Pesquisa encomendada pela Associação Brasileira de Psiquiatria revela uma triste realidade. Chega a um milhão o número de crianças e adolescentes entre 6 e 17 anos que apresentam sintomas de dependência química
Eles consomem álcool, merla, crack, maconha, solventes e outros entorpecentes; fogem de casa; servem a traficantes; roubam; abandonam a escola e transformam a vida dos pais e a deles num tormento cotidiano.
As famílias buscam ajuda, mas 60% delas não conseguem tratamento para os filhos e se deparam com a falta de políticas públicas. É o que percebemos nos depoimentos para esta reportagem.
Agonia e desespero
Associação Brasileira de Psiquiatria revela que há cerca de 1 milhão de crianças e adolescentes entre 6 e 17 anos precisando de tratamento médico devido à dependência de álcool e drogas
Maria: sofrimento devido à situação desesperadora do filho viciado
“Quando fumo maconha, fico mais tranqüilo, leve, lerdo. O olho fica baixo, é cabuloso. Já com o thinner, eu fico mais agitado. Mas é rápido. Tô cheirando aqui, e quando morre a bucha, morre o efeito. Quando tô cheio de thinner, não lembro de nada que acontece. Já me interessei pelo bagulho e pedi para dar uns tecos. Gostei. O pó deixa a língua dormente, você fica ligado. De vez em quando eu cheiro. De vez em quando eu fumo crack. Eu gosto só da branquinha mesmo, a amarela deixa o cara doido.”
Quem diz isso é um adolescente de 16 anos, dependente químico desde os 12. Talvez por causa do consumo abusivo de drogas, ele seja tão franzino. Tem a pele amarelada e os dedos queimados pelo manuseio das pedras de crack. Para manter o vício, rouba dentro de casa e assalta na rua. “Na cara dura, usando faca”, relata. Ameaçado de morte por rivais, ele garante que quer parar. “Quero me tratar, sair dessa vida. Mas não é fácil não. Sem a droga, fico agoniado. Mexe com o psicológico do cara, a gente só pensa besteira.” Ele não sabe quando isso vai acontecer. Desde que percebeu que o filho era usuário, a mãe do rapaz busca ajuda na rede pública. E ainda aguarda uma resposta.
Fabiano faz parte de um universo de 1 milhão de crianças e adolescentes brasileiros entre 6 e 17 anos que apresentam sintomas de dependência química — álcool e drogas — a ponto de os pais procurarem tratamento. O dado é da Associação Brasileira de Psiquiatria, que encomendou uma pesquisa ao Ibope realizada em todas as regiões do país. Quem tem dinheiro apela para clínicas particulares. Já os pobres enfrentam mais dificuldades: o estudo mostrou que 60% das famílias que buscaram ajuda não conseguiram tratamento pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
A falta de atendimento traz conseqüências graves, além dos evidentes danos à saúde. Como o desespero da cabeleireira Maria*, que tenta juntar dinheiro para pagar a dívida do filho com um traficante do bairro. Ou a angústia de Ivone* todas as vezes que seu menino aparece em casa espancado por rivais ou pela própria polícia. Sob a garantia do anonimato, quatro mães contaram ao Correio o drama de ver os filhos perderem a batalha para as drogas. Os relatos, que estão na página 17, têm em comum a busca incessante — e em vão — por ajuda.
“É a coisa mais comum atendermos mães que procuram o Conselho Tutelar porque os filhos estão usando drogas”, conta o conselheiro Israel Vieira, que atua em Samambaia e no Recanto das Emas. “Mas os conselhos não têm condições de resolver essa situação, porque faltam políticas públicas para isso. No Distrito Federal, por exemplo, não há unidades de internação para desintoxicação. Precisamos de autorização da Justiça para levar as crianças para outros estados. Isso fere o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que prevê a municipalização da execução das políticas públicas”, critica. O Correio entrou em contato diversas vezes com o gerente de saúde mental do DF, Leonardo Gomes, mas não obteve retorno.
Em abril deste ano, Israel recebeu uma carta, escrita por uma mulher que se identificava como “Cidadã Blue”. Ela conta em detalhes o sofrimento passado por sua empregada doméstica, cuja filha de 16 anos é viciada em drogas. A menina, até agora, não recebeu tratamento. Esta reportagem é ilustrada por trechos do relato.
“Escrevo em nome de S.T.S., 40 anos, diarista, moradora do Recanto das Emas, mãe de cinco filhos, grávida do sexto. S. cria sozinha as quatro meninas e um menino, entre elas, A., 16 anos, objeto dessa solicitação. A.T.D. é dependente química. Já não é uma usuária ocasional, tem olheiras profundas, dedos descascados e amarelados, pele acinzentada, lábios secos, rachados, perdeu muito peso, não come, por mais que a mãe insista, oscila dias em que dorme o tempo todo e os que passa dia e noite em claro. Tudo depende de quais substâncias usou e quais foram os efeitos que provocaram em seu cérebro (…)”
A falta de acesso ao tratamento pode aumentar a epidemia da dependência. Isso porque, de acordo com psiquiatras ouvidos pelo Correio, o consumo de álcool e drogas está cada vez mais precoce. “As crianças já começam com 10, 11 anos. Geralmente, iniciam com a bebida”, afirma Dênio Lima, vice-presidente da Associação Psiquiátrica de Brasília (APBr), professor da UnB e especialista no tratamento de crianças e adolescentes.
