimentos sociais. Ser jovem nos movimentos sociais também carrega limitações quanto a espaço de participação, quanto a possibilidade de ser ouvido, a dificuldade de poder se colocar em um espaço de decisão. As formas de auto-organização através da identidade juventude rural têm também funcionado como um caminho para enfrentar essa questão. A minha preocupação hoje é justamente entender de que maneira os que são identificados como jovens estão se organizando dentro dos movimentos, as muitas formas como isso está acontecendo. Aí, a questão de gênero atravessa esse debate de uma maneira muito interessante.
OJ - Existe uma diferença na participação de jovens homens e mulheres nos movimentos rurais?
EG - Quando você trata a questão de gênero pensando juventude no campo, via de regra aparece uma questão clara, quase senso comum: as mulheres vão embora mais cedo. Isso também é muito questionável. É um olhar muito a partir do sul do país, o Nordeste, que é muito pouco pesquisado ainda, vai nos trazer um outro quadro onde pode ser que os homens migrem mais do que as mulheres. Mas, o olhar, quase sempre a partir da região sul e sudeste, aponta esse quadro da mulher sair mais cedo do campo. Tem muitas explicações para isso, na tese eu trabalhei com a idéia de que isso era uma questão que tinha a ver com a própria reprodução familiar, onde a jovem tem um papel específico na divisão social do trabalho e seu papel primordial é cuidar da casa. Ela é cada vez menos envolvida no trabalho da produção agrícola e, ao mesmo tempo, sofre muito mais vigilância em relação a sua circulação no espaço do que um homem, o que contribui para que muitas vezes ela saia. Mas tem outras questões. Isso aparece em estudos desde a década de 40. Ouvimos com muita freqüência nos estudos clássicos sobre o movimento sindical a imensa dificuldade das mulheres participarem dos espaços de decisão, não é nenhuma novidade. Também nos partidos políticos. Criou-se a cota nos sindicatos, inclusive, por causa disso. Então, a minha hipótese inicial era a de que eu iria encontrar essa situação dentro dos movimentos sociais, ou seja, menos mulheres e mais homens atuando dentro dos espaços de juventude. Eu estou surpresa, porque estou encontrando algo muito diferente disso. Até agora a pesquisa conseguiu cobrir as duas principais organizações nacionais do movimento sindical rural, a Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores em Agricultura), e a Fetraf (Federação dos Trabalhadores da Agricultura Familiar), a PJR (Pastoral da Juventude Rural) e agora a gente vai começar a trabalhar com o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e o MPA (Movimento dos Pequenos Agricultores). Há mais mulheres do que homens nas coordenações de juventude da Contag, as duas principais lideranças nacionais do movimento sindical são mulheres, da PJR é uma mulher pela segunda vez. Mas não é um reflexo de que isso já esteja resolvido, por exemplo, no movimento sindical. Eu fiz entrevistas com a direção nacional dos sindicatos e eles também estão surpresos. Temos que começar a olhar para o que a juventude vai trazer de novo em termos de formas de organização dos movimentos sociais. Me parece que pode estar começando a surgir isso, ou seja, já se conseguir romper pelo menos em espaço de direção nacional uma divisão sexual tradicional da forma das mulheres participarem da organização dos movimentos sociais. A tendência sempre foi muito forte de você ter homens na direção dos movimentos.
OJ - Esses estudos fazem parte da pesquisa que você está desenvolvendo. Pode explicar com mais detalhes a pesquisa?
EG - O nome da pesquisa é "Os jovens estão indo embora? A construção da categoria juventude rural em movimentos sociais no Brasil". Foi uma provocação que eu fiz para problematizar a idéia fortemente associada à juventude rural do "ir embora", que eu já faço na tese. Com os movimentos sociais eu estou tentando trabalhar isso com mais ênfase. Porque essa imagem da saída dos jovens do campo, que é real, se contrapõe a um crescimento forte de organização da juventude por dentro dos movimentos sociais rurais. Na nossa leitura, alguma coisa aí não está batendo, por isso fui olhar para dentro dos movimentos sociais. Essa pesquisa foi feita de forma quase artesanal esse ano inteiro; começamos em março. É uma pesquisa que contou inicialmente só com o apoio da universidade (UFRuralRJ) e, em seguida, conseguimos um financiamento que foi muito pequeno, mas importante, do CNPq/Edital Gênero. Em função disso conseguimos também uma bolsa de iniciação científica dentro da universidade e agora uma bolsa de extensão rural para trabalharmos especificamente uma das partes da pesquisa. Mas, o nosso principal apoio é do Núcleo de Estudos de Agricultura e Desenvolvimento (Nead) do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), que comprou a idéia e vem garantindo o mais importante que é o nosso deslocamento. A proposta era conseguirmos chegar nas organizações nacionais dos movimentos, nas organizações de juventude. Achamos importante acompanhar os eventos nacionais, congressos, seminários de juventude, achei que o caminho da etnografia do evento era bom e, de fato, tem se mostrado interessante. Era um espaço para entrevistarmos as lideranças que estão hoje na organização da juventude nos movimentos sociais, o que também funcionou. Interessante é que tem participado com muita freqüência dos congressos nacionais lideranças antigas dos movimentos, que estão nas direções nacionais dos movimentos. Também temos conseguido chegar neles nesse momento. Nesse processo achamos interessante fazer um perfil do evento, porque era um desperdício não saber quem eram esses jovens pelo menos em traços gerais. Por exemplo, a pesquisa mostrou que tem um alto índice de sindicalização individual do jovem, independente de sua família, o que é uma novidade. Até bem pouco tempo, o pai se sindicalizava e a família estaria representada em termos de seus direitos associativos e, no sentido político. Ou seja, a família se considerava representada na figura do pai. As mulheres começaram a romper com isso e agora os jovens também estão rompendo. Encontramos situações que tinha mais jovens solteiros sindicalizados do que suas próprias famílias. Isso aponta para os movimentos a possibilidade de renovação no espaço sindical.
OJ - O foco da pesquisa são apenas os jovens rurais que participam de movimentos sociais?
EG - Estamos trabalhando com a juventude rural da produção familiar mais clássica, que envolve camponeses, agricultores familiares, que se identificam como trabalhadores rurais e pequenos proprietários, organizados em alguns movimentos. Tais como, os sindicatos de trabalhadores rurais, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, o Movimento de Pequenos Agricultores. Não estamos trabalhando, por exemplo, com os ribeirinhos, com as quebradeiras de coco, com os quilombolas. Fizemos esse corte para trabalharmos no diálogo com o Plano Nacional de Reforma Agrária. O Plano num primeiro momento e como principal público alvo atinge essa população. Agora aos poucos está começando a dialogar com essas outras populações, mas até então, o publico alvo é o pequeno produtor familiar que foi expulso de sua terra, ou que nunca teve acesso a ter inserido em algum movimento.
OJ - Vocês acompanharam quais eventos até agora?
EG - Três até agora, na verdade, acompanhamos cinco, mas em três fizemos um trabalho mais profundo. O Segundo Acampamento de Jovens da Agricultura Familiar, em março, organizado pela Fetraf Sul. Lá, fizemos o perfil e as entrevistas. Em maio, acompanhamos o Grito da Terra Brasil, dentro desse evento, que é organizado atualmente pela Contag, teve um espaço que foi um seminário só com jovens que participavam do programa Jovem Saber. Fizemos também o perfil e pudemos acompanhar etnograficamente todo o processo de negociação da juventude da Contag junto ao governo federal. Em julho, acompanhamos o Segundo Congresso Nacional da PJR, o primeiro foi em 2000 e o segundo esse ano, em Brasília. São congressos que juntam de 500 a 1000 jovens, que foi o caso da PJR e estão revelando que tem uma identidade em construção que é essa identidade juventude rural, que também assume muitas faces: juventude da agricultura familiar, juventude camponesa. E Tem uma identidade política em construção, no sentido de um ator político que está se colocando a partir da identidade juventude rural.
OJ - Existe, então, uma preocupação com a formação política dos jovens desses movimentos?
EG - Essa tem sido uma das maiores preocupações e eu sinto que já está dando resultado. Nos três casos que acompanhamos de perto, o principal esforço tem sido o de criar espaços e programas de formação política interna. O Ministério do Desenvolvimento agrário (MDA) tem, em alguns momentos, entendido a importância não só da formação profissional, que está em debate e que tem programas do governo hoje, mas também entende dentro disso a importância da formação política. Um outro espaço que a pesquisa acompanhou foi o 6º Acampamento de Juventude Latino-Americana em Buenos Aires, que teve forte participação dos movimentos que compõem a Via Campesina. Dos movimentos que eu estou acompanhando fazem parte da Via Campesina a PJR, o MST, o Movimento dos Pequenos Agricultores e o Movimento das Mulheres Camponesas. Esses movimentos estavam lá e foi muito interessante poder observar que essas questões que estão aparecendo no Brasil são questões que estão colocadas nos outros países da América Latina hoje.
OJ - Respondendo à pergunta que dá nome à pesquisa, esses jovens estão ou não saindo?
EG - Nós não temos uma pesquisa quantitativa/qualitativa nacional, e também não sei até onde conseguimos dar conta do que significa sair. É claro que tem sim um processo de migração de jovens do campo para a cidade. Isso também não é nada novo. Esse processo de migração atinge a juventude porque os problemas sociais em algumas questões específicas atingem de forma mais violenta a juventude. Estamos falando de uma geração que quer acesso à educação, diferente de duas gerações atrás que nem buscava isso. Essa educação não está no campo, por exemplo. Se a juventude quer acesso à renda e ao lazer, isso ainda não está no campo. Mas há, por outro lado, questões intrínsecas à lógica da reprodução da produção familiar, essas relações de hierarquia dentro da própria organização do trabalho familiar, que também contribuem para tensões que podem gerar a saída do jovem do campo. Precisamos entender que esses problemas vão além de uma leitura inicial que se fez como se fosse uma simples atração do jovem pela cidade. É claro que existe, mas isso nos explica muito pouco. Temos que tentar entender quais são as questões estruturais que fazem esse jovem sair do campo. É preciso entender mais essas questões e poder enfrentar o debate político, que significa discutir reforma agrária no país a partir desse olhar. Pensar a juventude dentro dessa perspectiva, não separá-la dessa grande problemática da reforma agrária no país e não tratá-la como se fosse uma população que tem questões específicas apenas. As muitas pesquisas qualitativas que vêm sendo feitas nos últimos tempos mostram o contrário, mostram que a primeira preocupação dos jovens aponta para essas questões estruturais. A falta de interesse por morar no campo, não gostar de morar no campo e até mesmo não gostar da produção agrícola não é a questão que muitas vezes aparece na frente. O que aparece na frente é a dificuldade de ficar caso queira. Claro que muitos não querem. Mas eu brinco assim: por que não se pergunta o motivo dos jovens da cidade circularem? Eles não nascem, crescem e morrem dentro do lugar onde nasceram. Mas para o jovem rural, isso parece quase uma obrigação. Claro, se não a reprodução da produção familiar não acontece. Mas porque não considerar também o desejo de parte sair da casa dos pais e buscar outras inserções como um processo social equivalente à saída dos jovens urbanos da casa dos pais e sua circulação. Temos que tentar perceber que o "ficar e o sair" é muito mais complexo, às vezes é temporário, às vezes faz parte do dia-a-dia, do cotidiano e das estratégias da própria família, não significa necessariamente ruptura. Ficamos lendo o tempo todo a saída como ruptura e já tem autores que para nós hoje em dia são clássicos, como o Afrânio Garcia, no livro Sul o Caminho do Roçado, que já apontava algo diferente. A outra questão que é importante quando falamos na saída dos jovens também nesse giro é: mas os que querem ficar, querem ficar por que? Alguns querem, e não são poucos senão os movimentos não estavam se organizando em torno disso. A minha preocupação hoje é saber o que faz o jovem ficar e quais são as outras questões que ainda, apesar desse grande diagnóstico da imensa desigualdade do campo no Brasil, faz com que você tenha vários movimentos de juventude rural construindo identidades como: juventude camponesa, juventude da agricultura familiar querendo ficar no campo. Uma das bandeiras fortes que já apareceu e agora vai ficar cada vez mais forte é a educação no campo.
OJ - Essa é a principal bandeira da juventude rural hoje?
EG - É a grande bandeira que vai aparecer agora e que eu acho que pode até unificar alguns movimentos que tradicionalmente não se unificam em torno de outras questões. Até bem pouco tempo havia a discussão sobre o que era melhor – os jovens serem transportados em meios de transporte das prefeituras municipais para uma educação urbana ou os jovens terem uma educação no campo. A meu ver, nós avançamos na não dicotomização entre educação do campo e da cidade. Entender que estamos falando de uma educação universal, ainda que tenha que ter presente o mundo rural como conteúdo, hoje invisível na educação brasileira. Mas, também, entender quais são os estigmas em relação ao meio rural e as dificuldades para estudar na cidade hoje e o que isso representa. Entretanto, o problema concreto é que o jovem não chega lá. A recente Pesquisa Nacional da Educação da Reforma Agrária mostrou que só se estuda até a quarta-série, no máximo até a quinta-série. Completara a oitava série já exige um esforço violento da família para manter o jovem na escola, um esforço dele mesmo, de andar quilômetros. O acesso ao Ensino Médio é praticamente impossível, como demonstrou a Pesquisa Nacional de Educação da Reforma Agrária (PNERA), realizada pelo INEP/MEC. Isso se soma à realidade do jovem da periferia urbana, o não acesso ao Ensino Médio é uma realidade da juventude brasileira. No caso do jovem rural isso só se agrava porque ainda por cima a escola é longe. Se a escola na periferia urbana é uma escola com problemas, no espaço rural ela nem existe. Então, a bandeira que está vindo pela frente de forma bastante clara é o Ensino Médio chegar ao meio rural e a universidade também chegar ao meio rural.
OJ - A universidade está mais longe ainda...
EG - Tirando alguns pólos que estão mais voltados para o agronegócio do que para a produção familiar, tem alguns espaços onde existe uma interiorização da universidade, mas fora isso é um país onde tudo está voltado especificamente para nichos dentro da grande metrópole. O meio rural brasileiro sofre com a desigualdade histórica entre campo e cidade. O que o jovem identifica hoje e sente com clareza é que, apesar dele hoje conseguir se deslocar, ter acesso à informação e a caminhos para conseguir renda mais rápido do que seus pais, ainda assim a distância econômica entre o campo e a cidade é infinitamente maior do que a distância física entre o campo e a cidade.
OJ - O que, então, faz esses jovens ficarem no campo?
EG - Não arriscaria dizer que há uma resposta única para isso. Os processos de organização de luta pela terra dos últimos 20 anos incorporaram as crianças e os jovens de uma maneira muito intensa. Quando discutimos qual é a herança da terra não estamos discutindo qual é a herança da terra física, do patrimônio físico, apenas, estamos discutindo muitas vezes a herança da luta pela terra como uma herança que atravessa gerações. Na pesquisa que fiz para minha tese eu encontrei jovens de origem urbana, que os pais tinham origem rural, que foram para o processo de acampamento. Isso está acontecendo no país, em vários lugares e, hoje, são pessoas ganhas para o processo, no sentido de que atuam, são as que querem tomar conta do lote. É um processo de socialização, um processo político de construção desse jovem como produtor rural, como camponês, como pequeno agricultor, as identidades são muitas, como ribeirinho. Esse é um processo que hoje incorpora as crianças e os jovens. Não é ainda uma conclusão da pesquisa, mas me parece que esse processo dos jovens conseguirem se organizar faz parte dessa socialização que vem acontecendo dentro do espaço dos movimentos sociais. Eu acho que a reprodução da produção familiar, do prazer de estar na terra, que envolve essa experiência de vida que é única, ainda é um dos elementos fortes que atrai o jovem para mantê-lo na terra. A imagem de violência urbana também se contrapõe a uma imagem de um rural mais bucólico, embora ele saiba que tem muitos problemas. Mas para o jovem é um espaço bom de morar. Por mais paradoxal que possa parecer, pode não ser um espaço bom para o lazer, para a educação, para o trabalho, para mais nada, mas para morar é um espaço bom. Há um esforço também da família. A história da reprodução familiar é uma história de gerações e dos conflitos entre gerações. Na pesquisa para a tese, trabalhamos três gerações, a partir da geração mais nova trabalhamos entrevistando os seus pais e em alguns casos entrevistando seus avós ou eles contaram sobre o que era a vida com seus pais ou com seus avós. Os adultos de hoje reclamam de seus pais, que eram duríssimos, autoritários. Mas a leitura de que há esse conflito não pode estar associada à idéia de que a família está necessariamente em crise. Eu pelo menos não vi isso. Aliás, eu vi muito pouco espaço de violência familiar no meio rural. O que não significa, que não exista violência, mas principalmente de que não exista tensão e disputa de poder. E isso não necessariamente significa ruptura. Muitas vezes significam caminhos de negociação. E quando o caminho não é possível o jovem sai mesmo. Mas saindo ou ficando há negociação para manter os laços fortes.
OJ - Existe a percepção de que é preciso se pensar em políticas públicas para juventude rural?
EG - Ainda não tenho um diagnóstico sobre isso e não queria me arriscar muito. Mas o problema é que as grandes políticas pensadas para a juventude são novas e poucas. Juventude rural não é publico alvo, por exemplo, do maior programa de juventude que é o ProJovem. Foi realizado o Seminário Nacional do Plano Nacional de Juventude da Câmara dos Deputados, eu participei do seminário no grupo de trabalho (GT) de juventude rural. No GT, havia reivindicação para que os grandes programas de juventude incorporassem a juventude rural não como um nicho, mas dentro do programa, transversalmente. O problema é que hoje não está. Os programas específicos foram acontecendo dentro dos programas de cada ministério. Por exemplo, dentro do Plano Nacional de Reforma Agrária, dentro do Ministério do Desenvolvimento Agrário há duas importantes iniciativas. O Pronaf Jovem, que é o programa de crédito para o jovem dos assentamentos rurais e o Primeira Terra, que é um programa de crédito para comprar terra. Há muita queixa na implementação desses dois programas, eles ainda estão em muita discussão. Alguns movimentos apóiam, outros não. Eu considero que esses são os dois grandes programas que ainda são, na verdade, muito pequenos e que não dão conta da questão. Os três níveis – federal, estadual e municipal – enfrentaram muito pouco a questão. Se enfrentou muito pouco as questões estruturais e menos ainda as questões que dizem respeito especificamente a juventude. O debate sobre políticas públicas para a juventude do campo ainda está por vir.