E a pobreza, conta João Carlos Dias, diretor da Associação Brasileira de Psiquiatria, é um dos fatores de risco que, associado a outros motivos, pode levar à dependência. Ele coordenou duas pesquisas do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas, feitas em escolas públicas e com meninos em situação de rua. “As pessoas se estressam no dia-a-dia com problemas como trânsito e excesso de trabalho. Agora, pense numa comunidade carente, dominada por bandidos ou milícias, que não tem satisfeitas suas necessidades básicas, recebe salários ruins, tem baixa escolaridade, onde falta transporte público. Essa crise social sem precedentes vulnerabiliza ainda mais a juventude pobre”, afirma.
O psiquiatra Eduardo Sá Oliveira, membro da APBr, critica a carência de atenção com o tema. “Na verdade, não temos sequer políticas de prevenção da saúde mental, quanto menos da dependência química.” Dênio Lima diz que a procura é grande, mas faltam profissionais para fazer o atendimento. Ele trabalha no ambulatório do Hospital Universitário de Brasília (HUB) e conta que nem para os adultos há tratamento suficiente. “As pessoas vêm, mas nunca tem vaga. Já tive pacientes menores de idade, que encaminhei para os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial, as unidades de tratamento mental mantidas pelo Ministério da Saúde ), mas eles só atendem maiores de 19 anos.”
Para o presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, João Alberto Carvalho, o número de CAPS é insatisfatório. Os centros que atendem crianças e adolescentes são 95. “É um número obviamente irrelevante do ponto de vista da população do país”, afirma. Em nota, o Ministério da Saúde informou que, em relação a 2002, a ampliação dos CAPS infanto-juvenis teve um incremento de 156%. “As ações de atenção integral a crianças e adolescentes não se desenvolvem somente no campo das ações clínicas, mas se relacionam com as questões da família, da comunidade, da escola, da moradia, do trabalho, da cultura, além dos grandes problemas sociais do mundo contemporâneo — como as drogas e a violência”, continua o comunicado oficial.
“Quando A. está em abstinência, perambula pela casa gemendo, chora e implora por dinheiro. Tranca-se no quarto com uma faca de cozinha que ela usa para ferir a si própria. Quando necessita de mais e mais droga, usa a faca para ameaçar a família, tornando-se muito violenta. Já bateu, tentou um incêndio no quarto, atirou, sem acertar, a faca no sobrinho de 3 anos e tentou furar várias vezes as irmãs e o irmão de 11 anos (…)”
Ainda que a rede seja ampliada, o psiquiatra João Carlos Dias não acredita que o problema será resolvido. “Os CAPS, burocraticamente, fecham às 17h. Geralmente, as pessoas usam drogas à noite, o período de maior vulnerabilidade. Seria a hora que poderia motivar o indivíduo a procurar ajuda”, diz. Além disso, ele afirma que o modelo ambulatorial criado na saúde pública brasileira não dá conta de todas as especificidades de cada usuário.
“Uma pessoa que chega no hospital com uma crise de alcoolismo, por exemplo, precisa, antes de tudo, ser encaminhado a um Centro de Terapia Intensiva (CTI). Depois, é necessário ser internado para desintoxicar. E, então, vai precisar do atendimento ambulatorial. E não é isso que acontece.” Para ele, a reforma da assistência psiquiátrica, que reduziu os leitos hospitalares, não leva em conta que a lógica da psiquiatria é a mesma da medicina. “Ninguém vai para um CAPS cardiológico, por exemplo. A dependência é um problema psiquiátrico, médico. E, infelizmente, uma parcela da população precisa ser internada.”
A dependência, porém, não escolhe classe social. Ainda que a pobreza seja um fator de risco por expor a população a níveis mais elevados de estresse, outros motivos levam crianças e adolescentes ao vício do álcool e da droga. “Há fatores pré-disponentes. Uma criança muito impulsiva, por exemplo, pode ser mais vulnerável. Filhos de alcoólatras têm mais chances de se tornarem alcoólatras também”, diz a a psiquiatra Analice Gigliotti, presidente da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas. Eduardo Sá Oliveira enumera outros fatores: “Depressão, déficit de atenção e transtorno bipolar também estão associados ao uso de drogas”.
Somado aos motivos internos, há outras questões para as quais os pais devem ficar atentos. “Muitas vezes, a criança e o adolescente estão incomodados com alguma coisa, como a separação dos pais, por exemplo, mas não falam sobre isso. Demonstram por ações. Uma é não ir bem na escola. Outra é usar drogas”, ensina o especialista em psiquiatria infanto-juvenil Dênio Lima. Para Analice Gigliotti, um problema grave é a banalização do álcool no Brasil. “Os pais bebem na frente dos filhos, não se importam se eles fazem o mesmo e ainda acham engraçado quando tomam um porre. O exemplo começa em casa.”
“Talvez A. não tenha tempo de esperar. (…) Enquanto escrevo esta carta, seu corpo vai resistir a mais doses de tóxicos? Ela pode ter uma overdose a cada não que ouço. Pela Lei nº 8.069, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Estado deve garantir a eles a primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias (…) Mas o Estado está sendo omisso em relação ao menor.”
* Os nomes são fictícios em respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente